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São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2003

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+ cultura

O filósofo debate o estatuto ambíguo do fotojornalismo, que se mostra solidário com o sofrimento humano, mas não impede que as tragédias ocorram

O outro lado da matéria-prima da dor

do "Le Monde"

Entre 1º e 9 de setembro aconteceu em Perpignan, na França, o 15º Festival Visa para a Imagem, que 7reuniu fotojornalistas de todo o mundo. Frequentador habitual do evento, o filósofo Jean Baudrillard critica o predomínio de imagens dolorosas e a profusão extrema de fotos indecifráveis. Filósofo e agitador de idéias, teórico da realidade e de suas representações, além de fotógrafo, Baudrillard falou do fotojornalismo e da relação entre imagem e realidade.

Como você vê esse festival?
É, antes de mais nada, uma instância em que o fotógrafo volta seu olhar sobre ele mesmo e sua profissão. Seu referencial é constituído pelos acontecimentos do planeta que ele fotografou, mas, mais ainda, pela presença na cidade de sua tribo, a tribo dos fotojornalistas. Os fotógrafos se encontram e se refletem nos espelhos uns dos outros.
É fato conhecido que esse festival é dominado pelo discurso "de vítima" e "miserabilista", que se baseia em fotos dolorosas. Diferentemente de outras áreas da fotografia, o fotojornalismo sempre privilegia o espetacular. Vejo em Perpignan muitas imagens sobrecarregadas de signos, como a madona argelina, cujo fetichismo se aproxima daquele das imagens de estrelas. Esses ícones dão a volta ao mundo, são produtos globalizados. Esse destaque dado às vítimas, acompanhado de um discurso piedoso, pesa muito. Acaba se tornando uma chantagem feita com os espectadores, para os quais se exibe e aos quais se impõe um sofrimento.


Jean Baudrillard


Como você avalia o trabalho dos repórteres?
Vamos deixar de lado a questão dos riscos corridos em campo, já que eles os assumem. Eu não gostaria de estar na pele deles, pois sua posição é extremamente ambígua. Eles ao mesmo tempo estão dentro do acontecimento e fora dele. Sua participação é efêmera. Eles são, a priori, solidários com as vítimas e com o sofrimento humano, mas seu lugar natural é do outro lado, junto com aqueles que olham e deixam acontecer. Eles são irresponsáveis, à medida que não intervêm. Sua irresponsabilidade se aproxima daquela do consumidor das fotos. Eles estendem às vítimas o espelho de seu sofrimento, antes de enviar a imagem para "o outro lado" para ser comercializada e consumida.

Como você vê o testemunho que justifica essas fotos?
Trata-se de um apostolado enaltecido por todos, desde a mídia até os políticos, com uma boa dose de exagero. Existe uma forma de assassinato na fotografia jornalística. Todas essas pessoas que morrem de fome e que doam sua imagem -jamais será possível saldar a dívida que se tem com elas. Sobretudo não numa economia globalizada.
Essa dor fotografada é uma fonte de matéria-prima que permite o funcionamento da economia da informação. O testemunho é uma justificativa. Ele não existe, a não ser que vivamos num tempo de memória, que induz ao recuo e à avaliação. A partir do momento em que vivemos no tempo real, em que os acontecimentos desfilam como num "travelling", o tempo de reflexão sofre um curto-circuito. A tela quebrou a distância entre o acontecimento, a imagem e a percepção. A tela coloca a imaginação na tela. E, quando a imaginação deixa de ser possível...

Colocar o testemunho em dúvida não significa quebrar aquilo que liga a realidade à imagem jornalística?
Este festival, como os jornais, quer realmente ancorar as fotos na realidade. Elas não são penduradas e comentadas como imagens, mas como fragmentos da realidade. São acompanhadas de informações e dotadas de um sentido político. Com isso, comete-se uma violência com essas imagens de violência. Acreditar que imagens possam testemunhar uma realidade é nutrir ilusões. A informação é uma zona fria que se recebe como tal. A imagem é uma representação além do real. É um objeto precioso quando nos damos conta desse déficit de realidade, quando é ao mesmo tempo presença e ausência. Transmite-se muito mais informação com um texto.

Entretanto dizem que uma foto forte pode gerar uma conscientização e levar à tomada de ações.
Isso foi dito no caso da Guerra do Vietnã, e essa afirmação foi largamente repetida. As pessoas agem em razão do que são, e não em razão de imagens que vêem. A imagem é um adicional. Diante das fotos de informação, o que domina é sobretudo a indiferença. Elas se tornaram familiares demais para nos comover. Estamos acostumados com elas. Precisamos de sempre mais, mais. A proliferação de imagens é tamanha que já ultrapassamos um limiar crítico que impede uma decodificação real.
Perpignan reproduz essa profusão. Aqui o público vê milhares de fotos, como se estivesse vendo TV. Não são dados pontos de referência às pessoas. Elas vêem as imagens passar, não podem julgá-las, perceber a diferença, excluir algumas. A distância, o julgamento, o prazer da imagem são uma dramaturgia da qual poucos participam. A questão é tão complexa que eu mesmo não sei mais o que é bom ou não. E todo esse sofrimento deveria nos comover, mas o que acontece é sobretudo o inverso. As pessoas se sensibilizam de maneira passageira. As fotos criam um pânico artificial que provoca uma reação de defesa do espectador. E, quando algumas raras imagens se destacam num "verdadeiro" sem excesso, as pessoas colocam em dúvida seu valor de informação.

Como seria um mundo sem fotos da atualidade?
Seria uma privação ambiental. Teríamos a impressão de ser privados de alguma coisa e de nada saber do mundo.

O que é preciso para que as imagens da imprensa não extrapolem visualmente?
Antes de mais nada, elas precisam ser esvaziadas dessa sobrecarga política, estética, de informação. É preciso ocorrer uma transferência poética para nos comovermos. Seria necessário que o conteúdo permitisse que a imaginação abrisse um caminho pela imagem. Penso sobretudo nas imagens brutas. Penso também nas fotos que se aproximam da antropologia, que não são formatadas pela economia que as gera. Para evitar a contaminação, também é preciso o vazio entre fotos e nas fotos. Andy Warhol dizia que é preciso reintroduzir o nada na imagem.

Algum acontecimento ainda pode gerar esse tipo de imagem hoje em dia?
A queda das torres do World Trade Center. O acontecimento não foi anulado pela imagem porque, por uma vez, a imagem está no cerne do acontecimento. As imagens não constituem uma repetição, mas fazem parte do acontecimento.

Os profissionais do fotojornalismo vão poder se apossar de suas dúvidas?
As discussões sobre o fotojornalismo dizem respeito à saúde econômica da profissão, às tecnologias, ao direito à imagem, nunca às próprias imagens. É normal. Abrir esse debate significa começar a solapar os fundamentos de uma profissão.
Tradução de Clara Allain.


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