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Ponto de Fuga
Desejo de pedra
Malgrado a ordem de não tocar, as esculturas mantêm, teimosas, o poder sensório e mágico conferido a elas pela cumplicidade virtual que estabeleceram com os dedos
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
A escultura tem um imperativo tátil porque atrai
os dedos, pressupõe a
carícia. Nos museus é frustrada
pela proibição de tocar. Incorpora-se então ao olhar, como
imaginário, como virtualidade
sem corpo. A contemplação pode ser física, pode ser espiritual; o tato, ao contrário, é apenas corpóreo.
Malgrado a ordem de não tocar, as esculturas mantêm, teimosas, o poder sensório e mágico conferido a elas pela cumplicidade virtual que estabeleceram com os dedos. A estátua
não é apenas imagem, como
aquelas que se encontram figuradas nos quadros: pressupõe
um "real", no qual existe sem
fazer parte dele, já que simula a
vida sem ser viva, não é a mulher representada, mas somente pedra, madeira, marfim, argila, bronze.
A escultura situa-se entre o
ser e o querer ser. É, assim, um
desejo de pedra, ou de madeira,
ou de marfim...
Nos mitos antigos, Pigmalião, escultor de Chipre, criou
uma estátua feminina de suprema beleza. Apaixonou-se
por ela. A deusa Vênus comoveu-se ao perceber tanto amor,
fez com que ela vivesse.
Victor I. Stoichita, historiador da arte romeno, toma esse
tema numa trajetória ensaística publicada em livro, "O Efeito
Pigmalião". Começa com as
narrações fundadoras (sobretudo as "Metamorfoses", de
Ovídio, e a passagem sobre Pigmalião, escrita por Jean de
Meung, no "Roman de la Rose",
final do século 13). Avança pela
história das artes até atingir
"Um Corpo Que Cai", de Hitchcock, e a boneca Barbie.
Investigação
A erudição de Stoichita se ramifica em digressões; o capítulo consagrado ao "Baco" de
Sansovino [1486-1570] é um
formidável momento de análise. Lacuna curiosa, a ausência
de "Pygmalion", pequena ópera-balé de um ato, composta
por Rameau [1683-1764], cujo
libreto exprime os pensamentos atordoados de Galatéia ao
emergir para a vida.
Outra ausência, o "Pigmalião" de Shaw e sua versão para
a comédia musical "My Fair
Lady". É bem verdade que não
se trata aqui de estátua, mas
Higgins recria Elisa pela fala,
pelos gestos, pelas roupas.
Esse fetichismo do vestir,
Stoichita o explora largamente,
sublinhando sua insistência
nas imagens medievais, seu papel crucial nas obsessões de
"Um Corpo Que Cai" e na boneca Barbie, que se multiplica a
si mesma pela infinita troca de
roupas.
Velho filme
"The Phantom Creeps", de
Beebe e Goodkind, com Bela
Lugosi (1939, álbum de DVD
com dez filmes de terror, St.
Clair Vision, EUA).
A poesia das engenhocas modernas, os aeroplanos com jeito
de brinquedo, a locomotiva de
design futurista, as faíscas elétricas, os raios, as baratinhas
recortadas na pureza das elegâncias geométricas. Ciência e
tecnologia são mágicas, capazes de tudo.
Inserções de trechos de outros filmes para encher lingüiça, de documentários recuperados (talvez a explosão do
Hindenburg, que ocorreu em
1937). O cientista tem tantos
poderes: tornar-se invisível,
deflagrar pastilhas que são
bombas com auxílio de aranhas, destruir fontes de energia, como na cena épica das torres. A face do robô desengonçado, brinquedo gigante: imaginário em aço das máscaras primitivas, todas, quaisquer: africanas, pré-colombianas, da Polinésia.
Redemoinho
"The Phantom Creeps" é o
condensado de um "serial"; as
situações mais estrambóticas
se precipitam numa rapidez de
vertigem. Lugosi, doloroso ao
proclamar que será mestre do
mundo, embriagado de loucura
ao lançar seus explosivos do
avião, gargalhando cada vez
que destrói.
jorgecoli@uol.com.br
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