São Paulo, domingo, 02 de novembro de 2008

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Ponto de Fuga

Desejo de pedra


Malgrado a ordem de não tocar, as esculturas mantêm, teimosas, o poder sensório e mágico conferido a elas pela cumplicidade virtual que estabeleceram com os dedos

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A escultura tem um imperativo tátil porque atrai os dedos, pressupõe a carícia. Nos museus é frustrada pela proibição de tocar. Incorpora-se então ao olhar, como imaginário, como virtualidade sem corpo. A contemplação pode ser física, pode ser espiritual; o tato, ao contrário, é apenas corpóreo.
Malgrado a ordem de não tocar, as esculturas mantêm, teimosas, o poder sensório e mágico conferido a elas pela cumplicidade virtual que estabeleceram com os dedos. A estátua não é apenas imagem, como aquelas que se encontram figuradas nos quadros: pressupõe um "real", no qual existe sem fazer parte dele, já que simula a vida sem ser viva, não é a mulher representada, mas somente pedra, madeira, marfim, argila, bronze.
A escultura situa-se entre o ser e o querer ser. É, assim, um desejo de pedra, ou de madeira, ou de marfim...
Nos mitos antigos, Pigmalião, escultor de Chipre, criou uma estátua feminina de suprema beleza. Apaixonou-se por ela. A deusa Vênus comoveu-se ao perceber tanto amor, fez com que ela vivesse. Victor I. Stoichita, historiador da arte romeno, toma esse tema numa trajetória ensaística publicada em livro, "O Efeito Pigmalião". Começa com as narrações fundadoras (sobretudo as "Metamorfoses", de Ovídio, e a passagem sobre Pigmalião, escrita por Jean de Meung, no "Roman de la Rose", final do século 13). Avança pela história das artes até atingir "Um Corpo Que Cai", de Hitchcock, e a boneca Barbie.

Investigação
A erudição de Stoichita se ramifica em digressões; o capítulo consagrado ao "Baco" de Sansovino [1486-1570] é um formidável momento de análise. Lacuna curiosa, a ausência de "Pygmalion", pequena ópera-balé de um ato, composta por Rameau [1683-1764], cujo libreto exprime os pensamentos atordoados de Galatéia ao emergir para a vida.
Outra ausência, o "Pigmalião" de Shaw e sua versão para a comédia musical "My Fair Lady". É bem verdade que não se trata aqui de estátua, mas Higgins recria Elisa pela fala, pelos gestos, pelas roupas.
Esse fetichismo do vestir, Stoichita o explora largamente, sublinhando sua insistência nas imagens medievais, seu papel crucial nas obsessões de "Um Corpo Que Cai" e na boneca Barbie, que se multiplica a si mesma pela infinita troca de roupas.

Velho filme
"The Phantom Creeps", de Beebe e Goodkind, com Bela Lugosi (1939, álbum de DVD com dez filmes de terror, St. Clair Vision, EUA).
A poesia das engenhocas modernas, os aeroplanos com jeito de brinquedo, a locomotiva de design futurista, as faíscas elétricas, os raios, as baratinhas recortadas na pureza das elegâncias geométricas. Ciência e tecnologia são mágicas, capazes de tudo. Inserções de trechos de outros filmes para encher lingüiça, de documentários recuperados (talvez a explosão do Hindenburg, que ocorreu em 1937). O cientista tem tantos poderes: tornar-se invisível, deflagrar pastilhas que são bombas com auxílio de aranhas, destruir fontes de energia, como na cena épica das torres. A face do robô desengonçado, brinquedo gigante: imaginário em aço das máscaras primitivas, todas, quaisquer: africanas, pré-colombianas, da Polinésia.

Redemoinho
"The Phantom Creeps" é o condensado de um "serial"; as situações mais estrambóticas se precipitam numa rapidez de vertigem. Lugosi, doloroso ao proclamar que será mestre do mundo, embriagado de loucura ao lançar seus explosivos do avião, gargalhando cada vez que destrói.


jorgecoli@uol.com.br


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