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+Livros
A vil realidade
"120 Dias de Sodoma", de Sade, e "Incesto", de Anaïs Nin, retratam
a perversão
e o erotismo
místico
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NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Na segunda página
da nova tradução
de "Os 120 Dias de
Sodoma" [ed. Iluminuras, trad.
Alain François, 368 págs., R$
47], há uma foto impressionante. Não, não se trata de nada escandaloso ou pornográfico. É
apenas a foto do rolo do manuscrito do romance.
Exatamente: o Marquês de
Sade [1740-1814] escreveu sua
obra mais célebre à mão, numa
única e longa folha de papel,
sem os familiares recursos de
edição de um processador de
texto. Não havia cópia, e esse
manuscrito ficou perdido por
muito tempo, para desespero
do autor, que morreu sem tê-lo
recuperado.
Acostumados ao computador, é fácil esquecermos que,
há 200 anos, salvar um arquivo
num pendrive era impensável.
"Agora, amigo leitor, prepara
teu coração e teu espírito para
o relato mais impuro já feito
desde que o mundo existe."
Nas páginas seguintes, a promessa, feita pelo narrador do
romance, é cumprida à risca. O
leitor tem, então, a descrição
minuciosa das atividades mais
hediondas levadas a termo no
castelo de Silling, comandadas
pelos depravados Curval, Durcet, Blangis e o Bispo.
"Os 120 Dias de Sodoma" são
o catálogo pedagógico, completo e detalhado, da devassidão.
São 600 perversões, divididas
em quatro categorias: 150 paixões simples, 150 paixões duplas, 150 paixões criminosas e
150 paixões assassinas.
Razão e gozo
A razão enciclopédica a serviço do gozo criminoso: que parceria poderia ser mais abominável? A organização e a análise
dos vícios são metódicas, matemáticas, exaustivas, configurando o "inventário do abismo", nas palavras de Eliane Robert Moraes, que apresenta o
volume.
"Sou um libertino, mas não
sou um criminoso nem um assassino", Sade costumava dizer.
E completava: "Concebi tudo o
que se pode conceber nesse gênero, mas não fiz tudo o que
concebi e certamente jamais o
farei".
Aí está o triunfo da arte sobre
a vida, da ficção sobre a realidade. O gozo maior ocorre no plano poético, filosófico. Um pouco antes de Nietzsche, Sade matou Deus. Um pouco antes de
Darwin, ele desmistificou a natureza, que não é mãe amorosa,
é madrasta cruel.
A natureza destrói indiferentemente tudo o que cria, lançando as criaturas umas contra
as outras. A lei do desejo, realizada plenamente no crime e na
erotização do horrível, é a única
lei verdadeira.
Mas é claro que essa convicção não agradou ao Antigo Regime, tampouco aos vitoriosos
de 1789. As idéias do enciclopedista mais excêntrico que o materialismo do Século das Luzes
conseguiu gerar foram perseguidas por monarquistas e revolucionários.
Sade é sexo e crueldade,
crueldade ilimitada. Anaïs Nin
[1903-77] é sexo e afeto, afeto
ilimitado.
Escrita compulsiva
Ambos organizaram, por
meio da "manuscritura", o caótico mundo das próprias paixões, escapando assim à loucura da banalidade. Ainda hoje
ambos continuam empurrando
a censura e o obscurantismo
para longe, libertando, ao menos, a literatura.
Anaïs Nin escrevia compulsivamente. Seus ensaios, contos
e romances trazem a bem-vinda marca dessa compulsão.
Mas foi no caudaloso diário
mantido desde jovem que ela se
realizou plenamente. Isso ficou
mais visível com a publicação
da versão original, sem cortes,
após a morte da autora.
"Incesto" [ed. L&PM, trad.
Guilherme da Silva Braga, 368
págs., R$ 63] traz os acontecimentos ocorridos entre outubro de 1932 e novembro de
1934. Prossegue aqui o relacionamento com o escritor Henry
Miller, iniciado no livro anterior, "Henry & June", filmado
por Philip Kaufman.
Relacionamento tempestuoso e libertador, no início.
Mas, agora, sem a mesma intensidade. A autora, mais amadurecida, atraiu para si outros
amantes, outros amores. Entre
eles, seu pai.
Nesse diário, pautadas por
um impulso erótico de natureza quase mística, as marcas do
feminino estão em cada sentença, em cada parágrafo, em
cada orgasmo. Isso deve irritar
bastante os que gostariam que
a literatura não tivesse gênero.
Sedução vingativa
Dessas marcas, a mais importante é a união do amor com
a vileza. A certa altura a autora
desabafa: "Vou escrever a verdade absoluta em meu diário
porque a realidade merece ser
descrita em termos vis".
Tem início o jogo de vingativa sedução com o pai, que abandonou a família quando Anaïs
ainda era menina.
Para a filha, cuja liberdade
sexual desafia voluptuosamente as interdições da moralidade
geral, a beleza e o vigor masculino do pai são os atributos de
um rei, irresistíveis.
Aos olhos da escritora, mesmo amando-os intensamente,
Henry Miller, Otto Rank, René
Allendy e Hugh Guiler (o marido) são homens feios. Joaquin
Nin não: "Papai, o grego", ela
sempre repete.
O tipo de liberdade satânica
procurado por Sade é muito diferente do tipo de liberdade
diabólica encontrado por
Anaïs. Os dois liberais-libertinos ocupam os extremos do eixo da libertação.
Em "Incesto", narrativa também metódica e detalhada,
Anaïs cria uma bela divisa para
si mesma: "Viver sinfonicamente". Viver intensamente
cada som, cada traição, cada parágrafo, cada suplício.
Além dos protagonistas, outros instrumentos importantes
nessa sinfonia do início da década de 1930 são o modernismo
na arte e na literatura, o feminismo e a psicanálise, deliciosamente datados. Orientada por
Otto Rank, Anaïs encontrou na
psicanálise a estratégia perfeita
para enfrentar Joaquin: seduzir o pai e o abandonar, como
punição por tê-la abandonado
quando menina.
NELSON DE OLIVEIRA é escritor e autor de
"Ódio Sustenido" (Língua Geral) e "A Oficina do
Escritor" (Ateliê Editorial), entre outros.
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