São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2007

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Ponto de fuga

A arte da fofoca


John Berendt escreve romances de não-ficção, segundo a fórmula inventada por Truman Capote; interessa-se pelas relações entre as pessoas, nunca por um herói único


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Miss Marple é um personagem de Agatha Christie: velhota tranqüila, é capaz de decifrar os crimes mais intrincados. Mora na cidadezinha de St. Mary Mead e sabe de tudo o que se passa ali. Quando lhe dizem que gosta de fofocas, retruca: "Não é fofoca. É estudo da natureza humana".
Essa poderia ser a resposta aos venezianos que criticaram o livro de John Berendt, "Cidade dos Anjos Caindo" (ed. Objetiva), e o caracterizaram como uma reunião de mexericos superficiais. Berendt passou alguns anos em Veneza, logo depois do incêndio que aniquilou o mítico teatro La Fenice em 1996. Era talvez a mais bela sala de ópera do mundo. Sua destruição foi uma catástrofe e um trauma. Seguiu-se um longo processo jurídico sobre as causas e os responsáveis pelo incêndio.
Ao mesmo tempo decorriam, intermináveis, as peripécias da reconstrução. Berendt acompanhou tudo isso ramificando o mais que pôde seus interesses. Infiltrou-se no meio dos americanos atuantes em associações para a preservação da cidade, na maioria milionários. Esmiuçou a relação desses filantropos com a antiga aristocracia local. Berendt escreve "non-fiction novels", romances de não-ficção, segundo a fórmula inventada por Truman Capote [1924-84].
Sua especificidade é a mesma de Miss Marple: interessa-se pelas relações entre as pessoas. Nunca por um herói único, mas pelo grupo, que se reflete a si mesmo nos comentários e nas reações individuais.

Os nós da rede
Berendt é rigoroso. Descreve pessoas que existem. O talento do escritor transforma-as em personagens e as impõe ao imaginário do leitor. Reproduz com elegância artística os comentários que ouve. Um de seus princípios é que a força estilística não interfira na fidelidade daquilo que é contado. Outro, que não haja conclusões a serem tiradas.
As contradições dos depoimentos transcritos diminuem a possibilidade de chegar a qualquer verdade objetiva. Em compensação, os insights que a trama oferece são insubstituíveis. Um historiador começaria buscando documentos dos processos, artigos na imprensa, arquivos pessoais ou de instituições. Poderia com isso fazer uma tese bem fundada.
Dificilmente porém ela traria a sensação de experiência humana de que "Cidade dos Anjos Caindo" é capaz.

Máscaras
Um livro de fofocas superficiais, disseram os venezianos. Resta saber se a profundidade não está condenada à superfície. Sobretudo em águas tão turvas. Berendt toca em pontos delicados: a herança de Ezra Pound [1885-1972] e de sua companheira Olga Rudge [1895-1996], de Peggy Guggenheim [1898-1979] também: ilustres americanos que viveram em Veneza. Mexericos e fofocas, grandes instrumentos de intrigas, propagandas, calúnias, indignações coletivas, são ótimas fontes para a história. Fazem desistir de contar o que foi, para contar o que disseram que foi.
Um testemunho neutraliza o outro. No final dos romances, Miss Marple sempre aponta o culpado. No livro de Berendt, a própria noção de culpa se complica e se dilui. Sua narração é feita de incertezas, o que é uma excelente lição de método.

Minerva
O mais célebre livro de Berendt é "Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal" (Objetiva), outro livro coletivo e polifônico. Passa-se em Savannah, cidade do Estado norte-americano da Geórgia. Clint Eastwood o transformou em uma de suas obras-primas.


jorgecoli@uol.com.br


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