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Hiato de uma vida
Historiadores fazem restrições à biografia do sociólogo Gilberto Freyre escrita por Enrique Larreta e Guillermo Giucci
MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE
PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA
D
ada a importância
de Gilberto Freyre
na história intelectual do Brasil, ele
certamente merece
uma biografia extensa que
acompanhe o desenvolvimento
de seu pensamento, colocando
seus muitos livros e artigos em
seus contextos culturais.
O livro de Enrique Larreta e
Guillermo Giucci ["Gilberto
Freyre - Uma Biografia Cultural", tradução de Josely Vianna
Baptista, ed. Civilização Brasileira, 714 págs., R$ 80] propõe-se a fazer exatamente isso, mas
se restringindo ao período
1900-1936.
Os autores reivindicam a novidade de seu ambicioso empreendimento referindo-se ao
"exame preciso da documentação histórica" a fim de corrigir
uma falha nos estudos freyrianos, marcados, como dizem,
por "um hiato entre o conhecimento de fontes primárias sobre Gilberto Freyre e a acumulação de comentários baseados
em leituras secundárias".
Infelizmente o livro não é tão
inovador quanto os autores
pretendem.
Diferentemente de vários estudos recentes como, por
exemplo, os de Ricardo Benzaquem, Ronaldo Vainfas, Marcos Chor Maio, Antonio Dimas,
Simone Meucci e Jeffrey Needell, ele não oferece ao leitor
nem novas interpretações do
trabalho de Freyre nem a apresentação e discussão de novos
documentos importantes. É, ao
contrário, essencialmente um
trabalho de síntese.
Ora, trabalhos de síntese são
obviamente indispensáveis, e
tão mais bem-vindos quanto
escritos de modo acessível e
fluente como este.
No entanto, mesmo como
um trabalho de síntese, a nova
biografia está aberta a sérias
críticas, duas em especial: utiliza acriticamente muitas de
suas fontes e reconhece insuficientemente o trabalho de outros estudiosos de Freyre.
Os dois autores contam a história do jovem Freyre (em detalhes nem sempre significativos) baseando-se amplamente
nas palavras do próprio biografado, um autor que falava muito de si mesmo e que, como
tantas figuras ilustres, esteve
muito envolvido na sua auto-apresentação.
Textos de Freyre -desde o
conhecido "diário" "Tempo
Morto" [Global], que é uma autobiografia em forma de diário,
até os menos conhecidos, como
um longo manuscrito autobiográfico, a ser publicado proximamente também pela Global- são citados e amplamente
parafraseados, fazendo com
que grande parte dos capítulos
iniciais da biografia seja um
pastiche do rico material autobiográfico que Freyre deixou.
"Ficções da memória"
Apesar de Larreta e Giucci
estarem aparentemente conscientes da propensão de Freyre
para o que eles chamam de "automistificação" ou "auto-estilização" e de se referirem em nota ao caráter problemático de
"Tempo Morto" como fonte
histórica, eles desconsideram
suas próprias advertências,
lendo literalmente como narrativa de vida o que não passa,
muitas vezes, de "ficções da
memória", ou seja, palavras de
um homem maduro, de prosa
brilhante e convincente, revivendo sua juventude.
Como resultado, vemos opiniões de Freyre sendo apresentadas como fatos consagrados,
enganos serem perpetuados e
recordações idealizadas pela
nostalgia sendo tomadas como
documentação de realidades
vividas.
Para só mencionar dois
exemplos, seu amigo Bilden
não "afogou-se no álcool" e Oscar Wilde não era "considerado
vulgar" na Oxford que Freyre
conheceu, como é afirmado.
Com um sistema de notas nada convencional, para não dizer
totalmente falho, que confunde
o leitor, ao invés de esclarecê-lo, o livro lhe dá a entender que
esses são "fatos" pesquisados
pelos autores, quando são, na
verdade, opiniões de Freyre.
É ele que escreve em "Tempo
Morto" que em Oxford "quase
não se fala de Oscar Wilde. É
considerado vulgar".
Já o modo como os autores
tratam de seus muitos predecessores no estudo de Gilberto
Freyre levanta outras sérias
questões sobre procedimento
intelectual. Muitas vezes eles
resumem interpretações de outros estudiosos sem dar as devidas referências no texto ou em
notas, de tal modo que leitores
incautos ou desinformados
provavelmente lhes darão crédito por descobertas e interpretações que não são originalmente suas.
Mas, muito mais importante
do que isso, tal procedimento
representa uma grande descortesia para com o leitor e um
empobrecimento lamentável
do diálogo intelectual.
Biografia interrompida
Para citar um único exemplo,
em três ocasiões eles discutem
o diálogo de Freyre com autores espanhóis, como Angel Ganivet, sem fazer nenhuma referência ao livro de Elide Rugai
Bastos, "Gilberto Freyre e o
Pensamento Hispânico"
[Edusc], que trata magistralmente do mesmo assunto.
A parte mais valiosa e original do livro não é tanto a biografia, mas os comentários de
textos de Freyre e de seus contemporâneos, incluindo a discussão dos primeiros críticos
de "Casa-Grande e Senzala"
[ed. Global], apesar de que aqui
novamente os autores devem
mais do que admitem ao seu
predecessor Edson Nery da
Fonseca.
A biografia é interrompida
em 1936 e é afirmado que a partir dessa época a obra de Freyre
seria "sobretudo a ampliação e
o desenvolvimento das idéias e
intuições anteriores".
Para quem acredita, no entanto, que uma biografia tem de
dar espaço para as transformações, o fluxo e as contingências
da vida -e resistir ao impulso
de estruturar a vida de alguém
muito cedo e redutoramente
num padrão de explicação-
resta muito a ser feito.
No nosso entender, um grande desafio é agora reconstruir,
analisar e interpretar as atividades e o pensamento de Freyre entre 1936 e 1987, quando ele
se tornou um ídolo, ou uma
"instituição nacional", como
dizem os autores, e, tal como
um monumento coberto de
grafite, passou a ser venerado
por uns e execrado por outros.
MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE é professora
aposentada da USP e pesquisadora associada do
Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge. É autora de "Gilberto
Freyre - Um Vitoriano dos Trópicos" (Unesp).
PETER BURKE é professor de história cultural
da Universidade de Cambridge e autor de "Uma
História Social do Conhecimento" (Zahar). Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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