São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2007

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Hiato de uma vida

Historiadores fazem restrições à biografia do sociólogo Gilberto Freyre escrita por Enrique Larreta e Guillermo Giucci

MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE
PETER BURKE
ESPECIAL PARA A FOLHA

D ada a importância de Gilberto Freyre na história intelectual do Brasil, ele certamente merece uma biografia extensa que acompanhe o desenvolvimento de seu pensamento, colocando seus muitos livros e artigos em seus contextos culturais.
O livro de Enrique Larreta e Guillermo Giucci ["Gilberto Freyre - Uma Biografia Cultural", tradução de Josely Vianna Baptista, ed. Civilização Brasileira, 714 págs., R$ 80] propõe-se a fazer exatamente isso, mas se restringindo ao período 1900-1936. Os autores reivindicam a novidade de seu ambicioso empreendimento referindo-se ao "exame preciso da documentação histórica" a fim de corrigir uma falha nos estudos freyrianos, marcados, como dizem, por "um hiato entre o conhecimento de fontes primárias sobre Gilberto Freyre e a acumulação de comentários baseados em leituras secundárias".
Infelizmente o livro não é tão inovador quanto os autores pretendem. Diferentemente de vários estudos recentes como, por exemplo, os de Ricardo Benzaquem, Ronaldo Vainfas, Marcos Chor Maio, Antonio Dimas, Simone Meucci e Jeffrey Needell, ele não oferece ao leitor nem novas interpretações do trabalho de Freyre nem a apresentação e discussão de novos documentos importantes. É, ao contrário, essencialmente um trabalho de síntese.
Ora, trabalhos de síntese são obviamente indispensáveis, e tão mais bem-vindos quanto escritos de modo acessível e fluente como este.
No entanto, mesmo como um trabalho de síntese, a nova biografia está aberta a sérias críticas, duas em especial: utiliza acriticamente muitas de suas fontes e reconhece insuficientemente o trabalho de outros estudiosos de Freyre. Os dois autores contam a história do jovem Freyre (em detalhes nem sempre significativos) baseando-se amplamente nas palavras do próprio biografado, um autor que falava muito de si mesmo e que, como tantas figuras ilustres, esteve muito envolvido na sua auto-apresentação.
Textos de Freyre -desde o conhecido "diário" "Tempo Morto" [Global], que é uma autobiografia em forma de diário, até os menos conhecidos, como um longo manuscrito autobiográfico, a ser publicado proximamente também pela Global- são citados e amplamente parafraseados, fazendo com que grande parte dos capítulos iniciais da biografia seja um pastiche do rico material autobiográfico que Freyre deixou.

"Ficções da memória"
Apesar de Larreta e Giucci estarem aparentemente conscientes da propensão de Freyre para o que eles chamam de "automistificação" ou "auto-estilização" e de se referirem em nota ao caráter problemático de "Tempo Morto" como fonte histórica, eles desconsideram suas próprias advertências, lendo literalmente como narrativa de vida o que não passa, muitas vezes, de "ficções da memória", ou seja, palavras de um homem maduro, de prosa brilhante e convincente, revivendo sua juventude.
Como resultado, vemos opiniões de Freyre sendo apresentadas como fatos consagrados, enganos serem perpetuados e recordações idealizadas pela nostalgia sendo tomadas como documentação de realidades vividas. Para só mencionar dois exemplos, seu amigo Bilden não "afogou-se no álcool" e Oscar Wilde não era "considerado vulgar" na Oxford que Freyre conheceu, como é afirmado.
Com um sistema de notas nada convencional, para não dizer totalmente falho, que confunde o leitor, ao invés de esclarecê-lo, o livro lhe dá a entender que esses são "fatos" pesquisados pelos autores, quando são, na verdade, opiniões de Freyre. É ele que escreve em "Tempo Morto" que em Oxford "quase não se fala de Oscar Wilde. É considerado vulgar".
Já o modo como os autores tratam de seus muitos predecessores no estudo de Gilberto Freyre levanta outras sérias questões sobre procedimento intelectual. Muitas vezes eles resumem interpretações de outros estudiosos sem dar as devidas referências no texto ou em notas, de tal modo que leitores incautos ou desinformados provavelmente lhes darão crédito por descobertas e interpretações que não são originalmente suas. Mas, muito mais importante do que isso, tal procedimento representa uma grande descortesia para com o leitor e um empobrecimento lamentável do diálogo intelectual.

Biografia interrompida
Para citar um único exemplo, em três ocasiões eles discutem o diálogo de Freyre com autores espanhóis, como Angel Ganivet, sem fazer nenhuma referência ao livro de Elide Rugai Bastos, "Gilberto Freyre e o Pensamento Hispânico" [Edusc], que trata magistralmente do mesmo assunto. A parte mais valiosa e original do livro não é tanto a biografia, mas os comentários de textos de Freyre e de seus contemporâneos, incluindo a discussão dos primeiros críticos de "Casa-Grande e Senzala" [ed. Global], apesar de que aqui novamente os autores devem mais do que admitem ao seu predecessor Edson Nery da Fonseca.
A biografia é interrompida em 1936 e é afirmado que a partir dessa época a obra de Freyre seria "sobretudo a ampliação e o desenvolvimento das idéias e intuições anteriores". Para quem acredita, no entanto, que uma biografia tem de dar espaço para as transformações, o fluxo e as contingências da vida -e resistir ao impulso de estruturar a vida de alguém muito cedo e redutoramente num padrão de explicação- resta muito a ser feito.
No nosso entender, um grande desafio é agora reconstruir, analisar e interpretar as atividades e o pensamento de Freyre entre 1936 e 1987, quando ele se tornou um ídolo, ou uma "instituição nacional", como dizem os autores, e, tal como um monumento coberto de grafite, passou a ser venerado por uns e execrado por outros.


MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE é professora aposentada da USP e pesquisadora associada do Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Cambridge. É autora de "Gilberto Freyre - Um Vitoriano dos Trópicos" (Unesp).
PETER BURKE é professor de história cultural da Universidade de Cambridge e autor de "Uma História Social do Conhecimento" (Zahar). Escreve na seção "Autores", do Mais! .


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