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Cana de assucar
RELATOR ESPECIAL DA ONU SOBRE O DIREITO À ALIMENTAÇÃO, O SOCIÓLOGO SUÍÇO JEAN ZIEGLER ATACA A "REFEUDALIZAÇÃO" DA SOCIEDADE E ACUSA O BRASIL DE AUMENTAR A FOME NO MUNDO AO INVESTIR NO ETANOL DERIVADO
DA CANA-DE-AÇÚCAR
MARCELO NINIO
DE GENEBRA
O
monstro está de
volta. Quatro séculos depois de
engordar as oligarquias e escravizar
os miseráveis no período colonial, a cana-de-açúcar volta a
ganhar a mesma aura de santidade no Brasil. E com efeitos
sociais semelhantes.
O alerta, exposto em tom
quase dramático, é do sociólogo suíço Jean Ziegler, que se
tornou um dos mais duros críticos da produção de biocombustíveis, incluindo o etanol
brasileiro. Como relator especial da ONU sobre o Direito à
Alimentação, Ziegler apresentou um estudo no fim de agosto
em que aponta a febre do biocombustível como um dos
principais fatores da alta nos
preços dos produtos agrícolas
básicos, com impacto direto no
aumento da fome no mundo.
O fato de ser um admirador
confesso do presidente Lula
não impediu o polêmico ex-deputado socialista de declarar
guerra ao projeto mais celebrado do governo brasileiro internacionalmente. "Usar terras de
agricultura para o etanol é um
crime", diz Ziegler. "Socialmente é um enorme retrocesso
para o Brasil."
Em conversa com a Folha no
pátio do Instituto de Estudos
do Desenvolvimento, onde leciona em Genebra, Ziegler chamou de "hipócrita" o argumento do governo brasileiro em defesa do etanol.
Ele também explicou a tese
de seu livro mais recente, "O
Império da Vergonha" (ainda
não publicado no Brasil), segundo a qual o poder excessivo
das multinacionais mergulhou
o mundo em um período de
"refeudalização".
Leia a seguir os principais
trechos da entrevista.
FOLHA - O sr. sempre demonstrou
admiração pelo presidente Lula. O
etanol mudou essa opinião?
JEAN ZIEGLER - O presidente Lula
é um homem profundamente
honesto e autêntico. O programa Bolsa Família é muito bom.
Tirar 11 milhões de pessoas da
pobreza é louvável. Mas a conversão de terras de agricultura
em terras para o bioetanol é um
erro profundo.
A fome continua sendo o problema primordial do Brasil. Segundo a Pastoral da Terra, há
22 milhões de subnutridos no
Brasil. Um dos principal argumentos do governo brasileiro é
o de que o etanol brasileiro é
feito da cana, que não é usada
para alimentação. Com isso, estende a cana a todo lugar.
FOLHA - Que mal há nisso?
ZIEGLER - Os dois maiores sociólogos da história do Brasil,
Gilberto Freyre e Fernando
Henrique Cardoso, em seus livros mais famosos, "Casa-Grande e Senzala" e "Capitalismo e Escravidão", defendem a
mesma tese: a cana-de-açúcar é
a desgraça do país.
Latifúndio, fome, subdesenvolvimento, miséria, tudo isso
vem do açúcar. Milhares de cidades e vilarejos passam a ser
cercados por esse monstro, que
é a cana-de-açúcar.
Durante um tempo o açúcar
sofreu um declínio, e a agricultura se desenvolveu. Agora esse
monstro está de volta, devorando a terra da agricultura. O açúcar voltou a ser santificado, como na época da colônia, quando a oligarquia enriqueceu e a
música, a cultura, tudo era pago
pelo açúcar.
Em vez de o PT promover a
agricultura familiar, volta ao
açúcar, que significa concentração de terras nas mãos das
multinacionais e das oligarquias. É muito mais que um
problema de produção.
Socialmente o Brasil sofre
um enorme retrocesso, volta ao
período colonial.
FOLHA - O sr. não vê diferença entre o etanol de cana e o feito de alimentos como o milho, como o norte-americano?
ZIEGLER - Concordo que há diferença. Com um tanque de 50 litros, um carro movido a etanol
de milho consome 205 quilos
de milho. A mesma quantidade
é suficiente para alimentar
uma criança mexicana por um
ano. No momento em que enche o tanque, você tira o alimento de uma criança. É uma
conseqüência direta.
Mas o argumento brasileiro é
hipócrita. Porque, se você aumenta a produção de cana, isso
ocorre à custa de plantações de
alimentos, o que dá no mesmo.
Há outro argumento usado
pelo presidente Lula, o de que o
Brasil tem 90 milhões de hectares não cultivados.
O problema é que o investimento e a água usados para o
etanol acabam sendo tirados de
outros cultivos. E, quando esse
modelo é adotado, o alimento
passa a ser importado.
O que acontecerá com a miséria no Sergipe, Piauí, Pará,
em Alagoas, onde as pessoas
não têm terras ou têm áreas pequenas demais? Essa população de 22 milhões de desnutridos vai aumentar.
Portanto, o argumento de
que a cana não é alimento é totalmente hipócrita. Outro efeito negativo do etanol é a devastação das florestas na Amazônia e no Mato Grosso.
FOLHA - O governo diz que praticamente não há plantio de cana na
Amazônia.
ZIEGLER - Mas há. Há destruição
de floresta da Amazônia não só
para a plantação de soja, mas
também para a de cana.
FOLHA - O lado positivo do etanol,
como a preservação do ambiente e o
aumento do emprego, não compensa essas desvantagens?
ZIEGLER - O lado negativo é
muito maior. A fome é o maior
problema da humanidade, o
mais urgente, e continua a ser a
principal causa de mortes no
mundo. No ano passado, 36 milhões de pessoas morreram de
causas diretas ou indiretas ligadas à desnutrição.
A cada cinco segundos uma
criança abaixo de dez anos
morre de fome. A cada quatro
minutos, alguém perde a visão
por falta de vitamina A. Ao menos 854 milhões de pessoas sofreram com desnutrição em
2006. E o problema está aumentando, porque em 2005 esse número era de 842 milhões.
A fome continua a ser a principal causa de mortes neste planeta. Atinge um em cada seis
seres humanos.
O etanol promete mais empregos, mas no meu relatório
eu mostro que isso não é verdade. No Brasil, cem hectares de
terra dedicados à agricultura
familiar geram 35 empregos,
enquanto a mesma área dedicada à plantação industrial de cana gera apenas dez empregos.
O etanol aumenta a miséria e
o desemprego. A terra se torna
tão cara que as famílias não
conseguem mais subsistir. É
um retrocesso social histórico e
um afastamento de tudo a que o
Brasil moderno aspira.
FOLHA - Como a alta nos preços
dos alimentos está afetando o direito à alimentação?
ZIEGLER - Em 2005, uma tonelada de trigo custava US$ 145
na Bolsa de Chicago. Hoje esse
preço pulou para US$ 352. Não
é por falta de produção. A produção de trigo neste ano foi de
2,1 bilhões de toneladas. O milho teve a mesma explosão.
Dos 53 países africanos, 31
têm que recorrer aos mercados
mundiais para cobrir seus déficits de alimentos, pois sua produção é insuficiente para suprir
o mercado interno. E têm que
pagar preço de mercado.
Se esses alimentos sobem
tanto de preço, esses países não
conseguem manter suas populações alimentadas.
E os preços das commodities
agrícolas estão subindo por
causa do aumento da demanda
causado pela febre dos biocombustíveis, como o etanol.
FOLHA - Não apenas.
ZIEGLER - Sim, mas principalmente por causa do etanol. O
Programa Mundial de Alimentos da ONU no ano passado alimentou e manteve vivas 91 milhões de pessoas com ajuda humanitária. Mais de 60% dessa
ajuda veio de excedente na produção americana.
O "New York Times" noticiou que neste ano o departamento da Agricultura fornecerá apenas metade do volume de
ajuda fornecida no ano passado, porque os preços estão tão
altos que eles não podem mais
comprar o excedente.
Nos campos de Darfur [Sudão], por exemplo, há 2,2 milhões de pessoas deslocadas pela guerra. Lá a ONU não está
conseguindo manter as pessoas
alimentadas e vivas. Por causa
do bioetanol. Ponto. Se isso não
é um crime, não sei o que é.
FOLHA - O sr. não leva em consideração o outro lado desse debate?
ZIEGLER - Não. Há argumentos
em defesa do etanol, mas nenhum é mais importante do
que manter as pessoas alimentadas. O argumento da mudança climática, acelerada por causa do petróleo e diesel, faz sentido. Mas a prioridade absoluta
é manter o ser humano vivo.
FOLHA - O que o senhor propõe?
ZIEGLER - Proponho uma moratória. Não vou tão longe como
organizações como Greenpeace, Oxfam e Médicos sem Fronteiras, que querem a interdição
do etanol. Proponho uma moratória de cinco anos. O motivo
é simples: quero ganhar tempo.
Nos laboratórios de São Paulo e
Zurique os cientistas estão a
ponto de criar uma tecnologia
que transforme lixo agrícola
em bioetanol.
Outro exemplo: a Mercedes-Benz está desenvolvendo na
Índia um arbusto, a Jatropha,
que cresce apenas em regiões
semidesérticas e é totalmente
adequado para ser convertido
em etanol. Tem frutos quase
venenosos, não comestíveis.
Em cinco anos esse método
estará avançado para que em
áreas do sertão de Pernambuco, por exemplo, possam ser
plantadas mudas de Jatropha,
onde alimentos não crescem.
Fiz essa proposta na ONU
em 5/10 passado e fui violentamente atacado pelo embaixador brasileiro. Um representante do governo boliviano me
ligou para dizer que a Bolívia
apresentará uma resolução em
dezembro para votar a proposta. E estou razoavelmente otimista de que venceremos.
FOLHA - Em entrevista à Folha, o
secretário-geral, Ban Ki-moon, disse
que sua posição sobre o etanol não é
a da ONU.
ZIEGLER - É verdade. O relator é
totalmente independente. Meu
papel é escrever um relatório
como especialista e fazer recomendações.
FOLHA - Que lições tirou do processo de elaboração do relatório?
ZIEGLER - Aprendi que os conglomerados agrícolas, o chamado agribusiness, é imensamente poderoso no mundo de hoje.
Monsanto, Syngenta, Cargill.
Em 2006, as 500 maiores
empresas multinacionais privadas do mundo controlavam
52% do PIB mundial. É um poder imenso o desses atores não-governamentais. E exercem
uma pressão gigantesca no Brasil, sobretudo as americanas.
FOLHA - O que é a "refeudalização"
do mundo, de que o sr. fala em seu
último livro?
ZIEGLER - Vivemos o fim de uma
era. A Revolução Francesa
[1789] abriu caminho para a civilização que conhecemos, balizada por princípios como direitos humanos, poder com origem no povo, solidariedade,
justiça social, força da lei.
Esses valores estruturam o
mundo civilizado. Mas agora há
o nascimento de uma nova civilização: a globalização, o mundo de um só mercado. O capital
financeiro assumiu o poder.
Não o industrial ou o comercial, mas o poder financeiro. Isso criou uma riqueza imensa.
Na primeira década da globalização, entre 1992 e 2002, depois da queda da União Soviética, segundo o Banco Mundial, o
PIB mundial mais que dobrou.
O comércio triplicou. O consumo de energia dobra a cada
quatro anos. A produtividade é
imensa. Liberalização, privatização, livre circulação de capital e serviços, redução drástica
do setor público.
Isso liberou forças econômicas imensas, é verdade. Mas, ao
mesmo tempo, os senhores do
capital financeiro, as oligarquias, conquistaram um poder
que nenhum imperador, papa
ou rei jamais teve. Uma monopolização incrível: a refeudalização do mundo.
Ao mesmo tempo, o número
de famintos e de epidemias aumentou. A miséria hoje é pior
que no tempo da escravidão.
FOLHA - Os números mostram que
a globalização também tirou milhões de pessoas da pobreza, em
países como Brasil, Índia e China.
ZIEGLER - Não. Isso é uma ilusão
demográfica. Os números absolutos de pessoas vivendo em
pobreza extrema, com menos
de US$ 1 por dia, aumentaram.
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