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Janelas do espírito
"A Duas Vozes" analisa a relação entre os pensamentos e as obras da filósofa Hannah Arendt e do poeta Octavio Paz
CELSO LAFER
ESPECIAL PARA A FOLHA
N
o segundo semestre de 1965, Hannah Arendt foi
professora na Universidade Cornell,
nos Estados Unidos.
No semestre seguinte, Octavio Paz também lá foi professor
visitante. Foi a partir dessa
coincidência em Cornell que
Eduardo Jardim, grande conhecedor de Arendt e de Paz,
estudioso da dimensão filosófica da brasilidade modernista,
dos limites do moderno e de
Mário de Andrade, elaborou
com saber e sensibilidade o seu
livro: "A Duas Vozes - Hannah
Arendt e Octavio Paz".
A capa do livro é a janela entreaberta de uma sala de aula
do Goldwyn Smith Hall, situado no quadrângulo central do
campus de Cornell. A capa
aponta para uma metáfora do
processo do conhecimento: as
janelas do espírito se abrem
por dentro, como lembrava [o
jurista] Miguel Reale. No caso,
para continuar com Reale, pela
kantiana conjetura plausível da
verdade de um diálogo que
Hannah Arendt e Octavio Paz
poderiam ter encetado.
A aproximação entre Hannah Arendt e Octavio Paz é pertinente, pois a interação literatura-política é componente relevante dos seus respectivos
percursos. Disso posso dar testemunho porque vivi a experiência de ter sido aluno dos
dois nos cursos acima mencionados -o fato que suscitou a
imaginação narrativa do diálogo engendrado por Jardim.
A plausibilidade da conjetura
de um diálogo entre os dois, tal
como elaborado por Jardim,
tem a sustentá-la uma carta
que Paz me enviou em 12/11/
1972, quando lhe encaminhei
para publicação, no México,
um ensaio sobre Hannah
Arendt. Nessa carta escreveu:
"Conocí en New York, hace
unas semanas, a Hannah
Arendt y me encantó su vitalidad como antes me habia conquistado, al leerla su inteligencia e rectitud filosofica".
Como se vê, teria havido um
clima propício para o diálogo
engendrado por Jardim.
Seu livro se inicia com uma
introdução na qual justifica a
sua proposta. Arendt, nascida
na Alemanha em 1906, e Paz,
nascido no México em 1914, foram pensadores da crise e de
um novo início.
Sugere Jardim que o vigor
crítico que os caracterizou pode ter sido instigado pela experiência existencial de terem estado, ao mesmo tempo, inseridos e à margem de um núcleo
político-cultural dominante. O
contexto periférico de Hannah
Arendt foi dado pela vivência
da condição judaica no século
20. O de Octavio Paz, pela condição latino-americana. Esse é
o ponto de partida de "A Duas
Vozes", que se estrutura em
cinco partes.
No primeiro encontro,
Arendt e Paz tratam da política. Abordam a situação do século 20, os totalitarismos, os
tempos sombrios, o esgotamento da tradição e a erosão da
confiança no futuro.
O tesouro perdido das revoluções, que Arendt discute em
"On Revolution" [Sobre a Revolução] e os descaminhos da
revolução mexicana, de que
Paz trata em "O Labirinto da
Solidão" e em "Posdata", são
parte da tessitura desse primeiro encontro dialógico. As
distinções e aproximações entre revolta, revolução e rebelião que Paz propôs em "Corriente Alterna" (1967) estão
presentes, em surdina, nesse
primeiro encontro.
No segundo, e na seqüência
dos temas anteriormente discutidos, o crivo crítico de ambos se debruça sobre o conceito
da história, sobre a cisão entre
pensamento e experiência, sobre poesia e revolução e sobre a
tradição da ruptura como a
contradição característica da
arte moderna, que comporta,
assim, uma analogia com o tema arendtiano do pensar a política sem o apoio do corrimão
de conceitos seguros.
O terceiro encontro tem Platão como ponto de partida.
Arendt discute a tradição da filosofia política, que se inicia
com Platão e que assume que a
teoria deve fornecer os critérios para a conduta dos homens de ação.
Despedida
Paz reflete sobre o teor depreciativo dos argumentos de
Platão em relação à poesia. O
dualismo ontológico -que hierarquiza, separando, de um lado, o mundo do ser e da verdade
e, de outro, o mundo do fenômeno e da aparência- é criticamente discutido por ambos no
diálogo sobre ação e poesia, vida e arte, poesia e amor, comunhão e solidão.
O terceiro encontro abre espaço para um colóquio sobre a
reflexão de Heidegger a respeito da temporalidade, com desdobramentos analíticos em
torno do tempo e do pensamento, um dos temas fortes de
Hannah Arendt, e do tempo e
da poesia, um dos grandes temas de Octavio Paz.
O quarto encontro retoma a
discussão arendtiana do tempo
no labor, no trabalho e na ação,
com a sua nota de imprevisibilidade que comporta, observo
eu, uma analogia com lance de
dados de Mallarmé, que não
abole o acaso. Esse quarto encontro se encerra com a busca
do presente.
O quinto encontro é o da despedida, lastreada nas afinidades e nas correspondências
analógicas por meio de uma reflexão conjunta sobre a palavra,
a metáfora, o vento do pensamento e a imaginação, entremeados por sugestivos comentários que ambos vão fazendo
sobre grandes figuras da literatura universal.
Concluo observando que a
crescente fortuna crítica de
Hannah Arendt tem levado estudiosos do seu legado a propor
diálogos do seu pensamento
com vários de seus contemporâneos. "A Duas Vozes" se insere com competência e qualidade nessa corrente de reflexão
em torno de "vidas paralelas"
no século 20.
CELSO LAFER é professor titular de direito na
USP e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. É autor de "A
Identidade Internacional do Brasil e a Política
Externa Brasileira" (ed. Perspectiva).
A DUAS VOZES
Autor: Eduardo Jardim
Editora: Record
(tel. 0/xx/21/2585-2000)
Quanto: R$ 25 (128 págs.)
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