São Paulo, domingo, 02 de dezembro de 2007

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Janelas do espírito

"A Duas Vozes" analisa a relação entre os pensamentos e as obras da filósofa Hannah Arendt e do poeta Octavio Paz

CELSO LAFER
ESPECIAL PARA A FOLHA

N o segundo semestre de 1965, Hannah Arendt foi professora na Universidade Cornell, nos Estados Unidos.
No semestre seguinte, Octavio Paz também lá foi professor visitante. Foi a partir dessa coincidência em Cornell que Eduardo Jardim, grande conhecedor de Arendt e de Paz, estudioso da dimensão filosófica da brasilidade modernista, dos limites do moderno e de Mário de Andrade, elaborou com saber e sensibilidade o seu livro: "A Duas Vozes - Hannah Arendt e Octavio Paz".
A capa do livro é a janela entreaberta de uma sala de aula do Goldwyn Smith Hall, situado no quadrângulo central do campus de Cornell. A capa aponta para uma metáfora do processo do conhecimento: as janelas do espírito se abrem por dentro, como lembrava [o jurista] Miguel Reale. No caso, para continuar com Reale, pela kantiana conjetura plausível da verdade de um diálogo que Hannah Arendt e Octavio Paz poderiam ter encetado.
A aproximação entre Hannah Arendt e Octavio Paz é pertinente, pois a interação literatura-política é componente relevante dos seus respectivos percursos. Disso posso dar testemunho porque vivi a experiência de ter sido aluno dos dois nos cursos acima mencionados -o fato que suscitou a imaginação narrativa do diálogo engendrado por Jardim.
A plausibilidade da conjetura de um diálogo entre os dois, tal como elaborado por Jardim, tem a sustentá-la uma carta que Paz me enviou em 12/11/ 1972, quando lhe encaminhei para publicação, no México, um ensaio sobre Hannah Arendt. Nessa carta escreveu: "Conocí en New York, hace unas semanas, a Hannah Arendt y me encantó su vitalidad como antes me habia conquistado, al leerla su inteligencia e rectitud filosofica".
Como se vê, teria havido um clima propício para o diálogo engendrado por Jardim. Seu livro se inicia com uma introdução na qual justifica a sua proposta. Arendt, nascida na Alemanha em 1906, e Paz, nascido no México em 1914, foram pensadores da crise e de um novo início.
Sugere Jardim que o vigor crítico que os caracterizou pode ter sido instigado pela experiência existencial de terem estado, ao mesmo tempo, inseridos e à margem de um núcleo político-cultural dominante. O contexto periférico de Hannah Arendt foi dado pela vivência da condição judaica no século 20. O de Octavio Paz, pela condição latino-americana. Esse é o ponto de partida de "A Duas Vozes", que se estrutura em cinco partes.
No primeiro encontro, Arendt e Paz tratam da política. Abordam a situação do século 20, os totalitarismos, os tempos sombrios, o esgotamento da tradição e a erosão da confiança no futuro. O tesouro perdido das revoluções, que Arendt discute em "On Revolution" [Sobre a Revolução] e os descaminhos da revolução mexicana, de que Paz trata em "O Labirinto da Solidão" e em "Posdata", são parte da tessitura desse primeiro encontro dialógico. As distinções e aproximações entre revolta, revolução e rebelião que Paz propôs em "Corriente Alterna" (1967) estão presentes, em surdina, nesse primeiro encontro.
No segundo, e na seqüência dos temas anteriormente discutidos, o crivo crítico de ambos se debruça sobre o conceito da história, sobre a cisão entre pensamento e experiência, sobre poesia e revolução e sobre a tradição da ruptura como a contradição característica da arte moderna, que comporta, assim, uma analogia com o tema arendtiano do pensar a política sem o apoio do corrimão de conceitos seguros.
O terceiro encontro tem Platão como ponto de partida. Arendt discute a tradição da filosofia política, que se inicia com Platão e que assume que a teoria deve fornecer os critérios para a conduta dos homens de ação.

Despedida
Paz reflete sobre o teor depreciativo dos argumentos de Platão em relação à poesia. O dualismo ontológico -que hierarquiza, separando, de um lado, o mundo do ser e da verdade e, de outro, o mundo do fenômeno e da aparência- é criticamente discutido por ambos no diálogo sobre ação e poesia, vida e arte, poesia e amor, comunhão e solidão. O terceiro encontro abre espaço para um colóquio sobre a reflexão de Heidegger a respeito da temporalidade, com desdobramentos analíticos em torno do tempo e do pensamento, um dos temas fortes de Hannah Arendt, e do tempo e da poesia, um dos grandes temas de Octavio Paz.
O quarto encontro retoma a discussão arendtiana do tempo no labor, no trabalho e na ação, com a sua nota de imprevisibilidade que comporta, observo eu, uma analogia com lance de dados de Mallarmé, que não abole o acaso. Esse quarto encontro se encerra com a busca do presente.
O quinto encontro é o da despedida, lastreada nas afinidades e nas correspondências analógicas por meio de uma reflexão conjunta sobre a palavra, a metáfora, o vento do pensamento e a imaginação, entremeados por sugestivos comentários que ambos vão fazendo sobre grandes figuras da literatura universal.
Concluo observando que a crescente fortuna crítica de Hannah Arendt tem levado estudiosos do seu legado a propor diálogos do seu pensamento com vários de seus contemporâneos. "A Duas Vozes" se insere com competência e qualidade nessa corrente de reflexão em torno de "vidas paralelas" no século 20.

CELSO LAFER é professor titular de direito na USP e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. É autor de "A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira" (ed. Perspectiva).


A DUAS VOZES
Autor:
Eduardo Jardim
Editora: Record (tel. 0/xx/21/2585-2000)
Quanto: R$ 25 (128 págs.)



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