São Paulo, domingo, 03 de janeiro de 2010

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Perturbação

SCORSESE FALA SOBRE "ILHA DO MEDO", THRILLER AMBIENTADO NUM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO QUE ESTREIA NO BRASIL EM MARÇO, E EXPLICA A IMPORTÂNCIA DE ORIENTAR JOVENS CINEASTAS


Scorsese não faz homenagens formais, mas é como se tivesse interiorizado toda a história do cinema


Andrew Medichini - 24.mai.07/Associated Press
O cineasta norte-americano Martin Scorsese, que receberá um prêmio pelo conjunto da obra na 67ª edição do Globo de Ouro, no próximo dia 17

SIMON SCHAMA

Ainda bem que o sofá no qual estou sentado é confortável e hospitaleiro, senão eu poderia ter caído dele com o susto: Martin Scorsese me diz que a verdadeira inspiração do tom e da voz dos personagens de "Os Bons Companheiros" (1990) não foi "Scarface" (1932, de Howard Hawks) ou "Inimigo Público" (1931, de William Wellman), mas "As Oito Vítimas" [1949, de Robert Hamer].
Mas, se você pensar nela por um instante, a revelação faz todo o sentido.
O tom de alegria assassina dos monólogos interiores de Ray Liotta ("Desde que me lembro, sempre quis ser um gângster") não é tão distante assim do plano frio de Dennis Price [em "As Oito Vítimas"] de abrir caminho por meio de assassinatos para chegar à classe alta que tem a audácia de desprezá-lo.
Os dois compartilham o sorrisinho irônico de quem sabe coisas que outros não sabem, o desprezo pelos babacas que fazem as coisas do jeito publicamente aceito.
Anarquia e risinhos maliciosos nunca estão muito distantes nas comédias britânicas do pós-guerra nem tampouco na ópera de maldades de Scorsese.
Os mafiosos de "Os Bons Companheiros" passam mais tempo gargalhando do que matando. Às vezes, as risadas são tão maníacas que se tem a impressão de que Robert De Niro, Liotta e Joe Pesci vão deslocar os maxilares, como jiboias gargalhando enquanto digerem uma cabra.

Homem incansável
Aos 67 anos, Scorsese está no auge de seu poder criativo, o que não é pouca coisa. Quando o encontrei pela primeira vez, 12 anos atrás, ele era editor convidado de uma edição da revista da Biblioteca do Congresso, modestamente intitulada "Civilization" [Civilização].
Queria conversar comigo sobre as páginas da revista dedicadas à arte da narrativa histórica na literatura e no cinema.
Eu me senti lisonjeado; ele estava inspirado. Falava rapidamente e em tom ardente, em grandes explosões de paixão filosófica e técnica, e me pareceu a própria definição de um homem incansável.
Agora, após um longo dia de trabalho na sala de edição, trabalhando sobre um piloto de "Boardwalk Empire", novo seriado dramático da HBO sobre Atlantic City na era da Lei Seca [que vigorou nos EUA entre 1920 e 1933], estrelado por Steve Buscemi, ele ainda conversa de forma entusiasmada, gerando faíscas que captam a carga pesada de sua imaginação carregada de ideias.
Seu novo filme, "Ilha do Medo", baseado em um thriller de Dennis Lehane e previsto para chegar aos cinemas dos EUA em 19/2 [e em 12/3 no Brasil], é ambientado em uma instituição para doentes mentais criminosos situada ao largo da costa de Massachusetts.
Faz o hotel de "O Iluminado" [1980, de Stanley Kubrick] ou o motel de Norman Bates em "Psicose" [1960, de Alfred Hitchcock] parecerem a Disneylândia.
Scorsese construiu o set em torno do que restava do antigo hospital. As macas ainda estavam no local, e o aço inoxidável do refeitório do hospital soltava um brilho malévolo.
"Você entrava no lugar e já sentia o ambiente de perturbação", afirma.
Na tela, Ben Kingsley e Leonardo DiCaprio (fazendo ele mesmo a maioria de suas cenas de ação) percorrem o lugar, um perseguindo e o outro fugindo, como gato e rato, enquanto a ilha fustigada por tempestades tem uma performance de tenebrosidade calvinista.
Se houvesse um Oscar de melhor atuação por parte de uma paisagem, "Ilha do Medo" seria o candidato favorito ao troféu.
Maluca colcha de retalhos de pesadelos e terrores, o filme foi, sob muitos aspectos, um desafio difícil de encarar.
Uma semana depois de iniciadas as filmagens, o diretor percebeu que estava diante das complicadíssimas sobreposições da história de Lehane, que lhe pediam que fizesse "três filmes ao mesmo tempo".
Mas o resultado de seu perfeccionismo e das atuações em que o elenco todo colabora é um triunfo do que se poderia descrever como entretenimento pesado -porém apenas no mesmo sentido em que trechos de "Rei Lear", de Shakespeare, também poderiam ser assim descritos.

Cinema interior
Como todos os trabalhos de Scorsese, "Ilha do Medo" é enriquecido pela enciclopédica memória cinematográfica do diretor.
Scorsese não faz homenagens formais, mas é como se tivesse interiorizado toda a história do cinema, convertendo-se em um arquivo vivo no qual pode buscar inspiração, não importa o gênero no qual possa estar trabalhando.
Sua gama cinematográfica é verdadeiramente espantosa. O mesmo diretor que criou o doloroso "Touro Indomável" (1980) e o sofrido, latejante "Vivendo no Limite" (1999), também criou a belíssima paciência de "Kundun" (1997), em que a câmera deixa um menino chegar, em seu próprio ritmo, ao entendimento do que significa ser o dalai-lama.
O espírito condutor do grande cineasta indiano Satyajit Ray [1921-92] parecia estar ao lado de Scorsese quando este dissolveu a câmera na perspectiva do menino escolhido para ser mestre.
Então, quais foram os filmes que o guiaram desta vez? "Para criar o clima, "Sangue de Pantera" [1942], "A Morta-Viva" [1943] e "Fuga do Passado" [1947]", diz, como se eu naturalmente soubesse tudo sobre a obra do cineasta francês Jacques Tourneur [1904-77].
Flagrado como um universitário que não pesquisou suficientemente o tema de um trabalho, faço uma busca rápida no YouTube, mais tarde, e lá estão os filmes de Tourneur, deslocados, com roteiros enxutos, deixando marcas perturbadoras na psique.
Essa imersão total funciona à maneira de um curador. Scorsese não se limita a fazer filmes individuais, buscando o sucesso nas bilheterias e no frenesi anual das premiações de cinema, embora fosse preciso ser inumano para não desejar as duas coisas.

Homem de sorte
Mas ele sempre se sentiu um homem de sorte por poder trabalhar em uma arte na qual é "viciado" desde que, quando ainda era um coroinha com bronquite no Queens, em Nova York, passava as manhãs de sábado enfeitiçado no escurinho do cinema.
Ou quando assistia, na TV em preto e branco (como eu também, a um oceano de distância, em Londres), a filmes de época de Alexander Korda, como "Os Amores de Henrique 8º" (1933) ou "Grandes Esperanças" (1946), de David Lean.
Sem nunca enxergar sua sorte como algo que é seu de direito (afinal, foi preciso aguardar um tempo vergonhoso para que o mundo do cinema finalmente lhe devolvesse o favor, com um Oscar de melhor diretor por "Os Infiltrados", de 2006), Scorsese vem fazendo tudo o que pode para cuidar do banco de memórias do cinema.
Ele tem sido uma força importante na conservação e na restauração de filmes danificados e deteriorados, dedicando cuidados especiais a filmes que foram importantes para sua própria educação como estudioso e praticante do cinema.


A partir de "Taxi Driver", Scorsese passou a trazer novatos para o set


Assistiu a "Ricardo 3º" (1955), de Laurence Olivier, pela primeira vez em transmissão em preto e branco na televisão, mas o filme foi rodado em VistaVision, a versão para tela larga do filme de 35 milímetros desenvolvida pela Paramount nos anos 1950.
No momento, Scorsese está restaurando uma cópia sobrevivente do filme. A arte que abre esse filme, um pergaminho antigo que começa com "England, 1485...", está em seu acervo pessoal de tesouros, em Nova York, ao lado dos sapatinhos vermelhos da obra-prima do mesmo título feita por Michael Powell em 1948.
E, entre um longa e outro, ele e sua amiga e editora-colaboradora de longa data, Thelma Schoonmaker, que foi casada com Powell e cujo toque perfeito está presente em toda parte em "Ilha do Medo", estão montando um documentário que relata a história do cinema britânico desde o final dos anos 1940 até os intransigentes filmes neorrealistas do início dos anos 1960.
A obra será de cunho abertamente pessoal. Para ele, os ovos fritos e as meias de náilon enroladas para baixo, partidas de futebol no meio de fumaça e vômito em pubs, tudo isso conferia a verdade encardida do realismo documental aos filmes feitos em Ealing, Pinewood e Elstree, assim como fizeram Roberto Rossellini, Vittorio de Sica e Luchino Visconti para o mundo de fantasia dos filmes italianos.

Mestre e aprendiz
Scorsese talvez seja o único diretor capaz de evocar "Rocco e Seus Irmãos" [1960, de Visconti] e o inglês "This Sporting Life" [1963, de Lindsay Anderson] na mesma sentença, como se fosse óbvio que são rios que desembocam no mesmo mar profundo de drama social.
Avento um palpite presunçoso: teria a trilha sonora pesada do filme sobre a liga de rúgbi -com o crânio de Richard Harris se chocando com outros rostos feridos- tido alguma influência sobre o modo como Scorsese gravou e filmou a devastação pugilística de Jake LaMotta (Robert De Niro) em "Touro Indomável"?
Faz-se uma pausa. Sempre cortês, Scorsese responde: "É possível, sim, é possível!". Inerentemente generoso, Scorsese concordou em participar da edição mais recente da Iniciativa Rolex de Mentores e Protegidos em Arte, um esquema bienal no qual figuras destacadas de seis disciplinas artísticas (cinema, teatro, literatura, dança, música e artes visuais) são escolhidas para serem mentores de seis artistas mais jovens, visando proporcionar a estes a oportunidade de aprender com o contato com uma obra durante sua criação.
Celina Murga, argentina de 36 anos com dois filmes em seu currículo, é a diretora que teve a oportunidade de passar tempo precioso, meses inteiros, com Scorsese enquanto este trabalhava em "Ilha do Medo". Ele a escolheu de uma lista de três finalistas, impressionado com "Una Semana Solos" [2007], que ela fizera sobre adolescentes que correm soltos em um condomínio fechado depois de seus pais saírem.
"Assisti ao filme e, 25 minutos depois de começar, percebi que era algo de valor; que, quase casualmente, ela criara um mundo que parecia já ter estado ali, sem ter começado e sem possibilidade de deixar de ser." Dá uma risadinha benevolente e comenta: "É claro que é uma sensibilidade diferente, não é a maneira como eu trabalho, mas...". Murga visitou o set de "Ilha do Medo" tantas vezes quanto quis e assistiu ao mais difícil dos desafios cinematográficos florescer, convertendo-se em um trabalho extraordinário.
Ela viu os atores se esforçando e o diretor revendo e revendo novamente à medida que o trabalho avançava. Pergunto a Scorsese se ela podia comentar tomadas específicas. "Claro, às vezes, com o diretor-assistente." Ela teve portas abertas para a sala de edição, para a mixagem do som e até mesmo às exibições das cenas filmadas a cada dia: "Mas não sempre. Gosto de poder conversar livremente com Thelma".

Oportunidade
Há uma longa história por trás desse grande presente que Scorsese está dando. Murga -e muitas outras pessoas, descubro- estão tendo uma oportunidade que foi negada ao próprio Scorsese quando era jovem. Nos anos 1960, quando estudante de cinema na Escola de Artes da Universidade de Nova York, ele queria muito conseguir experiência em primeira mão de um mestre do cinema.
Em certa ocasião, Elia Kazan -cujos filmes "Sindicato de Ladrões" (1954) e "Vidas Amargas" (1955) eram exatamente o tipo de épico de dor social que Scorsese reverenciava- estava visitando a escola.
Com um roteiro na mão, Scorsese marcou uma hora para falar com Kazan. Chegou ao escritório do grande homem com dez minutos de atraso. Já de sobrecasaca, pronto para sair, Kazan ouviu o jovem cinéfilo, folheou o roteiro superficialmente e desejou boa sorte. Naquela época, mal havia estúdios independentes em Nova York, com a exceção da empresa de John Cassavetes, que produzira o inovador "Shadows" [Sombras, 1959]. Não havia a quem recorrer, ninguém que pudesse ajudar um novato, tomando-o como aprendiz.
Scorsese conta, sem má vontade, que pensou naquele momento: "Se eu estivesse na posição de Kazan, faria alguma coisa para ajudar". Por isso, começando com "Taxi Driver" (1976), passou a trazer novatos para o set, em alguns casos jovens sem nenhuma experiência de fazer cinema, e a incluí-los na equipe técnica como aprendizes -"desde que não atrapalhassem os atores e soubessem a hora certa de ficarem calados". Alguns desses novatos decidiram que o cinema não era sua praia, mas outros, como Amy Jones, diretora de "Love Letters" [Cartas de Amor, 1983], iniciaram suas carreiras desse modo e acabaram por fazer bons longas e a manter contato com Scorsese depois.
Eu nunca ouvira falar de tal coisa; é fato mais que conhecido que os diretores costumam ser implacáveis em seus esforços para manter pessoas fora dos sets. Mas Scorsese era e ainda é diferente.
Ele converte "outsiders" em "insiders" e tudo que pede deles é sua atenção total. Pergunto que sets de filmagens, depois de "Taxi Driver", ele abriu para esse tipo de aprendiz. "Todos", responde. "Há mais alguém que faça esse tipo de coisa, pelo que você sabe?" Ele sorri e dá de ombros.
Isso me faz lembrar novamente que passar qualquer tempo com Scorsese significa estar na presença de alguém para quem seu ofício é algo que exige tudo dele e que é feito pelo amor ao cinema. Como um carvão perpetuamente em brasa, ele arde com a ansiedade e o prazer dessa consciência.
Algumas pessoas de sorte têm a chance de chegar perto desse calor. Sua filha de dez anos de idade, Francesca, por exemplo, a quem Scorsese vem exibindo as comédias britânicas dos anos 1950 que ainda o deleitam.
"Ela capta a malícia desses filmes?", pergunto. "Ela e seus amigos adoram "Quinteto de Morte" [1955, de Alexander Mackendrick]. Há um momento em que está acontecendo uma briga, e a velhinha chega e eles param de brigar!" Scorsese ri, conhecedor que é de maldades e malandragens -e ri como o menino de dez anos que certa vez foi, assistindo àquela cena pela primeira vez. Uma coisa é certa: Scorsese é um moto-perpétuo. Ele não para nunca.


SIMON SCHAMA é historiador britânico, autor de "O Futuro da América" (Cia. das Letras). A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Clara Allain .


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