São Paulo, domingo, 03 de janeiro de 2010 |
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Perturbação
SCORSESE FALA SOBRE "ILHA DO MEDO", THRILLER AMBIENTADO NUM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO QUE ESTREIA
NO BRASIL EM MARÇO, E EXPLICA A IMPORTÂNCIA DE ORIENTAR JOVENS CINEASTAS
SIMON SCHAMA
Ainda bem que o sofá
no qual estou sentado é confortável e
hospitaleiro, senão
eu poderia ter caído
dele com o susto: Martin Scorsese me diz que a verdadeira
inspiração do tom e da voz dos
personagens de "Os Bons Companheiros" (1990) não foi
"Scarface" (1932, de Howard
Hawks) ou "Inimigo Público"
(1931, de William Wellman),
mas "As Oito Vítimas" [1949,
de Robert Hamer].
Assistiu a "Ricardo 3º" (1955), de Laurence Olivier, pela primeira vez em transmissão em preto e branco na televisão, mas o filme foi rodado em VistaVision, a versão para tela larga do filme de 35 milímetros desenvolvida pela Paramount nos anos 1950. No momento, Scorsese está restaurando uma cópia sobrevivente do filme. A arte que abre esse filme, um pergaminho antigo que começa com "England, 1485...", está em seu acervo pessoal de tesouros, em Nova York, ao lado dos sapatinhos vermelhos da obra-prima do mesmo título feita por Michael Powell em 1948. E, entre um longa e outro, ele e sua amiga e editora-colaboradora de longa data, Thelma Schoonmaker, que foi casada com Powell e cujo toque perfeito está presente em toda parte em "Ilha do Medo", estão montando um documentário que relata a história do cinema britânico desde o final dos anos 1940 até os intransigentes filmes neorrealistas do início dos anos 1960. A obra será de cunho abertamente pessoal. Para ele, os ovos fritos e as meias de náilon enroladas para baixo, partidas de futebol no meio de fumaça e vômito em pubs, tudo isso conferia a verdade encardida do realismo documental aos filmes feitos em Ealing, Pinewood e Elstree, assim como fizeram Roberto Rossellini, Vittorio de Sica e Luchino Visconti para o mundo de fantasia dos filmes italianos. Mestre e aprendiz Scorsese talvez seja o único diretor capaz de evocar "Rocco e Seus Irmãos" [1960, de Visconti] e o inglês "This Sporting Life" [1963, de Lindsay Anderson] na mesma sentença, como se fosse óbvio que são rios que desembocam no mesmo mar profundo de drama social. Avento um palpite presunçoso: teria a trilha sonora pesada do filme sobre a liga de rúgbi -com o crânio de Richard Harris se chocando com outros rostos feridos- tido alguma influência sobre o modo como Scorsese gravou e filmou a devastação pugilística de Jake LaMotta (Robert De Niro) em "Touro Indomável"? Faz-se uma pausa. Sempre cortês, Scorsese responde: "É possível, sim, é possível!". Inerentemente generoso, Scorsese concordou em participar da edição mais recente da Iniciativa Rolex de Mentores e Protegidos em Arte, um esquema bienal no qual figuras destacadas de seis disciplinas artísticas (cinema, teatro, literatura, dança, música e artes visuais) são escolhidas para serem mentores de seis artistas mais jovens, visando proporcionar a estes a oportunidade de aprender com o contato com uma obra durante sua criação. Celina Murga, argentina de 36 anos com dois filmes em seu currículo, é a diretora que teve a oportunidade de passar tempo precioso, meses inteiros, com Scorsese enquanto este trabalhava em "Ilha do Medo". Ele a escolheu de uma lista de três finalistas, impressionado com "Una Semana Solos" [2007], que ela fizera sobre adolescentes que correm soltos em um condomínio fechado depois de seus pais saírem. "Assisti ao filme e, 25 minutos depois de começar, percebi que era algo de valor; que, quase casualmente, ela criara um mundo que parecia já ter estado ali, sem ter começado e sem possibilidade de deixar de ser." Dá uma risadinha benevolente e comenta: "É claro que é uma sensibilidade diferente, não é a maneira como eu trabalho, mas...". Murga visitou o set de "Ilha do Medo" tantas vezes quanto quis e assistiu ao mais difícil dos desafios cinematográficos florescer, convertendo-se em um trabalho extraordinário. Ela viu os atores se esforçando e o diretor revendo e revendo novamente à medida que o trabalho avançava. Pergunto a Scorsese se ela podia comentar tomadas específicas. "Claro, às vezes, com o diretor-assistente." Ela teve portas abertas para a sala de edição, para a mixagem do som e até mesmo às exibições das cenas filmadas a cada dia: "Mas não sempre. Gosto de poder conversar livremente com Thelma". Oportunidade Há uma longa história por trás desse grande presente que Scorsese está dando. Murga -e muitas outras pessoas, descubro- estão tendo uma oportunidade que foi negada ao próprio Scorsese quando era jovem. Nos anos 1960, quando estudante de cinema na Escola de Artes da Universidade de Nova York, ele queria muito conseguir experiência em primeira mão de um mestre do cinema. Em certa ocasião, Elia Kazan -cujos filmes "Sindicato de Ladrões" (1954) e "Vidas Amargas" (1955) eram exatamente o tipo de épico de dor social que Scorsese reverenciava- estava visitando a escola. Com um roteiro na mão, Scorsese marcou uma hora para falar com Kazan. Chegou ao escritório do grande homem com dez minutos de atraso. Já de sobrecasaca, pronto para sair, Kazan ouviu o jovem cinéfilo, folheou o roteiro superficialmente e desejou boa sorte. Naquela época, mal havia estúdios independentes em Nova York, com a exceção da empresa de John Cassavetes, que produzira o inovador "Shadows" [Sombras, 1959]. Não havia a quem recorrer, ninguém que pudesse ajudar um novato, tomando-o como aprendiz. Scorsese conta, sem má vontade, que pensou naquele momento: "Se eu estivesse na posição de Kazan, faria alguma coisa para ajudar". Por isso, começando com "Taxi Driver" (1976), passou a trazer novatos para o set, em alguns casos jovens sem nenhuma experiência de fazer cinema, e a incluí-los na equipe técnica como aprendizes -"desde que não atrapalhassem os atores e soubessem a hora certa de ficarem calados". Alguns desses novatos decidiram que o cinema não era sua praia, mas outros, como Amy Jones, diretora de "Love Letters" [Cartas de Amor, 1983], iniciaram suas carreiras desse modo e acabaram por fazer bons longas e a manter contato com Scorsese depois. Eu nunca ouvira falar de tal coisa; é fato mais que conhecido que os diretores costumam ser implacáveis em seus esforços para manter pessoas fora dos sets. Mas Scorsese era e ainda é diferente. Ele converte "outsiders" em "insiders" e tudo que pede deles é sua atenção total. Pergunto que sets de filmagens, depois de "Taxi Driver", ele abriu para esse tipo de aprendiz. "Todos", responde. "Há mais alguém que faça esse tipo de coisa, pelo que você sabe?" Ele sorri e dá de ombros. Isso me faz lembrar novamente que passar qualquer tempo com Scorsese significa estar na presença de alguém para quem seu ofício é algo que exige tudo dele e que é feito pelo amor ao cinema. Como um carvão perpetuamente em brasa, ele arde com a ansiedade e o prazer dessa consciência. Algumas pessoas de sorte têm a chance de chegar perto desse calor. Sua filha de dez anos de idade, Francesca, por exemplo, a quem Scorsese vem exibindo as comédias britânicas dos anos 1950 que ainda o deleitam. "Ela capta a malícia desses filmes?", pergunto. "Ela e seus amigos adoram "Quinteto de Morte" [1955, de Alexander Mackendrick]. Há um momento em que está acontecendo uma briga, e a velhinha chega e eles param de brigar!" Scorsese ri, conhecedor que é de maldades e malandragens -e ri como o menino de dez anos que certa vez foi, assistindo àquela cena pela primeira vez. Uma coisa é certa: Scorsese é um moto-perpétuo. Ele não para nunca. SIMON SCHAMA é historiador britânico, autor de "O Futuro da América" (Cia. das Letras). A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Clara Allain . Próximo Texto: Filmografia básica Índice |
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