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Ponto de Fuga
O bom selvagem 2
Wagner vibraria diante dos recursos técnicos de "Avatar", é o apogeu do espetáculo como ilusionismo absoluto -ah, se suas valquírias pudessem cavalgar corcéis alados como
se vê ali!
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
"Avatar", de James Cameron, começa na prosa,
com a rotina de uma nave espacial.
Os passageiros acordam: nada do suspense que existe na
cena semelhante de "Planeta
dos Macacos" (dir. de Franklin
J. Schaffner, 1968), nem do
tom ritual em "2001 - Uma
Odisseia no Espaço" (Stanley
Kubrick, 1968). Ato corriqueiro
do futuro, mais ou menos como
hoje afivelar os cintos numa
poltrona de avião.
Mas James Cameron é um lírico. Aos poucos seu lirismo toma conta de tudo, lirismo tocante e afetuoso.
Os extraterrestres, personagens digitalizados, transmitem
suas emoções: nada mais humano e radiante do que o paraplégico, transformado em ser
azul de três metros de altura,
ao descobrir que pode correr,
saltar, libertado da cadeira de
rodas, sentindo a terra entre os
artelhos.
Esse lirismo tem passado velho e ilustre. Lembremos: "Iracema, a virgem dos lábios de
mel, que tinha os cabelos mais
negros que a asa da graúna e
mais longos que seu talhe de
palmeira. O favo da jati não era
doce como seu sorriso; nem a
baunilha recendia no bosque
como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o
sertão e as matas do Ipu, onde
campeava sua guerreira tribo
da grande nação tabajara, o pé
grácil e nu, mal roçando alisava
apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras
águas".
A metáfora de Alencar não é
transposição, é fusão: os cabelos e as penas da graúna, o talhe
da palmeira. Graúna e palmeira
deixam de ser recursos estilísticos apenas: "estão dentro" de
Iracema.
De metáfora, transformam-se em metacomunhão.
Cocar
Isto tudo para inserir "Avatar" na tradição indianista, de
Iracema ou Hiawatha, Alencar
ou Longfellow, "O Último dos
Moicanos" ou "Atala".
Não é preciso esforço: o filme
brota dessa tradição como que
naturalmente. Atualiza-a, mas
mantém a ideia de uma cultura
selvagem melhor e muito mais
poética do que a civilização ocidental.
Polos
A história do cinema, de
"Rambo" a "King Kong" (o de
1933), atravessa "Avatar". Há
também um tom de ópera.
Jake Sully, em sua versão
azul, amarrado a um tronco, faz
pensar em Peri no palco, ao
som de Carlos Gomes, diante
dos aimorés. As conclamações
guerreiras são como o primeiro
ato da "Norma" [de Bellini].
Estas associações se impõem
porque "Avatar" é uma ópera
visual: as imagens, que seduzem e envolvem, extremam os
sentimentos do espectador.
Possuem a mesma função que a
música assume na ópera.
Felizmente as imagens têm
esse poder, porque a trilha sonora de "Avatar" é uma sopa
tecno-world brega, reforçada
por corais de canto pseudo-africanos atravessados por
flautinhas neo-"Titanic".
O impressionante é que a força musical das imagens exalta a
trilha sonora banal. Como na
ópera, em modo invertido,
quando a música transfigura o
libreto rasteiro.
Wotan
Wagner vibraria diante dos
recursos técnicos de "Avatar".
É o apogeu do espetáculo como
ilusionismo absoluto. Ah, se
suas valquírias pudessem cavalgar corcéis alados como se
vê ali!
Pecados
"Avatar" é também um western, no qual o Sétimo de cavalaria não está do lado da civilização. É formado por um batalhão de bicharocos invulneráveis. Trata ainda de colonização, de culturas selvagens arrasadas: não é de hoje que Hollywood endossa a má consciência
da história norte-americana.
Alguns críticos já assinalaram que a destruição da grande
árvore remete às torres gêmeas. Desta vez, porém, é o capitalismo neoliberal e o Exército americano, pactuados, que
desencadeiam a destruição.
jorgecoli@uol.com.br
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