São Paulo, domingo, 03 de janeiro de 2010

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Ponto de Fuga

O bom selvagem 2


Wagner vibraria diante dos recursos técnicos de "Avatar", é o apogeu do espetáculo como ilusionismo absoluto -ah, se suas valquírias pudessem cavalgar corcéis alados como se vê ali!


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

"Avatar", de James Cameron, começa na prosa, com a rotina de uma nave espacial. Os passageiros acordam: nada do suspense que existe na cena semelhante de "Planeta dos Macacos" (dir. de Franklin J. Schaffner, 1968), nem do tom ritual em "2001 - Uma Odisseia no Espaço" (Stanley Kubrick, 1968). Ato corriqueiro do futuro, mais ou menos como hoje afivelar os cintos numa poltrona de avião.
Mas James Cameron é um lírico. Aos poucos seu lirismo toma conta de tudo, lirismo tocante e afetuoso. Os extraterrestres, personagens digitalizados, transmitem suas emoções: nada mais humano e radiante do que o paraplégico, transformado em ser azul de três metros de altura, ao descobrir que pode correr, saltar, libertado da cadeira de rodas, sentindo a terra entre os artelhos.
Esse lirismo tem passado velho e ilustre. Lembremos: "Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas".
A metáfora de Alencar não é transposição, é fusão: os cabelos e as penas da graúna, o talhe da palmeira. Graúna e palmeira deixam de ser recursos estilísticos apenas: "estão dentro" de Iracema. De metáfora, transformam-se em metacomunhão.

Cocar
Isto tudo para inserir "Avatar" na tradição indianista, de Iracema ou Hiawatha, Alencar ou Longfellow, "O Último dos Moicanos" ou "Atala".
Não é preciso esforço: o filme brota dessa tradição como que naturalmente. Atualiza-a, mas mantém a ideia de uma cultura selvagem melhor e muito mais poética do que a civilização ocidental.

Polos
A história do cinema, de "Rambo" a "King Kong" (o de 1933), atravessa "Avatar". Há também um tom de ópera. Jake Sully, em sua versão azul, amarrado a um tronco, faz pensar em Peri no palco, ao som de Carlos Gomes, diante dos aimorés. As conclamações guerreiras são como o primeiro ato da "Norma" [de Bellini].
Estas associações se impõem porque "Avatar" é uma ópera visual: as imagens, que seduzem e envolvem, extremam os sentimentos do espectador. Possuem a mesma função que a música assume na ópera.
Felizmente as imagens têm esse poder, porque a trilha sonora de "Avatar" é uma sopa tecno-world brega, reforçada por corais de canto pseudo-africanos atravessados por flautinhas neo-"Titanic". O impressionante é que a força musical das imagens exalta a trilha sonora banal. Como na ópera, em modo invertido, quando a música transfigura o libreto rasteiro.

Wotan
Wagner vibraria diante dos recursos técnicos de "Avatar". É o apogeu do espetáculo como ilusionismo absoluto. Ah, se suas valquírias pudessem cavalgar corcéis alados como se vê ali!

Pecados
"Avatar" é também um western, no qual o Sétimo de cavalaria não está do lado da civilização. É formado por um batalhão de bicharocos invulneráveis. Trata ainda de colonização, de culturas selvagens arrasadas: não é de hoje que Hollywood endossa a má consciência da história norte-americana. Alguns críticos já assinalaram que a destruição da grande árvore remete às torres gêmeas. Desta vez, porém, é o capitalismo neoliberal e o Exército americano, pactuados, que desencadeiam a destruição.


jorgecoli@uol.com.br


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