São Paulo, domingo, 3 de janeiro de 1999

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PONTO DE FUGA

Branco e preto

JORGE COLI
especial para a Folha em Nova York

Dois filmes recentes voltam-se para a nostalgia dos tempos em que a cor não era obrigatória. "The General", de Boorman, e "Celebrity", de Woody Allen, retomam o formato cinemascope e a iluminação "neutra" dos anos 50 e 60, evitando os contrastes expressivos do cinema mudo ou a preciosa iluminação que conferia aos rostos de Robert Taylor e Greta Garbo a aparência de porcelana. Um modo de ser do preto e branco vinculado à descrição de um certo vazio existencial, em que os atos se desgastam diante de sua própria inutilidade.
"Celebrity" parece uma revisão de "Manhattan", mais cruel, menos poética e muito engraçada. Retoma sentimentos desnorteados num mundo insensato -mas com menos indulgência- e continua a se interrogar sobre o acaso que outorga imensos privilégios graças a uma celebridade em verdade inexplicável.
"The General" traz o herói "frondeur", caro a Boorman, acreditando numa ilusória liberdade que se alimenta do constante desafio às normas da sociedade, mas, na verdade, construindo uma armadilha para si próprio. É a história real de um ladrão irlandês, bastante divertido, às vezes ingênuo (roubou a casa do próprio Boorman, levando um disco "de ouro" que ele acreditava legítimo), às vezes violento e injusto. Terminou corroído pelo diabetes, recusando tratamentos, e assassinado pelo IRA, com a indulgência da polícia. No arcaísmo do preto e branco, os dois filmes encontram sua expressão formal mais justa.

JOGOS PROIBIDOS - A conjugação crianças e guerra tem dado certo no cinema. "Brinquedos Proibidos", de René Clément, "Adeus, Meninos", de Louis Malle, "Esperança e Glória", de Boorman, são filmes maravilhosos que reúnem esses ingredientes. Resultaram mesmo em duas imensas e definitivas obras-primas: "Alemanha, Ano Zero", de Roberto Rossellini, e "O Império do Sol", de Steven Spielberg. De modo muito original, essa combinação permitiu ao "A Vida É Bela", de Roberto Benigni, encontrar um ponto de equilíbrio inesperado entre a fantasia, o humor e a absoluta crueldade do nazismo. O personagem de Benigni surge como um herdeiro de Chaplin e, sobretudo, de Harpo Marx, ao revestir sua secreta aura poética. Quando, por erro, ele, judeu, deve explicar as teorias raciais numa escola, ressurgem os ecos do humor absurdo de "O Diabo a Quatro" ("Monkey Business"), de Leo McCarey, de "Os Gênios da Pelota" ("Horse Feathers"), de Norman Z. McLeod. O jogo infantil entre pai e filho, negando a evidência brutal do campo de concentração onde se encontram presos, é vitorioso por princípio, porque suas regras são as do afeto humano e as do riso arguto, que fascistas e nazistas nunca saberão jogar.

ÍSIS E OSÍRIS - Na Metropolitan Opera de NY, a "Flauta Mágica", de Mozart, em produção concebida por David Hockney, que inventou dragões a partir de Paolo Uccello. Charles Mackerras regia e evitou falsas profundidades solenes, dando à música um pleno sentido de felicidade. Dawn Upshawn, talvez o mais comovente e sensível soprano dos nossos dias, encarnou Pamina. Celebração da música: Tamino e sua flauta, Papageno e seus sininhos retraçavam a lira de Orfeu domando as feras.

CONFIDENCIAL - Entre um autógrafo (autêntico) de Massenet, uma fotografia com dedicatória (original) de Toscanini e outros documentos de colecionador, os fregueses do "La Fortuna", na rua 71 (W), tomam um "capuccino" ouvindo uma gravação de Caruso ou de Placido Domingo. Café dos fanáticos por ópera, era o preferido de John Lennon, que morava ali perto, no gótico e fatídico edifício Dakota, onde foi assassinado e onde Polanski filmara "O Bebê de Rosemary".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com



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