São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2002 |
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+ memória Clóvis de Barros Filho especial para a Folha
O aviso no mural era claro. A primeira aula de sociologia do ano
(1988) estava prevista para as
9h, em quatro anfiteatros diferentes. Cheguei meia hora antes. Fingi
não saber de nada e perguntei a um funcionário sobre o local e horário. Ele me
indicou, sem hesitar, o número de um
deles. Tranquilizado, encaminhei-me.
Primeiro, seguindo flechas. Depois, o
próprio fluxo dos alunos. Já na sala, não
percebi, de imediato, a tela no lugar da
cátedra. O esclarecimento do colega ao
lado se impôs: "Para assistir onde ele está, é preciso chegar antes das 7h. Ainda
mais no começo do curso. Depois vai
melhorando".
Alguns minutos antes das 9h, a luz do
projetor faz o silêncio. A primeira imagem é de uma mesa vazia e uma cadeira.
Atrás, uma porta que se abre, segundos
depois. O professor sobe os degraus do
estrado e se aproxima da mesa. Teatro
para uns, cinema para outros. O rito de
uma prática incorporada, em anos de
docência, dispensa o ensaio. Seus gestos
contrastam com a solenidade do cenário.
Um assistente de ensino fundamental
que entrasse numa sala de aula pela primeira vez não agiria diferentemente.
Ainda de pé, abre a mala e retira um
pedaço de papelão dobrado ao meio que
lhe serve como pasta de papéis. Senta-se.
Ao desdobrá-lo, acusa o equívoco franzindo a testa. Levanta-se e troca de pasta.
Volta a sentar-se. A mala, ainda aberta, é
colocada no chão. Pela primeira vez o
professor contempla, de relance, os ouvintes. As folhas, manuscritas, escapam
pelas bordas da pasta. São reempilhadas.
As orelhas das páginas não parecem incomodar. Passados alguns segundos das
9h, Pierre Bourdieu toma a palavra.
A lição sobre a aula Desculpa-se por retomar uma temática já discutida em outros cursos. Refere-se, sobretudo, à sua primeira aula inaugural no Collège de France, em 1981. Fala da instituição como instância de consagração. Da consagração como definidora do valor social de uma conferência. Da conferência como produtora de legitimidade. Da sua legitimidade como porta-voz. Do capital específico do campo acadêmico. Das formas de investimento e incremento desse capital. Das estratégias, definidas em razão de um saber prático incorporado ao longo de uma trajetória propriamente universitária. De um saber prático objetivado em disposições de agir. De disposições constitutivas de um "habitus" propriamente acadêmico. Da força simbólica da lição, como dominação, decorrente de uma autoridade reconhecida. Desse reconhecimento, possível graças ao desconhecimento das suas reais causas. Das causas sociais de fatos sociais. A sequência de frases permite o desfile articulado de seus principais conceitos. Seu sentido e seu alcance exigem como referencial outros conceitos. O repertório presumido do ouvinte é rico. Os exemplos do cotidiano são raros. Para explicar o "habitus" como sistema de competências, no duplo sentido de habilidades interiorizadas e de autorização social para agir, o professor recorre ao conceito de campo, isto é, de um espaço social de posições, com regras e troféus específicos e, portanto, relativamente autônomo quanto aos demais campos. "Os conceitos de "habitus" e de campo compõem um todo ontológico", enfatiza o professor. Ao insistir que o "habitus" é uma forma de subjetivação das estruturas, ou seja, das relações de força em ação no campo, o professor torna sua fala auto-referencial. Qualquer fratura na atribuição de sentido pode representar minutos de incompreensão. Pior para os não-iniciados. Apesar do hermetismo, a lição não é interrompida nenhuma vez. Um acordo tácito de disposições ao silêncio garante fluidez e dispensa qualquer determinação expressa. Socializações semelhantes tendem a gerar práticas orquestradas, sem nenhuma batuta visível. Assim explicaria o mestre a reverência muda com que foi acolhido. No final da aula, duas horas e 34 minutos após o seu início, as imagens flagraram a abordagem de alguns alunos. Troquei de sala e esperei pelas outras indagações. Autorizado por um olhar, aproximo-me procurando não acusar, em demasia, os efeitos da carência de recursos sociais, decorrente da combinação de fatores como o calourismo e a estrangeiridade. "Être mal dans sa peau" (Estar mal na própria pele), fruto de um ineditismo radical, da falta de qualquer síntese passiva, de um não-sujeito para a situação, da ausência de experiências ao longo da trajetória que, aprendidas e interiorizadas, garantissem alguma reação espontânea, sem cálculo, e oportuna. Três comentários idênticos "Não ficou claro em que medida os circuitos de consagração são tanto mais eficazes quanto maior a distância social do objeto consagrado", perguntei. Isso é claro, corrigiu o mestre. "Imagine-se publicando um livro. Três comentários idênticos e elogiosos: um da sua mãe, outro de um colega seu da universidade e, um terceiro, de um professor que, em outro país, se deu ao trabalho de traduzi-lo. Qual dos três comentários será mais valorizante para você?", perguntou-me com ternura. A resposta óbvia tornou o constrangimento indisfarçável. Talvez por isso tenha buscado um incentivo: "A pergunta foi ótima", continuou, sorrindo: "Normalmente as pessoas fazem das perguntas em palestras um uso legitimador, de autoconsagração. Ao esperar a saída de todos, você reduziu muito esse efeito". Este artigo, 14 anos depois, relata a pergunta, desmente o mestre e estende para além dos muros da escola a homenagem que o autor lhe faz a cada aula. Bourdieu virou-se e partiu, pondo termo à primeira, mais curta e, para mim, mais significativa de nossas conversas. Clóvis de Barros Filho é professor, entre outros lugares, nos departamentos de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero e da Escola de Comunicações e Artes da USP. Texto Anterior: Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant: A redução da política Próximo Texto: Bourdieu no Brasil Índice |
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