São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2008

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Um homem, um século

Para escritor, mesmo em seu milenarismo, Vieira mostrava-se sintonizado com o espírito da época

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

A longa vida do padre Antônio Vieira praticamente coincide com o século 17. O que é muito significativo. Foi o período em que se consolidaram e se ampliaram os valores da modernidade, um processo iniciado nos séculos anteriores e desencadeado pelo aumento do comércio mundial, pelas viagens marítimas, pelo progresso científico, pelo Renascimento, pela descoberta da imprensa e da pólvora.
O século 17 foi o século de instrumentos científicos como o barômetro, o termômetro e o microscópio, o século em que William Harvey descreveu a circulação do sangue, dando enorme impulso à medicina. O século de Isaac Newton, de René Descartes, de Galileu Galilei, de Blaise Pascal, o século da introdução do logaritmo, o século do barroco. É o século de inconoclastas e satiristas como John Milton, La Fontaine, Molière, e, em pintura, de realistas sombrios como Rembrandt. Filósofos como René Descartes, John Locke e Baruch Spinoza defenderam a idéia de que se pode chegar à verdade mediante a observação empírica e o uso da razão.
O século 17 afirma o primado da racionalidade; sustenta que a experiência deve suplantar o princípio da autoridade e que o ser humano pode aperfeiçoar-se mediante o aprendizado e a educação, com o que a história da humanidade transforma-se numa jornada de progresso contínuo.
A personalidade de Vieira foi tão extraordinária quanto o século em que viveu. Tinha origem mestiça, o que influiu para que se tornasse um homem sem preconceitos.
Estudou com os jesuítas, ingressou na ordem contra a vontade da família, e passou assim a fazer parte de um grupo religioso que se destacava na época, inclusive por sua abertura para a ciência e para a cultura.
Já sacerdote, Vieira lutou contra a escravidão indígena; para ele, um grupo humano não deveria ser julgado por estereótipos e preconceitos. E não tardou a demonstrá-lo na prática. Quando dom João 4º assumiu o trono de Portugal, encerrando o período de domínio espanhol, viajou a Lisboa, acompanhando dom Fernando, filho do vice-rei do Brasil.
Conquistou a simpatia do soberano, de quem se tornou conselheiro. Foi enviado em missões diplomáticas a vários países, inclusive a Holanda, onde havia uma grande comunidade de judeus expulsos de Portugal. Deu-se conta de que seu retorno resultaria em substanciais investimentos em Portugal e no Brasil e esforçou-se por atingir esse objetivo. Por suas posições independentes, tinha muitos inimigos; acabou preso pela Inquisição, e só foi libertado por ordem papal.

Milenarismo
Há um aspecto na vida de Vieira que parece contradizer suas atitudes vanguardistas. Trata-se de seu conhecido milenarismo. A época e o cenário colaboraram para isso. Em 1580, o desaparecimento do jovem rei dom Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, contra os mouros, gerou uma lenda que se propagaria por várias gerações e que animaria inclusive os rebeldes de Canudos. Era o sebastianismo, segundo o qual o mítico rei retornaria para devolver a Portugal a antiga grandeza, sob a forma de um Quinto Império, que sucederia aos impérios dos assírios, dos medas, dos persas e dos romanos.
Essas idéias aparecem nos livros de Vieira "Clavis Prophetarum" (chave dos profetas) e "Esperanças de Portugal, 5º Império do Mundo", inspirados pelas profecias do sapateiro Antonio Gonçalo Anes Bandarra (1500-1566), autor de trovas que supostamente preveriam o futuro de Portugal.
Para Vieira, quando o tempo chegar, Cristo reinará por meio do papa e do rei de Portugal; os ritos judaicos voltarão a ser praticados numa Jerusalém que reencontrará sua antiga glória. Mas, mesmo em seu milenarismo, Vieira mostrava-se sintonizado com o espírito da época. Época confusa, um período em que, como lembra a historiadora Frances Yates, a astronomia convivia com a astrologia, a química com a alquimia, e a ciência com a magia e a superstição. Disso são exemplos Isaac Newton e Paracelso, os dois misturando o conhecimento científico com a alquimia e a astrologia. Lidos hoje, os textos de Vieira mostram uma surpreendente atualidade.
Ninguém é profeta em sua própria terra, mas não é preciso ter vocação profética para entender o rumo da história: a razão, o bom senso, a sabedoria são, para isso, mais que suficientes.


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