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Um homem, um século
Para escritor, mesmo em seu milenarismo, Vieira mostrava-se sintonizado com o espírito da época
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
A
longa vida do padre
Antônio Vieira praticamente coincide
com o século 17. O
que é muito significativo. Foi o período em que se
consolidaram e se ampliaram
os valores da modernidade, um
processo iniciado nos séculos
anteriores e desencadeado pelo aumento do comércio mundial, pelas viagens marítimas,
pelo progresso científico, pelo
Renascimento, pela descoberta
da imprensa e da pólvora.
O século 17 foi o século de
instrumentos científicos como
o barômetro, o termômetro e o
microscópio, o século em que
William Harvey descreveu a
circulação do sangue, dando
enorme impulso à medicina. O
século de Isaac Newton, de René Descartes, de Galileu Galilei, de Blaise Pascal, o século da
introdução do logaritmo, o século do barroco. É o século de
inconoclastas e satiristas como
John Milton, La Fontaine, Molière, e, em pintura, de realistas
sombrios como Rembrandt.
Filósofos como René Descartes, John Locke e Baruch Spinoza defenderam a idéia de que
se pode chegar à verdade mediante a observação empírica e
o uso da razão.
O século 17 afirma o primado
da racionalidade; sustenta que
a experiência deve suplantar o
princípio da autoridade e que o
ser humano pode aperfeiçoar-se mediante o aprendizado e a
educação, com o que a história
da humanidade transforma-se
numa jornada de progresso
contínuo.
A personalidade de Vieira foi
tão extraordinária quanto o século em que viveu. Tinha origem mestiça, o que influiu para
que se tornasse um homem
sem preconceitos.
Estudou com os jesuítas, ingressou na ordem contra a vontade da família, e passou assim
a fazer parte de um grupo religioso que se destacava na época, inclusive por sua abertura
para a ciência e para a cultura.
Já sacerdote, Vieira lutou
contra a escravidão indígena;
para ele, um grupo humano
não deveria ser julgado por estereótipos e preconceitos. E
não tardou a demonstrá-lo na
prática. Quando dom João 4º
assumiu o trono de Portugal,
encerrando o período de domínio espanhol, viajou a Lisboa,
acompanhando dom Fernando, filho do vice-rei do Brasil.
Conquistou a simpatia do soberano, de quem se tornou
conselheiro. Foi enviado em
missões diplomáticas a vários
países, inclusive a Holanda, onde havia uma grande comunidade de judeus expulsos de
Portugal. Deu-se conta de que
seu retorno resultaria em substanciais investimentos em Portugal e no Brasil e esforçou-se
por atingir esse objetivo. Por
suas posições independentes,
tinha muitos inimigos; acabou
preso pela Inquisição, e só foi
libertado por ordem papal.
Milenarismo
Há um aspecto na vida de
Vieira que parece contradizer
suas atitudes vanguardistas.
Trata-se de seu conhecido milenarismo. A época e o cenário
colaboraram para isso. Em
1580, o desaparecimento do jovem rei dom Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, contra
os mouros, gerou uma lenda
que se propagaria por várias gerações e que animaria inclusive
os rebeldes de Canudos. Era o
sebastianismo, segundo o qual
o mítico rei retornaria para devolver a Portugal a antiga grandeza, sob a forma de um Quinto
Império, que sucederia aos impérios dos assírios, dos medas,
dos persas e dos romanos.
Essas idéias aparecem nos livros de Vieira "Clavis Prophetarum" (chave dos profetas) e
"Esperanças de Portugal, 5º
Império do Mundo", inspirados pelas profecias do sapateiro
Antonio Gonçalo Anes Bandarra (1500-1566), autor de trovas
que supostamente preveriam o
futuro de Portugal.
Para Vieira, quando o tempo
chegar, Cristo reinará por meio
do papa e do rei de Portugal; os
ritos judaicos voltarão a ser
praticados numa Jerusalém
que reencontrará sua antiga
glória. Mas, mesmo em seu milenarismo, Vieira mostrava-se
sintonizado com o espírito da
época. Época confusa, um período em que, como lembra a
historiadora Frances Yates, a
astronomia convivia com a astrologia, a química com a alquimia, e a ciência com a magia e a
superstição. Disso são exemplos Isaac Newton e Paracelso,
os dois misturando o conhecimento científico com a alquimia e a astrologia. Lidos hoje,
os textos de Vieira mostram
uma surpreendente atualidade.
Ninguém é profeta em sua
própria terra, mas não é preciso
ter vocação profética para entender o rumo da história: a razão, o bom senso, a sabedoria
são, para isso, mais que suficientes.
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