São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2008

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Antes de tudo, um baiano

Para historiador, personagem deve ser visto em uma dimensão internacional

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

P ara o historiador Clóvis Bulcão, o padre Antônio Vieira foi "o primeiro pop star da história".
Professor do Instituto de Educação do Rio de Janeiro (Iserj), Bulcão se dedica há nove anos a uma biografia de Vieira, que deve ser lançada em junho com o título "As Relíquias do Futuro" (José Olympio).
Para Bulcão, o epíteto é plenamente justificado. "Não eram só os poderosos que eram cativados pela sua oratória. A polícia precisava controlar a multidão que tentava assistir a seus sermões. Isso em todos os locais, incluindo Roma", diz.
O pesquisador diz que o Padre Vieira costuma ser retratado fora de seu contexto histórico. "É um personagem com dimensão internacional. E no Brasil é negligenciado."
O personagem abraçou a idéia milenarista, em voga no século 17, defendendo que Portugal tinha a missão histórica de ser a sede do novo império mundial. Nesse sentido, era um rival às pretensões do inglês Oliver Cromwell (1599-1658).
"Vieira empolga o público luso-brasileiro primeiramente porque tem um projeto claro de conquista do mundo", afirma o pesquisador. O escritor tinha ascendência sobre dom João 4º em um momento em que Portugal reafirmava sua identidade na Restauração, após a União Ibérica (1580-1640). Para isso, cumpriu uma função diplomática que o levou a Amsterdã, a "cidade mais importante da Europa na época".
A vocação para a negociação e condução dos negócios estrangeiros ele já exercia em seus escritos. "Há um texto em que ele compara a foz do rio Amazonas com a bacia do Mediterrâneo. Ele percebe a importância geopolítica da região e passa a defender a tese de que corríamos o risco de perder a Amazônia", diz.
Entre outros pioneirismos, Vieira também teria sido um dos precursores da idéia da transferência da família real portuguesa ao Brasil -cuja efeméride de 200 anos se comemora neste ano-, quase dois séculos antes desta se efetivar.
Ao defender a tolerância religiosa com os cristãos-novos, visando a repatriação do capital judaico de origem lusitana disperso desde o século 15, Padre Vieira chocou-se com a Inquisição portuguesa. E esse fato, além da defesa muitas vezes "rasgada" dos índios, poderia ter explicação na sua origem.
"Não temos imagens de época do Vieira, mas era provavelmente mulato, porque tem ascendentes negros e judeus. Ele desenvolve esse pensamento [de tolerância] porque a Bahia do século 17 já estava fortemente miscigenada de cristãos-novos e de cristãos", diz Bulcão. Para ele, o Padre Vieira também acreditava que os índios poderiam ser descendentes de tribos de Israel.
"Quando estava no Maranhão, ele chegou a tentar organizar uma expedição atrás de índios descendentes de antigos navegadores."
Apesar de ser um autor estudado no mundo todo (Europa, México, EUA etc.) e celebrado sobretudo em Portugal, Bulcão diz que não há dúvida da baianidade de Vieira. "Com todo o respeito aos portugueses, na verdade ele se sentia brasileiro, baiano. Falava com sotaque baiano. No final da vida queria morrer na terra dele [Bahia]. Isso é claríssimo", conclui.


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