São Paulo, domingo, 03 de fevereiro de 2008

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A psicanálise e o liberalismo

Jurandir Freire Costa lança ensaios e reedição de "História da Psiquiatria no Brasil", de 1974

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

J urandir Freire Costa é atualmente um dos nomes mais expressivos da psicanálise no Brasil. Responsável por uma vasta obra onde reflexões epistemológicas a respeito do estatuto da metapsicologia e da clínica analítica convivem com estudos de crítica cultural psicanaliticamente orientada, Freire Costa colaborou para a transformação da psicanálise em discurso que ocupa posição de destaque em nosso debate.
Essa obra singular aparece em dois livros: "História da Psiquiatria no Brasil" e "O Risco de Cada Um e Outros Ensaios de Psicanálise e Cultura". O primeiro é a reedição de sua dissertação de mestrado, defendida em 1974 na Escola Prática de Altos Estudos. O segundo, uma coletânea de artigos que se inserem no debate sobre as formas de subjetivação e sobre a relação entre sujeito e transcendência.
Em "História da Psiquiatria no Brasil", Freire Costa concentra-se na análise de um caso preciso e paradigmático: o pensamento médico da Liga Brasileira de Higiene Mental nos anos 20 e 30. Essa escolha permitiu ao autor expor a maneira com que expectativas normativas socioculturais fornecem o fundamento para a consolidação de práticas e problemas no campo da clínica psiquiátrica.
Pois a Liga, ao adotar a noção de prevenção como ação psiquiátrica anterior ao surgimento dos sinais clínicos da doença, transformou a psiquiatria em espaço privilegiado de discussão sobre as razões do atraso social brasileiro. O caráter normativo do discurso psiquiátrico revelava, em países periféricos como o Brasil, sua feição autoritária acoplando-se a políticas de "saneamento moral" e de aprimoramento da raça, como a eugenia e a crítica à miscigenação.
Neste estudo, fica clara a maneira com que insiste na solidariedade entre direção do tratamento clínico e modelos culturais de conduta e valoração. E, já aqui, aparece sua aposta em apelar aos valores liberais de reinvenção plástica de si, de abertura à redescrição contínua de nossos próprios sistemas de crenças enquanto ideal normativo do tratamento. Um liberalismo que o colocará nas vias da tradição pragmática de alguém como Richard Rorty.
"O Risco de Cada Um" é a exploração sistemática dessa perspectiva já presente em seu primeiro estudo. Freire Costa faz um movimento reiterado de crítica ao quadro compreensivo psicanalítico herdado de Freud. Pois ele não pode aceitar a idéia freudiana do caráter fundamentalmente conflitual das relações entre "eu" e "outro", nem, por conseqüência, aquilo que o autor chama de "o mito da gênese violenta da cultura", ou seja, a relação indissociável entre cultura e repressão pulsional através da constituição do sentimento de culpa.
Não cabe também a insistência freudiana e lacaniana na natureza traumática da relação do "eu" com a indeterminação da sexualidade e da morte. Daí, por exemplo, a crítica à noção psicanalítica de desamparo. Essas críticas, feitas através do recurso a uma certa noção de intersubjetividade primária que pode ser derivada das reflexões de [Donald] Winnicott sobre a natureza da relação entre bebê e mãe, acabam por acoplar-se à defesa das "exigências éticas implicadas na relação do sujeito com o "outro" transcendente da tradição greco-judaico-cristã".
Muito haveria a se dizer a respeito da escolha de Freire Costa em pensar a psicanálise dentro dos limites do liberalismo com seus valores de tolerância multicultural, redescrição e respeito à alteridade.
Afinal, ela talvez nos impeça de pensar a crítica social como crítica dos valores que visam legitimar nossas formas de vida e constituir sujeitos aptos a julgar moralmente a partir de certos ideais liberais de conduta, nos obrigando a pensar a crítica simplesmente como identificação das inadequações de nossas formas de vida a valores normativos intersubjetivamente partilhados. Possivelmente, esta seja a maior contribuição de Freud. Por fim, uma nota a respeito da crítica de Freire Costa à crítica psicanalítica à religião. O autor volta-se contra a redução freudiana da religião a modo neurótico de defesa.
Quer mostrar que "a religião não é o produto de uma mente em débito com o sexo, a morte ou a alienação ideológica". Mas talvez Freud não procure só reeditar o combate entre luzes e superstição, mas insistir em que a modernidade está bloqueada devido a um modo de organização libidinal reproduzido, de modo simétrico, em estruturas institucionais como a família, a religião e o Estado.
Como se as estruturas institucionais de reprodução de nossas formas modernas de vida, longe de serem desencantadas e laicas, ainda fossem dependentes de esquemas "teológico-políticos" que encontramos, principalmente, na tradição "greco-judaico-cristã". Afinal, não é sintomático que, mesmo não sendo o produto de uma mente em débito com o sexo e a morte, as religiões cristãs não cessem de falar sobre morte e sexo, de tentar nos ensinar como normatizá-los? Essas questões expõem a riqueza dos problemas levantados de maneira rigorosa e original por Freire Costa.

VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP, autor de "A Paixão do Negativo: Lacan e a Dialética" (Unesp) e "Lacan" (Publifolha).


O RISCO DE CADA UM E OUTROS ENSAIOS DE PSICANÁLISE E CULTURA
Autor: Jurandir Freire Costa
Editora: Garamond (tel. 0/xx/21/ 2504-9211)
Quanto: R$ 35 (196 págs.)

HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA NO BRASIL
Autor: Jurandir Freire Costa
Editora: Garamond
Quanto: R$ 28 (144 págs.)



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