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A psicanálise e o liberalismo
Jurandir Freire Costa lança ensaios e reedição de "História da Psiquiatria no Brasil", de 1974
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
J
urandir Freire Costa é
atualmente um dos nomes mais expressivos da
psicanálise no Brasil.
Responsável por uma
vasta obra onde reflexões epistemológicas a respeito do estatuto da metapsicologia e da clínica analítica convivem com
estudos de crítica cultural psicanaliticamente orientada,
Freire Costa colaborou para a
transformação da psicanálise
em discurso que ocupa posição
de destaque em nosso debate.
Essa obra singular aparece
em dois livros: "História da Psiquiatria no Brasil" e "O Risco
de Cada Um e Outros Ensaios
de Psicanálise e Cultura". O
primeiro é a reedição de sua
dissertação de mestrado, defendida em 1974 na Escola Prática de Altos Estudos.
O segundo, uma coletânea de
artigos que se inserem no debate sobre as formas de subjetivação e sobre a relação entre
sujeito e transcendência.
Em "História da Psiquiatria
no Brasil", Freire Costa concentra-se na análise de um caso
preciso e paradigmático: o pensamento médico da Liga Brasileira de Higiene Mental nos
anos 20 e 30. Essa escolha permitiu ao autor expor a maneira
com que expectativas normativas socioculturais fornecem o
fundamento para a consolidação de práticas e problemas no
campo da clínica psiquiátrica.
Pois a Liga, ao adotar a noção
de prevenção como ação psiquiátrica anterior ao surgimento dos sinais clínicos da
doença, transformou a psiquiatria em espaço privilegiado de
discussão sobre as razões do
atraso social brasileiro.
O caráter normativo do discurso psiquiátrico revelava, em
países periféricos como o Brasil, sua feição autoritária acoplando-se a políticas de "saneamento moral" e de aprimoramento da raça, como a eugenia
e a crítica à miscigenação.
Neste estudo, fica clara a maneira com que insiste na solidariedade entre direção do tratamento clínico e modelos culturais de conduta e valoração.
E, já aqui, aparece sua aposta
em apelar aos valores liberais
de reinvenção plástica de si, de
abertura à redescrição contínua de nossos próprios sistemas de crenças enquanto ideal
normativo do tratamento. Um
liberalismo que o colocará nas
vias da tradição pragmática de
alguém como Richard Rorty.
"O Risco de Cada Um" é a exploração sistemática dessa
perspectiva já presente em seu
primeiro estudo. Freire Costa
faz um movimento reiterado
de crítica ao quadro compreensivo psicanalítico herdado de
Freud. Pois ele não pode aceitar a idéia freudiana do caráter
fundamentalmente conflitual
das relações entre "eu" e "outro", nem, por conseqüência,
aquilo que o autor chama de "o
mito da gênese violenta da cultura", ou seja, a relação indissociável entre cultura e repressão
pulsional através da constituição do sentimento de culpa.
Não cabe também a insistência freudiana e lacaniana na natureza traumática da relação
do "eu" com a indeterminação
da sexualidade e da morte. Daí,
por exemplo, a crítica à noção
psicanalítica de desamparo.
Essas críticas, feitas através
do recurso a uma certa noção
de intersubjetividade primária
que pode ser derivada das reflexões de [Donald] Winnicott
sobre a natureza da relação entre bebê e mãe, acabam por
acoplar-se à defesa das "exigências éticas implicadas na relação do sujeito com o "outro"
transcendente da tradição greco-judaico-cristã".
Muito haveria a se dizer a
respeito da escolha de Freire
Costa em pensar a psicanálise
dentro dos limites do liberalismo com seus valores de tolerância multicultural, redescrição e respeito à alteridade.
Afinal, ela talvez nos impeça
de pensar a crítica social como
crítica dos valores que visam
legitimar nossas formas de vida
e constituir sujeitos aptos a julgar moralmente a partir de certos ideais liberais de conduta,
nos obrigando a pensar a crítica simplesmente como identificação das inadequações de
nossas formas de vida a valores
normativos intersubjetivamente partilhados. Possivelmente, esta seja a maior contribuição de Freud.
Por fim, uma nota a respeito
da crítica de Freire Costa à crítica psicanalítica à religião. O
autor volta-se contra a redução
freudiana da religião a modo
neurótico de defesa.
Quer mostrar que "a religião
não é o produto de uma mente
em débito com o sexo, a morte
ou a alienação ideológica". Mas
talvez Freud não procure só
reeditar o combate entre luzes
e superstição, mas insistir em
que a modernidade está bloqueada devido a um modo de
organização libidinal reproduzido, de modo simétrico, em
estruturas institucionais como
a família, a religião e o Estado.
Como se as estruturas institucionais de reprodução de
nossas formas modernas de vida, longe de serem desencantadas e laicas, ainda fossem dependentes de esquemas "teológico-políticos" que encontramos, principalmente, na tradição "greco-judaico-cristã".
Afinal, não é sintomático
que, mesmo não sendo o produto de uma mente em débito
com o sexo e a morte, as religiões cristãs não cessem de falar sobre morte e sexo, de tentar nos ensinar como normatizá-los? Essas questões expõem
a riqueza dos problemas levantados de maneira rigorosa e
original por Freire Costa.
VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP, autor de "A Paixão do
Negativo: Lacan e a Dialética" (Unesp) e "Lacan" (Publifolha).
O RISCO DE CADA UM E OUTROS
ENSAIOS DE PSICANÁLISE E
CULTURA
Autor: Jurandir Freire Costa
Editora: Garamond (tel. 0/xx/21/
2504-9211)
Quanto: R$ 35 (196 págs.)
HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA NO
BRASIL
Autor: Jurandir Freire Costa
Editora: Garamond
Quanto: R$ 28 (144 págs.)
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