São Paulo, domingo, 03 de março de 2002

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No caminho de Bamiyan


O ARTISTA PLÁSTICO ARTHUR OMAR RELATA SUA VIAGEM AO AFEGANISTÃO E COMENTA ALGUMAS DAS FOTOS QUE SERÃO EXPOSTAS NA 25ª BIENAL DE SÃO PAULO, A SER INAUGURADA NO PRÓXIMO DIA 23


Arthur Omar
especial para a Folha

Como em tantos trabalhos anteriores, um pedaço de mim ficou lá, habitando a obra, já não o tenho mais comigo. Às vezes é a simples forma do corpo que permanece na água do rio, depois que escapo de morrer afogado. Às vezes, é uma parte da mente que continua no mundo criado por uma obra cujo estilo não revisto nem retomo, mas que me arrebatou para sempre. No dia seguinte, abandono a pessoa que eu fui ao realizar estes trabalhos e me torno outra pessoa, em geral menor. Com o Afeganistão, vivo agora algo mais radical, e pela primeira vez. A sensação de não ter voltado, de estar lá e estar aqui, por inteiro, ao mesmo tempo. A idéia da expedição foi de Alfons Hug, curador da Bienal de São Paulo. Enviar um artista brasileiro para a zona de catástrofe, Ásia Central, o centro do mundo. O telefonema veio sob a forma de um chamado, algo absolutamente inesperado, que não se pode recusar. Meu tema na Bienal era a cidade utópica, a 12ª cidade, aquela que não existe. Agora eu iria mergulhar exatamente no oposto. O Afeganistão. Trazer para a Bienal um pedaço do Buda explodido de Bamiyan. Se é que havia sobrado alguma coisa. Eis a minha missão, em sua absoluta simplicidade. Fui acompanhado pelo fotógrafo Sérgio Gilz, cinegrafista do "Fantástico", que deveria documentar a viagem. Baseado em Londres, era especialista em situações de combate, Sarajevo, Kosovo, Tchetchênia, Vietnã, Nicarágua, Etiópia e, para refrescar, vulcões na Islândia. Nesse país não se viaja depois das 17h. Os desfiladeiros são altíssimos. As estradas esburacadas, mais estreitas que um carro, estão cheias de zonas minadas. Salteadores imperam. Saímos de Cabul, depois de acontecimentos mágicos numa mesquita com dervixes, às 11h. Chegamos a Bamiyan depois de meia-noite, escuridão total, e o coração na boca. Íamos num comboio de quatro carros, fortemente armados. Eu mesmo aprendi, numa aula-relâmpago, a erótica da Kalashnikov, já que é o item mais comum do equipamento, como colocar o pente curvo e como passar de um ombro a outro. Chegamos à cidade, ou ao que parecia um vilarejo, sem ter lugar onde ficar. O chefe local, etnia hazara, olhos puxados, origem mongol, visivelmente irritado pela invasão intempestiva da sua cidade pelo nosso bando, depois de longas negociações ordenou que uma "guest house" local nos cedesse um quarto por aquela noite. É a lei da hospitalidade.

Ruínas de Cabul
Não tínhamos a menor idéia da cidade de Bamiyan, ou por onde havíamos passado, nem onde estava localizada a casa. Abrimos os sacos de dormir, retirando antes as calças corta-vento e os agasalhos pesados. Não havia aquecimento nem luz, o gerador estava desligado. Estava 28C abaixo de zero. Nas paredes, encostados, os lançadores de foguete, as metralhadoras de cinta, as Kalashnikovs e o equipamento de vídeo. Devo ter sido o último a dormir -ou o único a não dormir. O corpo sentia ainda as trepidações infernais da estrada, a mente via desfilar em câmera lenta as ruínas de Cabul, as ruas sem fim num "travelling" magistral de destruição, tetos desabados, colunatas partidas, pedras sobre pedras e milhões de marcas de balas milimetricamente distribuídas em todas as superfícies disponíveis, indicando uma fúria quase alucinatória de atiradores a esmo.

Anunciação
Foi quando eu tive o sonho. Como descrever esse sonho, se era um sonho do qual eu estaria proibido de me lembrar. Alguém disse isso dentro do sonho: este é um sonho decisivo para você e você não poderá se lembrar dele nem fazer nenhum esforço para isso. Mas eu me lembro de uma história muito longínqua, uma borra de sonho que ficou no fundo da memória. Eu estava num salão central de um palácio oculto por lonas de circo, onde tremulavam bandeiras vermelhas, e uma reunião de pessoas importantes estava acontecendo. Eu sentado numa cadeira de pinho de riga. De repente, uma criança se aproxima. Eu a vejo sentar-se na cadeira, entre as minhas pernas. Eu, a princípio, não queria essa criança ali, não sabia quem era, mas não faço nenhum gesto de repúdio. Ao contrário, eu a recebo com um gesto de proteção infinita. Um homem se levanta e diz simplesmente: "Você vai ter um outro filho. Olhe bem esse rosto. Ele será assim". Era uma Anunciação.
Minha vida inteira passou em um segundo pela minha mente, como acontece com os personagens condenados à guilhotina em filmes sobre a Revolução Francesa. Comecei ainda dentro do sonho a chorar convulsivamente, esguichando lágrimas, empapando a roupa, como um bezerro desmamado, gemendo irracionalmente. Acordei chorando, com a respiração acelerada de uma experiência radical, mesmo sem entender do que se tratava.
A vidraça embaçada pelo frio da manhã não deixava ver o que havia lá fora. Abro a janela. E foi como um acorde de uma orquestra sinfônica. Não sabíamos onde estávamos o tempo todo. O rochedo! A casa era aos pés do rochedo, bem em frente ao grande Buda explodido, e tudo surge de repente com a majestade das pirâmides do Egito, as cavernas, as pedras, a imensidão.
Durante o dia, me recobrei. Subimos até a cabeça dos dois Budas vazios, ou seja, os nichos, já que a explosão taleban realmente destruiu tudo. Os afrescos das cavernas em volta, agora habitadas por refugiados miseráveis e doentes, foram arrancados a martelo e são vendidos aos pedaços em Islamabad e Peshawar, no Paquistão. O principal sai direto para a Europa e Japão. O que sobrou do Buda maior foi ensacado em grandes bolhas de plástico pela Unesco. Um ombro, um fragmento da mão esquerda e um pedaço da coxa. O resto virou pó. Mas o mais impressionante ainda estava por acontecer. Dias depois, deixamos Cabul e fizemos uma parada no Paquistão, aguardando o vôo para Londres, dali a dois dias. Minha cidade querida é Rowapindi. Penetramos em lugares realmente virgens de câmeras, feiras, refúgios, casas de madeira, o centro autêntico do povo. Bati uns 35 rolos de filme, principalmente de rostos, e já eram 17h quando resolvemos encerrar o trabalho, aquilo que seriam as derradeiras imagens colhidas na viagem. Guardei a Nikon na bolsa e dobramos uma esquina quando, de repente, um grupo de dez crianças refugiadas afegãs, órfãs errantes muito comuns nas ruas de Rowapindi, se aproxima de nós. Sacos nas costas, rostos sujos de carvão, semblantes amadurecidos na guerra e na morte familiar. Luta pela vida, combate diário, grupo coeso. Moram nas ruas. As mucosas atacadas por doenças que os afegãos chamam de "sohlna", incrustações na pele e lábios, que são doenças decorrentes de bombardeios. Os mortos nas ruínas são tantos que não podem ser enterrados, sempre sobram. Os animais os devoram e trazem a "sohlna" para as crianças. A "sohlna" também é decorrente de água contaminada pela putrefação de mortos nos reservatórios de água. Ou da putrefação carregada com a água da chuva para os reservatórios.

Crianças adultas
Automaticamente tirei a câmera da bolsa, voltei a fotografar. Fui registrando uma a uma cada criança, cujas faces eram extremamente vivas e adultas. Foi quando, de repente, mais uma vez, quase fui fulminado por um rosto, o quinto do grupo. Olho através da câmera e não acredito. Eu conhecia esse rosto. Afasto a câmera, olho nos olhos dele. Ali, na minha frente, eu estava vendo o menino do sonho. Eu havia marcado o rosto dele para sempre. Era ele. O meu filho? Então ele existe, ele já nasceu, ele está diante de mim, no último momento, na última foto, no último lugar, no último dia. Sua língua deve ser o dari, falada no Afeganistão todo. Como me comunicar com ele?
Aponto para mim mesmo e digo: "- Omar!". Aponto para ele, com um rosto interrogativo, significando "qual é o seu nome?". Ele responde sorrindo: "- Ousmane!". Eu pergunto: "- Paquistani?". Ele diz não: "- Afegani". Eu pergunto: "- Pápa?". Ele me olha em silêncio e responde com um gesto, a mão passando pelo pescoço como uma faca de corte, indicando morte. Sem deixar de sorrir, como todo o Afeganistão.
Bati, nesta viagem, mais de 7.000 fotografias. Naquele momento, eu juro, me passou pela cabeça, Ousmane seria a suprema fotografia, uma fotografia de corpo vivo, presente. Eu deveria trazer Ousmane comigo. Bastava um ato meu. Uma loucura. Talvez Ousmane fosse o fragmento do Buda tão esperado, talvez fosse um fragmento meu descoberto depois de anos sob os escombros de uma vida. Cheguei a ensaiar um "come with me". Ou um gesto de mão, um aceno, dizendo "vem". Depois um gesto representando um avião, o Brasil.
Não, ele não viria de qualquer forma. Mas confesso, pensei, por um momento, que a minha viagem só teria sentido se eu trouxesse Ousmane. Era uma decorrência natural da minha busca desenfreada por imagens. Seria o fim da imagem. A coisa em si, a arte transformada em ato. Ele tinha 11 anos, vestia um paletó cinza, uma calça azul marinho, um cachecol vermelho no pescoço e carregava suas coisas num saco plástico preto. Os garotos se juntaram em volta dele, dizendo: "Ousmane, vamos". Rindo da minha cara, o turista, o brasiliani. Um pedaço de mim ficou lá. E aqui, um nicho vazio num rochedo.


Arthur Omar é artista plástico e autor de "A Lógica do Êxtase" (Centro Cultural Banco do Brasil).

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