São Paulo, domingo, 03 de maio de 2009

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Ponto de Fuga

A selva de cabelos


Este "Pelléas et Mélisande" tem distribuição insuperável, interpretação cuja qualidade é rara de ser atingida mesmo nos teatros mais ilustres

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Últimos murmúrios da orquestra. A ópera "Pelléas et Mélisande", de Claude Debussy, termina no Teatro Amazonas de Manaus.
Obra meditativa, alusiva, cuja finura sonora é feita com a matéria dos sonhos.
Foi interpretada em forma de concerto, mas os cenários estavam ali, mais verdadeiros do que em qualquer encenação, feitos de música, coloridos pelos infinitos matizes dos sons, graças à formidável qualidade da Amazonas Filarmônica, cujos progressos são acelerados de ano em ano.
Fernando Malheiro, o maestro titular, regente brasileiro de qualidades excepcionais, possui uma inteligência da partitura que é própria somente aos muito grandes.
Associou a suavidade atmosférica de Debussy a um sentido narrativo e dramático constante, que mesmo muitas das melhores interpretações não conseguem manter. Os solistas foram ideais. O jovem tenor, Yann Beuron, cuja carreira decolou com brilho, possui não apenas a voz e o timbre perfeitos para o papel: o personagem de Pelléas o habitava por inteiro, luminoso de amor.
Mireille Delunsch, delicada, com coloridos ora sombrios, ora luminosos em seu timbre, era uma Mélisande ideal. Jean-Philippe Lafont, um dos grandes Golaud de todas as épocas, retomou em Manaus esse papel que ele interpretara no ano passado em Belo Horizonte.
Distribuição insuperável, interpretação cuja qualidade é rara de ser atingida mesmo nos teatros mais ilustres. Este Pélleas eleva a alturas vertiginosas a qualidade das manifestações culturais vinculadas ao ano França-Brasil.

Revelações
"É perto da fonte de Mélisande que Pélleas murmura: "Há sempre um silêncio extraordinário... Ouviríamos a água dormir". Parece que, para bem compreender o silêncio, nossa alma tenha necessidade de ver alguma coisa que se cale; para ter certeza do repouso, tem necessidade de sentir perto dela um grande ser natural que dorme." Essas palavras são do velho filósofo francês Gaston Bachelard, em seu livro "A Água e os Sonhos".
"Pelléas et Mélisande", história de amor impossível e de ciúmes, como tantas nas óperas.
Contém paixões e violência.
Tudo isso é disposto, porém, num mundo impalpável, cheio de fantasmas, cuja tênue consistência é a mesma dos que ficam na memória, no imaginário: Pelléas, obra preferida de Marcel Proust.

Os fios e as gotas
"Pelléas et Mélisande" funde arquétipos entre si: a aliança e o mar, o homem e suas idades, a visão e a cegueira, o parto e o ferimento, os cabelos... Ah! os cabelos, tema humano, aquático e vegetal a um tempo, que se mistura com as águas, como algas; com as árvores, como galhos.
Cabeleira graciosa, cabeleira sensual, cabeleira feminina odiada por tantas religiões como instrumento do pecado: Golaud punirá Mélisande puxando-lhe pelos cabelos.
Cabeleira daquela virada de século art nouveau e simbolista, que projetava nela tantos mistérios femininos, tantos mistérios universais.
"Nenhuma dúvida para mim", diz Pierre Boulez sobre Pelléas, "ela se mantém no mais alto nível, aquele que atinge uma cultura levada a reconhecer sua transfiguração num espelho privilegiado".

Interrogações
A transcendente execução de "Pelléas et Mélisande", dirigida por Fernando Malheiro, foi programada duas vezes em Manaus. Que nenhuma outra cidade brasileira se associe ao Festival Amazonas de Ópera para receber produções dessa categoria é sinal de indiferença generalizada e ignara. Felizes os manauaras.


jorgecoli@uol.com.br


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