São Paulo, domingo, 03 de maio de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+Memória

Crash final


Martin Amis fala de J.G. Ballard, "o escritor inglês mais original do século 20", e do papel da pornografia e da tecnologia em sua obra

MARTIN AMIS

Topei com [James Graham] Ballard pela primeira vez quando era adolescente. Ele era amigo de meu pai [Kingsley Amis], que fazia a defesa de seus primeiros livros, descrevendo-o como "a estrela mais brilhante da FC do pós-guerra" (todos os puristas chamam a ficção científica de FC [em inglês, "scientific fiction"] e nutrem apenas desprezo pelo termo "sci fi").
Ballard era um homem belo, com rosto maravilhosamente cheio e ressonante e olhos calorosos, que falava nas cadências do sarcasmo extremo, com ênfases fortes; não estava sendo sarcástico, apenas expressivo.
A amizade entre os dois não sobreviveu ao crescente interesse de Ballard pelo experimentalismo, que meu pai sempre caracterizou como "foder com o leitor". Mas eu sempre fiquei feliz em ver Jim mais tarde. Ele surpreendia por sua amabilidade inesperada, apesar da bizarrice extraordinária de sua imaginação.
Sua imaginação foi moldada por suas experiências do tempo da guerra em Xangai, onde foi detido [em 1943] em campo de concentração pelos japoneses. Tinha 13 anos à época e aderiu à vida no campo como teria aderido a "uma grande família favelada".
Mas não foi apenas o campo que o moldou -foi o valor baixíssimo atribuído à vida humana, algo que ele testemunhou durante toda sua infância.
Ele me contou que vira cules (trabalhadores braçais chineses) sendo espancados até morrer a cinco metros de distância de onde estava, e a cada manhã, quando era levado à escola numa limusine americana, sempre havia novos corpos estirados na rua.
Então chegaram os japoneses. Ele disse que "as pessoas nas democracias sociais não fazem ideia da brutalidade cotidiana que existe em partes do Oriente. Não fazem ideia nenhuma, realmente. E é bom que não façam."

Spielberg e Cronenberg
É interessante que seus dois romances mais famosos tenham sido filmados: "O Império do Sol", por Steven Spielberg (artista essencialmente otimista, que nunca tem medo de encarar temas históricos sombrios) e "Crash", por David Cronenberg (ele próprio um artista muito mais sombrio, especializado em filmar romances impossíveis de filmar).
"Crash" é o mais típico dos romances de Ballard. O livro é animado por uma obsessão pela sexualidade dos acidentes de estrada e nos lembra que a palavra "obsessão" é derivada do latim -"obsidere", que significa "sitiar". Ballard é assediado por suas obsessões.
Em sua obra, estado de ânimo e ambientação são idênticos. Ele tem muito pouco interesse pelos seres humanos no sentido convencional (e não tem ouvido algum para diálogos). É implacavelmente visual. "O Império do Sol", seu maior sucesso, foi recebido por seus admiradores como um soco na barriga.
Esse romance, que é totalmente realista, apesar da ambientação e dos incidentes bizarros, foi sentido como uma traição ao culto a Ballard.
Os integrantes desse culto sentiam que "Império" (como gostava de chamar o livro) mostrava como a imaginação dele fora distorcida, moldada nessa forma estranha. O romance era uma explicação naturalista de como sua imaginação se tornou aquilo que se tornou.
Para os seguidores do culto (sem muita lógica), era como se um curandeiro tivesse revelado como falsificava sua magia. Ballard começou como escritor de FC hardcore. Seus primeiros contos, versando sobre temas já familiares como a superpopulação, a decadência da sociedade e assim por diante, são tão bons quanto quaisquer outros escritos do gênero.
Mas o gênero não foi capaz de contê-lo. Seguiram-se quatro romances de apocalipse vitrificado - "The Wind From Nowhere" [O Vento de Lugar Nenhum, 1961], "The Drowned World" [O Mundo Submerso, 1962], "The Drought" [A Seca, 1964] e "The Crystal World" [O Mundo de Cristal, 1966]- em que o mundo era destruído pelo vento, pela água, pelo calor e pela mineralização.
Em seguida veio seu período brutalista, começando em 1970 com "The Atrocity Exhibition" (A Exposição da Atrocidade).
Dois contos desse livro dão o tom da coletânea: "The Facelift of Princess Margaret" [A Plástica Facial da Princesa Margaret] e "Why I Want to Fuck Ronald Reagan" [Por que eu Quero Foder Ronald Reagan].
Então o período de concreto e aço se estende com "Crash" (1973), "Concrete Island" [Ilha Concreta, 1974] e "High-Rise" [Alta Elevação, 1975].
O período seguinte também pode ser evocado por outro título: "Myths of the Near Future" [Mitos do Futuro Próximo, 1982]. Ele ainda estava nesse período quando morreu (apesar do belo e comovente livro de memórias "Miracles of Life" [Milagres da Vida], lançado no ano passado).
Os últimos romances -como "Cocaine Nights" [Noites de Cocaína] e "Super Cannes"- foram sobre o ativismo violento dos encraves empresariais e de ultrarricos numa espécie diferente de futuro próximo. Ballard aplicou a tudo isso suas habilidades xamanísticas.
Não parou de indagar que efeito o ambiente moderno exerce sobre nossa psique -as rodovias, a arquitetura dos aeroportos, a cultura dos shoppings, a pornografia e a tecnologia.
A resposta a essa pergunta é uma perversidade que assume várias formas mentais, todas elas extremas.
Quando rompeu com a FC rígida, Ballard disse que estava rejeitando o espaço sideral em favor do "espaço interno".
Sempre foi essa sua arena.
Ballard será lembrado como o escritor inglês mais original do século passado. Gostava de dizer que os escritores são "times de um homem só" e que precisavam do incentivo da multidão (ou seja, de seus leitores).

Talismã
Mas ele também será recordado como um gênero de um homem só: ninguém se assemelha a ele, nem mesmo remotamente. Ele foi um talismã. Muito poucos ballardianos (que são quase todos homens) foram tolos o suficiente para imitá-lo. Ele era "sui generis".
O que foi influente, porém, foi a maravilhosa cremosidade de sua prosa e as esdrúxulas e repentinas expansões das imagens que evocava.
Ballard foi um grande expoente do ditado de Flaubert segundo o qual os escritores devem ser ordeiros e previsíveis em suas vidas para que possam ser selvagens e sinistros em suas obras.
Ele viveu numa casa geminada em Shepperton que poderia muito bem ter sido chamada de "Desisti de perambular", e um Ford Escort vermelho-tomate ficava estacionado na vaga apropriada no jardim de frente.
Quando escrevi um longo perfil dele, em 1984, cheguei às 11h da manhã, e suas primeiras palavras foram "Uísque! Gim! Vodca!". Ele me disse que fãs de "Crash" vindos da Sorbonne, por exemplo, costumavam chegar na expectativa de encontrar um miasma de ácido lisérgico e abuso infantil.
O que encontravam de fato era um morador de subúrbio robusto, rotundo e espantosamente alegre, positivamente hilariante. Em 1964, sua mulher Mary morreu repentinamente durante férias familiares, então Ballard teve que criar os três filhos sozinho.
No começo ele só conseguia fazê-lo com a ajuda de um uísque de hora em hora, começando às 9h da manhã. Levou bastante tempo para adiar o início do consumo para as 18h. Perguntei a ele se tinha sido difícil, e ele disse: "Difícil? Foi como a batalha de Stalingrado".
Mas tudo sugere que ele foi um pai impecável, que adorava seus filhos.
A última vez em que vi Ballard, há três ou quatro anos, foi quando minha mulher e eu, além de Will Self [escritor] e Deborah Orr [jornalista], jantamos com ele e sua companheira havia 40 anos, Claire Walsh.
No restaurante, ele revelou que provavelmente tinha "cerca de dois anos de vida pela frente". Isso foi dito com coragem instintiva, mas com toda a melancolia que seria de se esperar de um homem que amou a vida com tanta paixão.


MARTIN AMIS é escritor inglês, autor de "Casa de Encontros" (Cia. das Letras). Este texto foi originalmente publicado no "The Guardian".
Tradução de Clara Allain.


Texto Anterior: Biblioteca Básica: Os Miseráveis
Próximo Texto: J.G. Ballard no Brasil
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.