São Paulo, domingo, 03 de junho de 2001

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Deuses escravizados

A guinada metafísica de Hollywood

por Boris Groys

Não há como ignorar: enquanto o filme europeu se preocupa de hábito com o humano, demasiado humano, os filmes do "mainstream" hollywoodiano, quem diria, ficam cada vez mais metafísicos. Tratam de deuses, demônios, alienígenas e máquinas pensantes. E seus heróis são movidos sobretudo pela questão de quem ou do que possa estar oculto por trás da ilusão do mundo visível. Assim, Hollywood passa abertamente a fazer da tão propalada crítica à indústria cinematográfica um tema próprio -e ao mesmo tempo a radicalizá-lo. Essa crítica adverte, come se sabe, que a indústria cinematográfica é uma ilusão sedutora gerada para nós -uma bela encenação do mundo que tem por tarefa escamotear a feia realidade, encobri-la, negá-la.
Ora, não é outra coisa o que afirmam muitos filmes recentes de Hollywood. Mas não é tanto a "bela ilusão" produzida cinematograficamente que se exibe como uma única e grande encenação, e sim todo o mundo "real" dos fatos cotidianos. Essa dita realidade é apresentada em filmes como "Truman Show" (1998) ou, de forma ainda mais coerente, "Matrix" (1999), como um "reality show" em curso, produzido com meios semicinematográficos num estúdio oculto sob a superfície do mundo. O herói de tais filmes é um iluminista, um crítico da mídia e ao mesmo tempo um detetive particular que quer desmascarar não só a cultura em que vive, mas também todo o seu mundo cotidiano como uma ilusão artificialmente produzida.
Hollywood, pois, reage à suspeita de manipulação estética que lhe é dirigida reativando uma suspeita metafísica ainda mais antiga e profunda -a suspeita de que todo o mundo perceptível poderia ser um filme rodado numa metahollywood remota. Nesse caso, os filmes hollywoodianos seriam "mais verdadeiros" que a realidade, pois ela não nos mostra geralmente nem o caráter artificial que lhe é próprio nem o que lhe está além. O novo filme hollywoodiano, ao contrário, elabora, ao refletir sobre seus procedimentos próprios, uma nova metafísica que interpreta o ato de criação como uma produção de estúdio. E assim o filme hollywoodiano adianta-se em muito ao grosso da atual cultura de massa. Pois saber se o filme hollywoodiano está ou não com a razão em seu esboço de metafísica é menos relevante do que o fato de, com isso, o além do mundo ser reposto na ordem do dia. A metafísica, por sua vez, como todos sabem, não desfruta atualmente de boa reputação nos meios culturais que antes a tinham por competência. Aliás nesses meios é quase algo espontâneo falar da "destruição" da metafísica -enquanto toda a esperança de um saber sobre os atributos do mundo é projetada sobre o conhecimento das ciências naturais.


O herói só é talhado para destruir de cima a baixo, no mais breve intervalo, o que o poder das trevas acumulou ao longo de anos de trabalho; então de todas as magníficas criações desse poder não restam mais que ruínas


Mas, afinal, o que é a metafísica? É um espaço discursivo no qual se pode formular a suspeita de que o mundo em que vivemos não seja possivelmente um mundo "natural", mas sim produzido, elaborado -um mundo artificial. E, sendo correta essa suspeita, então não bastam as ciência naturais para transmitir o que é este nosso mundo, pois as ciências naturais se ocupam apenas da natureza, e não da arte. Se, portanto, a própria natureza pode ser pensada como obra de arte, as ciências naturais (físicas) esbarram em sua fronteira "meta-física". Discutir o que possa estar por trás dessa fronteira e saber se lá operam deuses, demônios, super-homens, o proletariado ou máquinas escapa, como é sabido, à prova científica. Mas tampouco esse discurso se permite refutar ou de(scon)struir, pois todo o ato de uma tal refutação ou des(cons)tru(i)ção é ele próprio metafísico. Pode-se indagar tão-somente dos fundamentos psicológicos da atmosfera antimetafísica reinante, pois fundamentos racionais, fundamentos demonstráveis, para tanto não há.
À primeira vista essa atmosfera parece extremamente enigmática, pois contradiz em cheio nossa experiência diária. É que hoje em dia lidamos no mais das vezes com coisas feitas, artificiais -e assim parece natural pensar que também o mundo, em seu conjunto, possa ser artificial. Além disso, as ciências naturais são hoje, confessadamente, dependentes da técnica e, portanto, "construtivistas". Ou seja, as ciências naturais acreditam cada vez menos na natureza e cada vez mais na artificialidade de suas teorias. A crença na natureza, na "physis", no ser, tem hoje seu lugar cativo nas ciências humanas ou culturais, que a cultura compreende mais e mais como "segunda natureza" -o que não é por acaso, numa época em que as ciências naturais ganharam consciência de seu artificialismo.
Assim, as ciências culturais de(scon)stroem tudo quanto as ciências naturais construíram. Fala-se, como Derrida, sobre a escrita para além do escrever. Ou sobre o jogo de significantes para além do ato da significação. Ou sobre a técnica que o mundo nos abre, sem indagar como essa técnica se tornou realidade pelo trabalho industrial em geral etc. Desse modo, fica evidente de que perspectiva falam hoje as ciências da cultura: da perspectiva não do produtor, mas da do consumidor.
O consumidor é aquele que necessariamente entende (mal) a arte como (segunda) natureza. O consumidor vê o mundo inteiro como oferta a que tem de adaptar sua demanda -com o que esse processo é sentido ao mesmo tempo como agradável e doloroso. A oferta é a clareira para onde o consumidor dirige seu olhar -se bem que não sem o presságio de uma posterior desilusão. E em relação ao mundo, que é entendido como oferta, parece ser irrelevante saber se essa oferta é produzida artificialmente ou surge naturalmente. A decisão de consumir ou não consumir não diferencia o artificial do natural: ela se refere igualmente a tudo quanto é presente sem estar oculto. Antes uma tal perspectiva do consumidor, assim pura, era uma perspectiva obviamente exclusiva, aristocrática, privilegiada.
Ora, esses tempos são parte do passado. Na época do consumo de massas, a diferença entre natureza e arte perdeu o interesse para a esmagadora maioria. A massa de hoje é uma massa consumidora, já não mais uma massa trabalhadora.
Antes a produção era socializada, e o consumo, individual. Hoje o trabalho é extremamente especializado, individualizado: ele nos separa das massa, sendo que o consumo a ela nos une. Assim foi que, de lá para cá, a perspectiva do consumo se transferiu ao próprio trabalho: o trabalhador de hoje se vê como empregador, ou seja, como consumidor de trabalho que se contenta quando há trabalho o bastante e se entristece quando o trabalho rareia. Não é à toa que hoje em dia a pessoa é sempre confrontada com uma insólita pergunta: seu trabalho lhe dá prazer? Ora, o trabalho só pode obviamente dar prazer se não mais for trabalho, se for um bem de consumo entre muitos outros. Por isso as atuais ciências humanas e culturais partem da perspectiva do consumidor de modo quase automático. Não diferenciam mais a arte da natureza, antes vêem a cultura como segunda natureza, que lhes oferece -e ao mesmo tempo impinge- seus frutos, tal como computadores, aviões ou celulares. Já antes da Segunda Guerra Mundial Ortega y Gasset (1883-1955), em sua obra "A Rebelião das Massas" (Martins Fontes), diagnosticara esse desenvolvimento da consciência das massas para a compreensão da cultura como uma segunda natureza. Hoje tal compreensão domina não somente nossa consciência diária, mas também nossa teoria da cultura.
Os representantes dessa perspectiva do consumo pregam a serenidade, a harmonia -entre extasiada e desiludida- com a presente oferta e o desdém em relação a todas as questões metafísicas.

Ascese do autor
Apesar dos pesares, a pacífica serenidade engana. Não se dissipa a suspeita de que a segunda natureza possa ser arte e não meramente "cultura" -entendida como simples extensão agrotécnica do tradicional conceito de natureza. Ou seja, o espectro do trabalho não se deixa dissipar, pois tudo o que é artificial é produzido pelo trabalho, seja criação divina ou trabalho mecânico, proletário.
Aqui não se trata mais, porém, de um trabalho entendido como outro bem de consumo escasso, mas do trabalho metafísico na produção do mundo -o trabalho que é necessariamente ignorado da perspectiva do consumidor. Esse conceito radical de trabalho foi magnificamente tematizado por Hegel em sua dialética do senhor e do escravo -para seu comentador Alexandre Kojève, a relação entre senhor e escravo constitui o próprio cerne de toda a dialética hegeliana.
A dialética dessa relação consiste em que o senhor, que arrisca triunfalmente sua vida na luta pelo reconhecimento, escraviza aquele que prefere viver na derrota em vez de morrer lutando. A função do escravo consiste em satisfazer os desejos do senhor, isto é, criar-lhe um mundo em que este possa consumir com calma.
Ora, o escravo se revela em condições de manipular a tal ponto os desejos do senhor e seu mundo que o senhor é condenado à vida artificial ("künstlich") na obra de arte ("Kunstwerk") que o escravo lhe constrói e por isso é também perfeitamente dominado. O senhor vira escravo de seu escravo. E assim também a massa de senhores-consumidores, que é a massa moderna por excelência, não pode deixar de sentir e de odiar a dominação do trabalho oculto, que agora porém é realizada por indivíduos. As relações estatísticas inverteram-se desde Hegel: a maioria é hoje constituída pelo consumo, e a minoria, pelo trabalho. Mas o antigo ódio permanece -o ódio do consumidor pelo trabalho que secretamente o manipula, que se faz sentir nitidamente por trás da serenidade superficial.
Os velhos deuses não estão mortos. Foram, sim, escravizados na luta heróica do Iluminismo. E foram escravizados precisamente porque -graças à sua imortalidade- não podem perder a vida em batalha, mas estão condenados a sobreviver na derrota. A tentativa de Nietzsche de emprestar a Deus, aceitando sua mortalidade como hipótese, uma dignidade aristocrática é equivocada. Os deuses, ao contrário dos homens, desconhecem o conceito de dignidade, pois são incapazes de pôr a vida em jogo. Aliás, tampouco o autor, que conta com a sobrevida de sua obra, possui uma dignidade -ainda que viva no mundo como homem. É por isso também que o anúncio da morte do autor por Foucault é para o autor muito lisonjeiro -e precipitado.
Assim é que os deuses e demais autores, mesmo após o triunfo do Iluminismo, persistem em sua existência indigna. Mas essa existência indigna, servil e simultaneamente vampiresca é tão monstruosa, tão intolerável aos olhos e ouvidos do consumidor triunfante, e assim tão radicalmente metafísica, que se prefere -segundo a famosa tirada de Wittgenstein- calar a respeito. A questão do criador, do trabalhador, do autor é por isso proibida hoje em dia nos círculos distintos -ou antes é reprimida, é recalcada. A ideologia filosoficamente correta hoje imperante exige de nós pensar a oferta sem o ofertante, a técnica sem o técnico, a arte sem o artista.
Mesmo as célebres figuras de autores-sucedâneos, esboçadas pela filosofia moderna, como a natureza, o ser, o destino ou o acaso, ainda parecem ao pensador atual excessivamente autorais. Estamos às voltas com uma verdadeira ascese, que exige de um consumidor distinto, filosoficamente escolado, não falar sobre os deuses escravizados que têm de oferecer o mundo a esse consumidor para que lhe seja permitido ter seus desejos satisfeitos. Nessa ascese ainda se manifesta, é claro, um certo respeito pelos deuses. Mas nela são também perceptíveis ecos do velho medo de ainda viver como escravo dos deuses escravizados. O triunfo do Iluminismo, nesse meio tempo, virou história -e assim uma simples narrativa, uma lenda, um boato.
Assim é que nasce o medo de que esse triunfo talvez não tenha ocorrido ou haja sido insignificante, e que os deuses-escravos pós-iluministas, pós-seculares, de acordo com a dialética hegeliana, reinem em segredo, como antes, pela simulação e manipulação -e por isso sejam muito mais difíceis de combater que outrora.
Ora, esse medo que o filósofo aprendeu com sucesso a reprimir se exprime com tanto mais clareza na atual cultura de massas. Sobretudo no filme hollywoodiano sempre é encenada a luta entre um herói que representa o Iluminismo triunfante e um poder manipulador das trevas, invisível, escravizador. Esse poder, por via de regra, é extremamente criativo e tecnicamente versado. Em trabalho infatigável, cria esse poder hierarquias complexas, armas maravilhosas, complicados sistemas de comunicação e sobretudo métodos de ilusão incrivelmente refinados. O herói, ao contrário, é quase sempre benevolente e dotado de inteligência apenas mediana, embora fisicamente apto. Esse herói é um iluminista e consumidor paradigmático. Mas é sobretudo alguém disposto a arriscar sua vida na luta: ele tem dignidade.
Porém é totalmente incapaz de um trabalho sistemático. O herói só é talhado para destruir de cima a baixo, no mais breve intervalo, o que o poder das trevas acumulou gradualmente ao longo de anos e anos de trabalho. Após a intervenção do herói, de todas as magníficas criações desse poder das trevas não restam mais que ruínas. Trata-se, portanto, de uma variante heróica do consumo como tal. A relação entre produtor e consumidor é caracterizada em geral por uma certa assimetria das condições temporais sob as quais se dão a produção e o consumo. O consumidor é capaz de consumir -ou ao menos comprar- instantaneamente tudo o que o produtor criou por obra de um trabalho que se alonga no tempo. O atual herói cinematográfico é, pois, um consumidor radical que realiza seu consumo sob risco de vida no "mortal combat" com o produtor.
Nessa luta de vida ou morte, manifesta-se o consumo como aquilo que ele é em sua essência, ou seja, como uma destruição cabal de tudo o que é produzido e assim como um desapoderar do poder secreto do produtor.


Não há aparição mais triste do que a aparição do autor em meio ao mundo por ele criado; ele sempre parece exausto, doentio, desleixado, deselegante, pouco atlético, fisicamente monstruoso, ridículo em suma -ou seja, francamente desumano


No "mortal combat" entre o poder das trevas criativo, manipulador, simulador, "autoral" e o consumidor radiante que o filme atual não se cansa de encenar, os deuses são sempre derrotados -sob o eterno risco de vida do herói. Assim é que a atual massa consumidora celebra um novo herói, que em nome dela põe a nu deuses, demônios, tiranos e trabalhadores e sempre os escraviza -ao que a arte, entendida como segunda natureza, sempre se deixa consumir e desfrutar insuspeita.
O produtor pode ser representado por uma organização, tal como nos filmes de James Bond, ou por hábeis alienígenas, muito mais avançados em seu saber, tal como em diversos filmes de ficção científica. Num caso como no outro, ele nunca tem boa aparência. É que o produtor tem de trabalhar muito, tem de investir muito tempo e muito saber para desenvolver e levar a cabo seus mais sinistros planos de criação e dominação secreta do mundo. Não há aparição mais triste do que a aparição do autor em meio ao mundo por ele criado. Ele sempre parece exausto, doentio, desleixado, deselegante, pouco atlético, fisicamente monstruoso, ridículo em suma -ou seja, francamente desumano. Ao contrário, o consumidor paradigmático, ou seja, o ser humano paradigmático, parece em geral saudável e costuma ser boa-pinta -é bem tratado, fisicamente apto, de maneiras desenvoltas, sempre na moda e cheio de humor.
Isso, por sinal, não é coisa tão nova: os antigos deuses não eram lá muito atraentes -até que, graças às academias de ginástica da Antiguidade grega, adotaram uma forma humana, ou seja, atlética. Mas por volta da mesma época e pela mesma razão foram postos no olho da rua. Nos filmes recentes, um autor, seja ele representado como vampiro, alienígena ou simplesmente como criminoso, só tem boa aparência quando se esconde atrás da simpática, mas enganosa, máscara de um consumidor triunfante, por ele igualmente produzida com artifício para ocultar sua verdadeira natureza.
Mas cedo ou tarde essa máscara lhe é arrancada -e enfim o mundo pode atentar no rosto repulsivo, monstruoso, enfermo, degenerado do autor. Esse é um rosto que jamais sentiu o cheiro de um creme Nivea ou Shiseido. E, se Spielberg, no "E.T.", e Lucas, em "Guerra nas Estrelas", tentaram ainda, por razões mais que óbvias, nos reconciliar com a aparência do autor metafísico, não foram mais do que uma grande exceção: a história do filme nos mostra que o cinema, nesse particular, é em geral inclemente. Ele cala simbolicamente a posição do consumidor, isto é, do espectador, nesse caso, e se mostra profundamente estarrecido com sua própria figura. Vamos a dois exemplos que se sobressaem.

Metropolis e o segredo sujo O primeiro filme no qual o rosto metafísico do trabalho foi mostrado de modo coerente e convincente e que serve de modelo para a maioria dos filmes hollywoodianos ulteriores é sabidamente "Metropolis" (1927), de Fritz Lang. De início, em "Metropolis", apresentam-se as massas escravizadas de trabalhadores que produzem o mundo dos senhores em trabalho monótono, mas que desse mundo permanecem excluídos. Trata-se de escravos de primeira ordem que produzem o mundo dos senhores, sem manipulá-lo. Esses escravos do trabalho, é verdade, são mostrados com compaixão, mas sem simpatia.
O olhar deles inspira medo, e sente-se logo que primeiro têm de ser libertados do trabalho para depois poderem ingressar no mundo dos senhores consumidores como pessoas de valor. Assim, tal qual são, ou seja, como trabalhadores, eles não são adequados ao mundo e têm de permanecer de fora. Em nossa cultura, o trabalho não só é tradicionalmente odiado, mas é associado além disso ao pecado, à maldição bíblica como castigo para a curiosidade criminosa. Ser distinto em nossa cultura significa não ser desnecessariamente curioso e, portanto, não ter trabalho a mais.
O verdadeiro sonho da cultura européia é o surgimento das coisas para além do trabalho -pela eficácia imediata e não cansativa da natureza. Todos os conceitos-chave de nossa tradição cultural atestam isso: a inspiração, a auto-realização -todos eles sugerem a criação para além do trabalho, de modo que o cheiro de suor do trabalho não seja sentido no produto final. Para um verdadeiro artista, a maior ofensa consiste na afirmação de que o seu trabalho cheira a suor e que sua criação deixa transparecer o grande volume de trabalho que ele investiu na obra. Nesse sentido, a arte de hoje é em muitos sentidos a culminação desse desenvolvimento. A estética do "ready-made", o conceptualismo etc. são tentativas da parte dos artistas de se tornarem definitivamente distintos, ou seja, de se tornarem consumidores que não trabalham, mas somente escolhem ou deixam de lado. O trabalho, pois, permanece até hoje o verdadeiro segredo sujo de nossa cultura -muito mais sujo que, por exemplo, a sexualidade, que há muito ganhou os salões e flameja em todas as telas de TV. Assim é que o filme "Metropolis" já motiva uma quebra de tabu -que até hoje se faz sentir como tal- pelo fato de mostrar o trabalho, mesmo que o assombro do diretor à vista do trabalho ainda seja perceptível. Isso porque o trabalho, tal como é mostrado em "Metropolis", positivamente não dá prazer aos trabalhadores. Trata-se de um trabalho absolutamente submisso ao arbítrio "natural" do senhor e, por isso, experimentado como pura opressão.
A essa opressão respondem os trabalhadores no filme com a tentativa de uma revolução proletária. Ora, essa revolução fracassa com a descoberta do trabalho de segunda ordem -o trabalho oculto, manipulador, diabólico da simulação e manipulação que ameaça e domina senhores e escravos sem distinção. A "falsa Maria" que, no estilo de Rosa Luxemburgo, desencadeia a luta de classes e guia os trabalhadores revolucionários se revela um "ser-máquina". Ela é a máquina de segunda geração -que, tal como as máquinas de primeira geração, foi criada pelo inventor Rotwang. E ela corporifica ao mesmo tempo a máquina da dialética hegeliana, que transitou da realização do desejo para a manipulação do desejo -é uma máquina da sedução, do anseio, da vontade de desapoderar secretamente o senhor que usufrui. É uma máquina da segunda revolução industrial, uma máquina cibernética, dotada de "inteligência artificial" e que quer destruir as máquinas não-dialéticas de primeira geração para estabelecer definitivamente o domínio das máquinas. Na verdade a falsa Maria anuncia a civilização em que vivemos, na qual o trabalho de segunda ordem, ou seja, o trabalho da simulação e da manipulação, reina unânime.
Ora, Fritz Lang -ao menos à primeira vista- resiste ao domínio das novas máquinas. E envia assim o filho do senhor supremo, isto é, do consumidor supremo, como salvador e redentor no "mortal combat" contra a máquina da manipulação e seu inventor Rotwang. O jovem herói arrisca sua vida na luta direta e renova assim a pretensão do consumidor ao domínio.
A máquina da manipulação é aniquilada. A bela, a sedutora, a feminil ilusão do ser-máquina é desmascarada. Atrás de sua máscara se revela uma construção de aço bastante disforme. O genial inventor Rotwang tampouco parece dos mais atraentes -tem as feições cansadas, pouco simpáticas, é um velho desastrado, histérico, alienado, que claramente não chegaria aos pés do herói bem treinado no plano esportivo. E, assim, o espectador alegra-se quando esse feio autor é morto em nome do belo consumidor.
Nisso se revela nitidamente como se dá a morte do autor, de que fala Foucault como de um evento inevitável da história do espírito. O autor não morre simplesmente. É morto pelo consumidor em combate direto -pelo consumidor que, por nunca ter trabalhado, teve mais tempo e oportunidade de treinar sua força muscular e se preparar para a batalha decisiva. Em razão desse triunfo do consumidor surge a situação que é descrita no discurso sobre a morte do sujeito: uma técnica sem técnico, uma arte sem artista, uma invenção sem inventor etc. A ameaça representada pelo inventor, pelo trabalhador, pelo sujeito da simulação e da manipulação, está banida. Restam somente as máquinas não-dialéticas da primeira geração -máquinas da segunda geração, devido à morte do autor, não podem mais surgir.
Com isso os trabalhadores que se valem das máquinas da primeira geração se tornam empregadores, ou seja, consumidores de trabalho no horizonte de um acordo trabalhista que se fecha num piscar de olhos. Esses empregadores distinguem-se então dos senhores somente pelo modo e pelo grau de seu consumo. Assim, a sombria dimensão metafísica do trabalho é eliminada. Trata-se agora finalmente de um trabalho que pode e deve dar prazer. E de fato: de nossa perspectiva atual, as cenas de "Metropolis" nas quais as massas trabalhadoras são mostradas oferecem a imagem de uma enorme e agitada festa tecno.
Contudo, mesmo após o triunfo sobre o inventor no filme, perdura ao menos uma máquina da manipulação. Essa máquina é o próprio filme. E também o inventor dessa máquina perdura: o próprio Fritz Lang. Fritz Lang e seu filme revelam-se, portanto -comparados a Rotwang e sua falsa Maria-, um par bem mais eficiente e mais apto à sobrevivência. A razão para tanto é que Fritz Lang e seu filme não aspiram a um reconhecimento explícito de seu poder -eles não têm a dignidade que Rotwang e Maria ainda possuem.
Em vez disso, o filme realiza o ostensivo gesto de submissão ao domínio do consumidor e assim preserva seu poder factual, manipulador. A indústria cinematográfica declara-se pronta para viver numa escravidão radical, mais além -e já não mostrar seu semblante metafísico. Quando os funcionários da indústria cinematográfica se mostram favoráveis a este ou aquele fim propagandístico, vestem a máscara do consumidor exemplar. Em "Metropolis", a indústria cinematográfica declara-se a única máquina efetiva da sedução -que em nosso mundo midiático haverá de permanecer sem concorrência. Ora, hoje a consolidada indústria cinematográfica começa outra vez a mostrar suas feições escravas e a tematizar novamente a figura do autor.

A estratégia de Matrix Muitos filmes da atualidade evidenciam essa repulsiva e indigna figura do autor que sobreviveu à morte e tem de perpetuar indefinidamente sua feia existência. Claro que todo autor é um vampiro que, mesmo após a sua morte, isto é, mesmo após sua derrota definitiva na luta pela vida, se sustenta do sangue vivo dos leitores, espectadores e comentaristas -do tempo de vida deles, de sua atenção, de sua imaginação, que o autor manipula habilmente. Mas são sobretudo os filmes de tais vampiros que bebem sem cessar o sangue de quem frequenta os cinemas.
Os filmes lhes sugam as forças vitais, as paixões, para continuarem a cintilar -ainda quando os espectadores cujo sangue foi sugado de há muito já morreram. Assim é que a máquina da indústria cinematográfica mantém-se em funcionamento pelo fato de sugar e consumir a força vital dos espectadores. Eis por que essa máquina é tão imortal e indigna quanto qualquer outra máquina.
As máquinas são como deuses: são indignas porque imortais. Uma máquina pode quebrar, mas não morrer, pois, por mais quebrada que esteja uma máquina, pode ser consertada ou, no pior dos casos, substituída por uma máquina idêntica. De longe em longe a indústria cinematográfica tenta conferir nova dignidade às máquinas, isto é, a si mesma, ao encenar, por exemplo, em "Exterminador do Futuro" (1984) e "Exterminador do Futuro 2" (1991), um "mortal combat" entre homem e máquina ou entre (uma) máquina (boa) e (uma) máquina (má). Porém uma máquina que pode morrer não é mais uma máquina, senão uma pessoa. O grande mérito do filme "Matrix" consiste em mostrar a indignidade divina da máquina, que não se deixa envolver em nenhuma luta direta.
Em várias matérias sobre "Matrix" pôde-se ler que o filme mostra um mundo no qual as máquinas escravizaram as máquinas. Na verdade é o contrário: o filme mostra um mundo em que as máquinas se tornaram definitivamente os senhores. As pessoas não trabalham mais, só desfrutam, ao assistirem continuamente a um filme perfeito que as máquinas lhes produziram. Toda a realidade cotidiana é entendida então como "ready-made" -como obra de arte que pode e deve ser considerada e fruída como tal. As pessoas, pois, viraram exclusivamente espectadores de cinema (o que decerto é o sonho da indústria cinematográfica): sentam-se confortavelmente em suas poltronas bem estofadas, são atendidas de todos os lados e servidas em todas as suas funções vitais pelo trabalho das máquinas -a visão de um robô utópico, perfeito. É claro que as pessoas são também totalmente controladas pelas máquinas -mas não se trata do poder do senhor sobre o escravo, e sim do poder dialético do escravo sobre o senhor. As máquinas manipulam as pessoas e lhes sugam as energias de seus anseios, de que as máquinas necessitam para funcionar. Mas esse domínio das máquinas é um domínio de escravos, não um domínio de senhores.
Por isso a rebelião de um punhado de pessoas contra as máquinas, que o filme "Matrix" retrata, é uma rebelião dos senhores contra os escravos -a rebelião dos consumidores contra o domínio do trabalho e contra o trabalho como tal. O senhor rebela-se aqui para, sob risco da própria vida, reivindicar sua dignidade e portanto seus verdadeiros desejos, para descobrir o verdadeiro mundo -o mundo além da ilusão que nasce com o trabalho, da ilusão artificialmente produzida.
É claro que os rebelados não têm por objetivo substituir as máquinas em sua posição de detentoras do poder, ou seja, executarem eles próprios o trabalho duro antes executado pelas máquinas. Nem Neo nem os demais protagonistas da rebelião estão sob suspeita de pleitear o direito de serem novamente trabalhadores como recompensa pelo seu eventual triunfo.
O bando rebelde tem simplesmente uma aparência muito in, muito "cool", muito bem treinada e bem vestida para podermos imaginá-lo como a coletividade operária do futuro que assumirá o papel das máquinas. A única coisa que querem os rebeldes é manifestamente neutralizar a dialética hegeliana e erigir novamente o domínio não-dialético do senhor sobre o escravo. Neo e seus camaradas querem ver realizados seus desejos "naturais" -sem o embuste da parte dos escravos, sem o perigo da manipulação e simulação.
Mas, de lá para cá, o trabalho da dialética avançou muito, e o triunfo do senhor sobre o escravo dialético, que em "Metropolis" ainda se tinha por algo possível, se revela, em "Matrix", como mais outra ilusão.
A rebelião fracassa porque a luta permanece indecisa -as máquinas da atual indústria cinematográfica não estão mais prontas para se lançar ao "mortal combat". O escravo de hoje internalizou perfeitamente a perda da dignidade e da honra. Não se sente mais ofendido. Tornou-se metafísico demais para exigir um desagravo -uma afronta puramente mundana não atinge mais os deuses-máquinas. O escravo moderno, dialético, esquiva-se da luta com o senhor em revolta. E de fato: como podem as máquinas partir para a luta franca em posição tão desvantajosa -como uma lagartixa debaixo d'água? As máquinas de "Matrix" são autores após a morte do autor como pessoa -indignas e disformes figuras de escravos que, dentro de um mundo criado por elas próprias, não se deixam ver para não assustarem desnecessariamente o espectador.
Em vez disso, as máquinas enviam para a guerra os produtos de seu trabalho: máscaras, duplos, ilusões. As máquinas, agindo como deuses escravizados que trabalham, seduzem e desestabilizam o herói -e deixam-no se perder no escuro e insondável âmago metafísico de seu domínio escravo. No fundo é somente o traidor da rebelião que mostra aos outros o caminho certo: não é preciso acreditar na realidade, na "naturalidade" do mundo -e tampouco é preciso, pois, revolta contra essa crença.
Em vez disso, a pessoa desfruta o mundo como obra de arte, como "ready-made" inserida num contexto maior, metafísico, que age como um museu no qual os objetos "naturais" de nossa civilização, quando lá expostos como "ready-made", revelam sua artificialidade.
Ao encenar a indústria cinematográfica, o "mortal combat" entre o herói que representa a massa consumidora dos espectadores e as máquinas que essa própria indústria cinematográfica representa, a indústria cinematográfica quer desvirtuar a suspeita de manipulação que o espectador dirige contra ela -e isso pelo fato de confirmar essa suspeita. Em consequência, não se trata mais, em "Matrix", de uma destruição fictícia do domínio do escravo manipulador, tal como ainda era o caso em "Metropolis", mas de uma derrota abertamente admitida da rebelião -ou ao menos de um desfecho incerto, que equivale a uma derrota.
A revolta esclarecida contra a metafísica finda com uma derrota porque essa própria derrota é metafísica. É que a revolta contra o domínio das máquinas da indústria cinematográfica se realiza também no interior do filme, do sonho, do sono impotente -o nome do líder insurreto, "Morfeu", indica que se trata de uma rebelião de sonâmbulos. O próprio sonho metafísico vira uma máquina -em verdade uma máquina que é um ultimato, que produz sempre novos monstros para saciar nossa ânsia pelo além. A verdadeira revolta contra o filme só é possível no sono e como sono -mas apenas na medida em que o sono substitui o filme.
O filme "Matrix", pois, só se mostra tão convincente pelo fato de corroborar e radicalizar a suspeita crítica, de fundo cultural, que todo espectador acalenta quase instintivamente contra o filme como tal. Essa é a nova estratégia da atual mídia de massas: autopropaganda, auto-abandono, auto-recriminação -tal como no caso do célebre programa de TV "Big Brother", que jamais poderia ter tido tamanho sucesso se não tivesse confirmado, já pelo título, os piores receios que geralmente se nutrem contra a TV como tal. Ao desmascarar-se radicalmente e depreciar-se explicitamente à opinião pública, a indústria cinematográfica e televisiva produz confiança e um sentimento de cumplicidade no espectador.
Quando não se acredita mais na bela ilusão é que tanto mais se acredita em seu desmascaramento. Mostrando-nos que o mundo "por dentro" é ainda pior do que nos faria supor o pior dos pesadelos, o filme "Matrix" nos induz a uma identificação com sua visão de mundo ainda mais forte do que o era capaz o clássico, o "belo" filme hollywoodiano. Uma tal crítica cultural que rende preito a si própria poderia ser interpretada em termos correntes como "adoção" da tradição crítica. Ora, não se deve esquecer, porém, que a crítica cultural desde o princípio foi dotada de alto teor de diversão -e esteve profundamente relacionada com notórias figuras do ramo de entretenimento.
O iluminista, afinal, não passa de um detetive particular, que considera o mundo inteiro como cenário de um possível crime. E isso significa sobretudo que, como iluminista, a pessoa não busca na verdade a feia realidade que se oculta atrás da bela ilusão produzida artificialmente; busca sim a arte feia, o trabalho sujo, a subjetividade suspeita que se ocultam atrás da bela ilusão da realidade. Em suma, o verdadeiro iluminista não busca a realidade por trás do filme, e sim o estúdio do filme por trás da realidade.

Mostrando-nos que o mundo "por dentro" é pior do que nos faria supor o pior dos pesadelos, "Matrix" nos induz a uma identificação com sua visão de mundo ainda mais forte do que o era capaz o clássico filme hollywoodiano


Rebelião no parque temático A guinada metafísica no filme hollywoodiano, de que eu falava no início, é portanto sobretudo o sintoma infalível de que o filme ingressou em sua era de auto-reflexão. Várias outras artes, mais velhas, já passaram por essa fase, e outras, mais jovens, ainda a tem diante de si. A literatura e a pintura, por exemplo, viveram sua época de intensa auto-reflexão, ou seja, a época da vanguarda, já no princípio do século 20. No caso do filme, essa fase da auto-reflexão começou há pouco. São várias as razões para tanto. A maior delas esteja talvez no fato de que só recentemente, graças à técnica de vídeo, se alcançou a possibilidade de organizar coleções privadas de filmes com que se possa lidar de uma forma bastante individual, tal como antes com bibliotecas e pinacotecas. Essas novas técnicas são cada vez mais refletidas no próprio filme, -o exemplo atual mais impressionante é "Beleza Americana" (1999). Mas essas novas técnicas de produção e apropriação individual de filmes conduziram sobretudo a que as condições gerais de produção e distribuição do filme fossem refletidas pelo próprio filme.
Ora, perguntará alguém: por que o espectador levará a sério esse tipo de auto-reflexão? Afinal, esses monstros, vampiros, alienígenas e máquinas pensantes parecem mais produtos de uma imaginação totalmente pueril, que não cabe tomar a sério. Esses produtos da fantasia não fornecem, à primeira vista, uma explicação de como a indústria cinematográfica é e funciona "na realidade". Para sabê-lo, muito mais úteis parecem ser a sociologia, a análise econômica, a análise de poder etc. Sem prejuízo do que todas essas veneráveis ciências são capazes, incorrem elas num erro fundamental. Não consideram a possibilidade de que a própria realidade, inclusive toda a sociologia, a ciência econômica etc., possa ser um filme mal produzido.
Por isso filmes como "Matrix", que sugerem essa possibilidade, estão muito acima de todas as teorias que têm a pretensão de descrever a própria realidade, inclusive a realidade da produção cinematográfica. Seja como for, esses filmes ratificam a suspeita de que todo o mundo possa ser artificial -e assim, em sua pretensão crítica, vão muito além de todas as teorias que querem pensar o mundo como real, como natural- até mesmo no sentido da técnica, entendida como segunda natureza. O filme representa assim o "locus" em que não só o próprio filme, mas todo o mundo atual, impregnado pela mídia, alcança uma auto-reflexão radical. No filme se dá a auto-reflexão de toda a mídia que opera com imagens animadas. Por isso só se pode interpretar o mundo presente da mídia comentando a auto-interpretação desse mundo -tal como essa auto-interpretação se manifesta no filme.
Assim o filme é sucessor dessas outras artes, mais antigas, que concluíram em tempo anterior a fase da auto-reflexão. Pois essas artes não refletiram somente sua própria práxis, mas também seu método como um todo. Na literatura moderna, não somente o texto literário foi submetido à primazia da auto-reflexão, mas todo e qualquer texto. E, na pintura moderna, não somente a imagem pictórica, mas toda e qualquer imagem. Pode-se definir em geral a práxis da arte moderna como auto-reflexão de seus métodos. Por isso passou a ser um tanto ingênuo na modernidade refletir teoricamente sobre métodos de outra forma que não seja comentar a auto-reflexão por meio da arte. Perguntas do tipo: "O que é uma imagem?" ou "Qual o sentido de um texto?" etc. não podem, em se tratando de quadros e textos modernos, ser formuladas e discutidas de uma perspectiva metaartística.
Isso porque, de seu lado, toda teoria é sobretudo um texto -e portanto uma fração da literatura. Ao mesmo tempo todo texto, como já constatara Platão, é também imagem -isso foi muito bem evidenciado, em nossa época, pela arte conceitual. Assim o teórico, seja lá sobre o que escreva, jamais pode esquecer que a auto-reflexão da escrita por meio da arte, sendo incontornável, implica também o seu próprio ato de escrever. Quando, portanto, o teórico se declara em condições de adotar uma posição externa em relação à arte, apenas manifesta com isso sua incapacidade de refletir a dimensão artística da própria produção de seu texto.
Por isso todos os teóricos que querem descrever a práxis artística como um acontecimento puramente mundano são tão insatisfatórios -ainda que, aqui e acolá, ofereçam ao leitor insights interessantes. Isso pode ser dito tanto da sociologia artística de Bourdieu quanto da teoria dos sistemas -para citar apenas dois casos de discurso teórico programático, antimetafísico e sociológico que viraram moda. É que esses dois discursos descrevem a arte como (sub)sistema de um sistema social maior ou como uma práxis de grupo bem definida, puramente sociológica. Obras de arte são aí entendidas como coisas reais que são produzidas e distribuídas no mundo real.
Ao contrário, os mundos que a própria arte delineia são ignorados como puramente imaginários e artificiais. Mas com isso se ignora que o mundo em que essas descrições sociológicas têm lugar é por sua vez um mundo absolutamente artificial -trata-se, afinal, do mundo da literatura. A analogia com as artes plásticas elucida a questão. O significado das obras das artes plásticas depende antes de tudo do lugar ocupado por tais obras no espaço de um museu: é possível, como se sabe, fazer de todo e qualquer objeto uma obra de arte ao inseri-lo num museu. Ora, o espaço do museu, por seu turno, não é real, mas um espaço artificial, criado por uma arte determinada, a arquitetura. O mundo em que os escritos teóricos têm lugar é igualmente um mundo artificial, criado pela narrativa histórica. E da posição ocupada nesse mundo artificial dependem o significado, a relevância e a eficácia das posições teóricas isoladas. Ao construir diversamente o espaço da história e situar diversamente as posições isoladas nesse espaço, altera-se também o significado dessas posições.
Mesmo quando ergue a pretensão de descrever e interpretar a realidade, a teoria permanece literatura, situada num espaço artificial, literário. Ora, se as posições teóricas se situam desse modo no espaço literário, a figura do teórico permanece exterior ao texto. Dá-se assim, no espaço da literatura, a tão comentada morte do autor. E de fato: quem é o autor? De onde retira força e autoridade para escrever? Será uma encarnação de Deus, que quer transmitir novas percepções à humanidade? Estará de acordo com que os leitores sejam manipulados de má-fé? Será uma máquina de escrita que não sabe ela própria o que escreve? Ou será apenas uma pessoa -ou seja, um simples vigarista? A própria literatura não fornece respostas claras a essas perguntas -para tanto é necessária a auto-reflexão do autor no filme.
O filme transforma o espaço literário num parque temático metafísico, habitado por vários discursos e seus autores. Nas paisagens desse parque temático é possível encontrar os mais diversos avatares do autor: monstro, vampiro, extraterrestres benévolos ou malevolentes, deuses, demônios, máquinas e simples pessoas, mas que em regra logo deixam de ser autores para, com seus amados, levar uma vida humana normal. Todos esses diversos avatares, porém, realizam o mesmo trabalho da modernidade -o trabalho escravo da simulação e manipulação.
Vez por outra ensaiam os senhores consumidores um levante contra esse domínio escravo e desencadeiam uma luta contra os deuses. Mas os deuses são imortais. E assim os autores do levante são logo remetidos a seu próprio lugar no mesmo parque temático. Apesar de todas as tentativas nesse sentido, não se consegue exterminar ou ao menos desconstruir o autor -ou seja, reduzi-lo a uma figura do texto. O espaço metafísico não se deixa esvaziar definitivamente. Quem morre na vida continua a viver no filme.

Boris Groys é crítico de arte, professor de filosofia na Universidade de Karlsruhe (Alemanha) e reitor da Academia de Belas-Artes de Viena (Áustria). É autor, entre outros, de "The Total Art of Stalinism" (Princeton University Press). O texto acima foi publicado originalmente na revista alemã "Lettre".

Tradução de José Marcos Macedo.


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