São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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+ Debate

A nova porta do inferno

A divisão racial dos brasileiros só ocorrerá se prevalecerem as condutas antidemocráticas; não nos foi ensinado, pelas gerações passadas, a deixarmo-nos encantar por marcadores raciais

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Confesso que, ao aceitar participar da coletânea "Divisões Perigosas - Políticas Raciais no Brasil Contemporâneo" [ed. Civilização Brasileira], organizada por Peter Fry, Yvonne Maggie, Marcos Chor Maio, Simone Monteiro e Ricardo Ventura Santos, encrenquei com o título.
Considerava-o demasiado óbvio, sobretudo porque aqueles que colaboraram com o livro são notórios defensores da idéia de que, no Brasil, a racialização de políticas públicas certamente nos tornará reféns do ódio racial.
Mas vejo que nos encontramos em estado tal que convém mesmo insistir no óbvio.As reações à simples confirmação de que a coletânea estava impressa desvelaram um aspecto inerente à temerária empreitada: o etos antidemocrático.

"Neo-racistas"
Uns nos qualificaram de "neo-racistas", chegando a chamar de "escravos" a dois autores, que, militantes negros, se recusam a embarcar na insensata nau das cotas raciais.
Difícil encontrar melhor exemplo de racismo -nenhum professor universitário "branco" foi chamado de escravo, o que, convenhamos, é uma grande ofensa.
Outros, no entanto, se despiram de qualquer pudor e civilidade e simplesmente conclamaram os companheiros a acabar com a festa daquelas almas brancas racistas, no dia do lançamento do livro.
A divisão racial dos brasileiros só virá a acontecer se prevalecerem as condutas antidemocráticas. A boa ignorância nos leva a dizer qualquer coisa quando o assunto é enquadramento racial. Não nos foi ensinado, pelas gerações passadas, a reparar e deixarmo-nos encantar por marcadores raciais.

Custo e benefício
Ao contrário, fomos incentivados a desprezá-los como coisas tolas. Tão tolas que, em tempos de racialização, se é pedido a um jovem que se diga assim ou assado, ele vai fazer um cálculo de custo e benefício em que não entram considerações éticas.
E ainda assim o êxito não estará garantido, conforme se encarregou de ensinar um acontecimento simultâneo à polêmica sobre o livro. De fato, as divisões a que se refere o título podem apartar irmãos -literalmente.
O cenário foi, mais uma vez, a Universidade de Brasília, onde a adoção do regime de cotas raciais prescinde da autodeclaração dos candidatos.
Ali, um júri clandestino (a UnB se recusa a dar os nomes de seus integrantes) decide com base em fotografias quem é negro e quem não é.
Pois bem. Decididos a fazer o vestibular pelo sistema de cotas raciais da UnB, os gêmeos univitelinos Alan e Alex, filhos de pai negro e de mãe branca, viram-se diante da inusitada circunstância de ter a um (Alex) negada a inscrição que ao outro (Alan) foi imediatamente deferida. Alan talvez se torne universitário. Mas Alex certamente virou branco honorário.
A Universidade de Brasília poderia se poupar desse ridículo. Poderia poupar os garotos e suas famílias desse constrangimento. Poderia poupar a todos desse teatro de mau gosto.
Vai ver é carma de Brasília atrair trapalhadas e trapalhões de todo o país.
Enfim, o título do livro é obviamente pertinente. Buscar dividir o país em raças é uma coisa muito perigosa. É ilusório imaginar que isso seja conjunturalmente necessário e que a vida dos brasileiros de todas as cores não vá piorar.
Vai sim.
No mínimo porque será mais uma porta do inferno a se abrir, pois a racialização não pode viabilizar-se sem mais intolerância e mais desinteligência do que atualmente viceja.
Mas, se for inevitável que essa caixa de Pandora se abra e que todos os males se espalhem, que ao menos o mito se cumpra integralmente, poupando-nos do mal que acaba com a esperança.

PontodeFuga
O colunista Jorge Coli está em férias


MANOLO FLORENTINO leciona história na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.


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