São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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+ Sociedade

Cabeça boa em corpo sarado

Concurso miss Universo antecipou idéia de diversidade e trouxe para a cultura pop a divisa filosófica do "mens sana in corpore sano"

TEIXEIRA COELHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Neste lado, a cultura pop: o concurso de miss Universo. Do outro, a arte grega clássica da Vênus de Milo, da Vitória de Samotrácia, do Partenon -a arte erudita.
Dois mundos distantes, parece. Um, o popular. O outro, feito dessa palavra vazia usada quase sempre em vão: a elite.
À primeira vista, do lado popular, o mundo pré-moderno da miss Universo com seus valores objetivos existentes fora e antes de nós, que só nos cabe reconhecer (não propor) e que se transformam em padrões de beleza, do belo.
Do lado erudito, e já nas suas derivações, o mundo moderno e pós-moderno da arte de onde a idéia do belo objetivo foi banida, uma vez que nada existe fora e antes de nós, uma vez que a subjetividade é só o que existe e que tudo é interpretação.
A realidade, sendo mais ou menos essa, não é bem essa.
Martha Rocha, por exemplo. Perdeu o título [em 1954] porque tinha duas polegadas sobrando nos quadris.
A Vênus de Milo também o teria perdido, com duas polegadas a mais. A altura da Vênus de Milo, para ser a Vênus de Milo, deveria ser um múltiplo correto da altura de sua cabeça, assim como seu tronco, pernas e coxas deveriam ser outros tantos múltiplos do mesmo módulo. Harmonia.
Uma polegada a mais e tudo se perde -duas, nem pensar.
Em outras palavras, a idéia de medida, de padrão objetivo a ser reconhecido universalmente, esteve na idéia da arte por longo tempo antes de aterrissar na miss Universo.
Curiosamente, os que contestam a própria idéia do concurso, ao dizer que os critérios de beleza são locais (culturais) e não podem ser comparados (dizem, sem nem sempre saber, que não há o belo, só o gosto), são os mesmos que não conseguem aceitar, em outros domínios, que tudo é interpretação e que a primeira realidade é a subjetividade, socialmente expressa na forma da inter-subjetividade.

O baixo e o elevado
Digamos que o popular, o pop, ficou com as idéias da beleza objetiva enquanto a arte, depois da modernidade, declarou fora de moda os valores objetivos, padronizados (que podem ser comparados) e em seu lugar instalou a vontade individual, gerando critérios que não conversam entre si (não são comparáveis).
Supostamente, a arte moderna e, mais, toda a contemporânea se fizeram em cima disso.
Mas é assim mesmo na arte? Não, dizem os leilões de arte. O Picasso de mais valor até agora foi "Menino com Cachimbo" (de US$ 104 milhões, R$ 200 milhões), um quadro evidentemente mais bonito -não é?- do que "Nu Amarelo", dele mesmo, que só vale US$ 13,6 milhões.
E o Adèle Bloch-Bauer, de Klimt, US$ 135 milhões, não é na verdade mais bonito que "Menino com Cachimbo"? Quer dizer, não há uma idéia de medida, logo de comparação e objetividade, também no mundo da arte? E há duas semanas, quando um Rothko saiu por US$ 72,8 milhões, Basquiat, obviamente menos belo, pegou só US$ 14,6 milhões.
Miss Universo não está muito longe. Por trás da irracionalidade dos preços, há nos leilões uma lógica muito clara.
Alguém dirá que leilão de arte não é arte, apenas cultura da arte. Verdade. O problema é que, quando se fizer o rescaldo do século 20 -o "século da subjetividade", da "ausência de critério"-, se verá que notável foi o espírito de sobrevivência do belo e sua persistência mesmo na arte -de que dão exemplos muito abstracionismo, concretismo e tanta outra coisa.

Premonitório
A idéia do belo mudou -mas o belo persistiu, em sua estrutura, a dar razão ao poeta Vinicius de Moraes: me desculpe o feio, mas o belo é fundamental. Isso significa que a miss Universo não é excrescência cultural.
Menos ainda agora, quando o feminismo radical amainou, e a idéia de feminilidade voltou ao circuito, se algum dia o abandonou. E, em seus limites, a miss Universo até se antecipou em alguns pontos, como a diversidade cultural. Antes de ser esse conceito moeda corrente, em 1959 (é verdade que em 1952 Lévi-Strauss escreveu "Raça e História" a pedido da Unesco) já houve uma vencedora japonesa.
Em 65, uma da Tailândia, depois uma negra em 77 (outras três em 95, 98 e 99), uma indiana em 2000. Predominam as brancas, é fato. Mas a vida do concurso é dura: se a decisão política ou politicamente correta interfere, critica-se; se não interfere, idem.
Desta vez, ganhou uma japonesa -que aliás poderia ser uma japonesa do Brasil (o brasileiro e a brasileira podem ter qualquer cara, se sabe).
Os obcecados pela teoria conspiratória dirão que neste ano o Japão precisava ganhar por alguma razão política, talvez para advertir a China que está pondo demais as mangas de fora. Com esses não há o que discutir.
Enquanto isso, miss Universo continua perseguindo, como Mona Lisa, o ideal grego (e judaico e cristão) da "kalokagatia", "mens sana in corpore sano": a cabeça boa no corpo sarado.
Na filosofia é respeitável, na cultura pop não? Há alguma hipocrisia e moralismo nisso...

TEIXEIRA COELHO é professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP e curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo.


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