São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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+ BRASIL COLÔNIA

A arte de furtar

Falar em corrupção no Antigo Regime é anacrônico, pois relação promíscua entre público e privado estava prevista no sistema

RONALDO VAINFAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Escrevendo nos anos 1920 o seu "Retrato do Brasil", Paulo Prado viu na cobiça um dos maiores pecados de nossa formação histórica.
Obsessão diabólica pela riqueza fácil, o açúcar, tabaco, ouro e os diamantes. Cerca de dez anos depois, Sérgio Buarque de Holanda diria quase o mesmo, em seu "Raízes do Brasil", sublinhando o caráter predatório da colonização portuguesa.
Caio Prado Jr. endossaria esse juízo em "Formação do Brasil Contemporâneo", de 1942, frisando o sentido expoliativo do sistema colonial. Cobiça, dilapidação, exploração, tudo temperado pela corrupção sistêmica.
Mas o fato é que a corrupção, em nossos três primeiros séculos, não chegava a ser uma irregularidade. Pelo contrário, era institucionalizada e derivava do que Raimundo Faoro chamou de Estado patrimonial, no qual o público e o privado se imbricavam completamente.
Exemplo clássico dessa confusão se percebe logo no regime de capitanias hereditárias, implantado por d. João 3ø para colonizar o Brasil. Nele os donatários eram, ao mesmo tempo, representantes do rei e de seus interesses particulares.
Como funcionários do Estado, possuíam atribuições militares, governativas, judiciárias e fiscais, sendo remunerados com o direito a terras, parte dos impostos e outros benefícios transmissíveis por herança.
O rei compartilhava, portanto, a riqueza de seu erário com os beneficiários de cargos governativos, sendo difícil distinguir, na lógica do sistema, o público do privado. A implantação do governo-geral, em 1548, procurou delimitar um pouco mais as duas esferas sem, contudo, alterar a lógica patrimonialista do sistema.
Dizer, portanto, que as autoridades coloniais eram corruptas não deixa de ser um anacronismo, pois o sistema admitia perfeitamente que os governantes se apropriassem do "bem comum" ou da riqueza do rei, desde que a "parte do leão" ficasse com o rei.
Mas, a bem da verdade, essa não foi uma marca exclusiva de Portugal e de suas colônias, senão um traço do Antigo Regime.
Na França de Luiz 14, o próprio rei certa vez perguntou a um de seus governadores se tinha se aproveitado bem de seu cargo, ouvindo do mesmo que, sim, aproveitara muito, cuidando, porém, de resguardar os interesses superiores de Sua Majestade.
Na Espanha do século 17, por exemplo, chegou-se a instituir um imposto sobre mercadorias não declaradas no porto de Sevilha, vindas da América. Um imposto perfeitamente legal sobre o contrabando! No mundo barroco isso era possível.

Tremenda confusão
Mas, voltando ao caso luso-brasileiro, era comum a coroa arrendar o direito de cobrar impostos a particulares, assim como o direito de explorar produtos monopolizados pelo Estado, numa tremenda confusão entre as esferas pública e privada.
O resultado foi a tessitura de uma complexa teia, em que comerciantes, burocratas, traficantes e senhores escravistas compartilhavam privilégios e alcançavam posições graças a contatos pessoais e familiares.
Freqüentemente, estavam unidos por laços parentais, como nos mostrou Stuart Schwartz no seu estudo sobre o Tribunal da Relação da Bahia.
Os juízes da Relação estavam quase todos unidos aos senhores locais por laços familiares.
A imbricação do bem comum com o interesse particular era inerente ao sistema e uma de suas principais engrenagens.
Mas isso não significa que não houvesse, desde o começo, a corrupção miúda, a propina ocasional para adiantar um processo na Justiça ou livrar-se dele.
Nos documentos coloniais encontramos, entre milhares de exemplos, um senhor de escravos baiano que pagou a um oficial de justiça para destruir certo processo que contra ele havia. Estava acusado de obrigar seus escravos a atos de sodomia.
Não por acaso, apareceu no século 17 um livro intitulado "A Arte de Furtar", que alguns atribuem ao padre Antônio Vieira.
Crítico e irônico, o autor abre o livro dizendo que a arte de furtar era mesmo nobre, após o que passa a tipificar, bem ao estilo barroco, dezenas de fórmulas dessa arte.
Dos que furtam com unhas reais, agudas, sábias, militares, tímidas, disfarçadas, postiças, maliciosas, amorosas, descuidadas. Dos que furtam com mão de gato. Dos que furtam com unhas de fome. Isso sem falar em certos princípios básicos dessa ciência do furto.
Exemplos: como, tomando pouco, se rouba mais; como se furta a título de benefício; dos que são ladrões, sem deixar que outros o sejam; como os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões; como se podem furtar a El Rei 20 mil cruzados e demandá-lo por outros tantos; como pode o próprio rei ter unhas para furtar.
Entre reis ladrões e governantes venais, assim se construiu o Antigo Regime.
Tudo favorecido, na teoria, pela concentração de poderes na mão do soberano, e seu loteamento, na prática, por uma rede de apaniguados bem-nascidos ou que assim se tornaram, comprando, é claro, cargos ou títulos.
Os ilustrados do século 18 puseram em xeque esse estado de coisas, em nome da razão, retomando críticas mais ou menos isoladas do século anterior. Montesquieu, por exemplo, advogou a separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, desafiando o absolutismo monárquico, preocupado em como preservar os governos da corrupção.
A Revolução Francesa derrubou o rei e o decapitou.
O liberalismo ganhou o mundo ocidental, o patrimonialismo foi tolhido, a separação entre o público e o privado se tornou um valor fundamental das sociedades burguesas.
Em Portugal, porém, tudo foi mais lento. Basta ver a batalha com que se deparou o marquês de Pombal, no século 18, para fazer suas reformas modernizantes, enfrentando os privilégios dos "grandes". E, no Brasil, o último país das Américas a abolir a escravidão, tudo foi lentíssimo.
A separação entre o público e o privado é ainda hoje tão acanhada que se pode dizer que "A Arte de Furtar" é livro de extraordinária atualidade.
Corrupção, venalidade, cobiça, eis algumas das raízes do Brasil. Daquelas troncudas.

RONALDO VAINFAS é professor titular de história na Universidade Federal Fluminense, autor de "Trópico dos Pecados" (editora Nova Fronteira).


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