São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007 |
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+ Cultura a Atenas SAgRADA
Para o sociólogo Sunil Khilnani, democracia na Índia desmente a ciência política ocidental, embora desigualdade e sistema de castas ainda sejam graves problemas
LENEIDE DUARTE-PLON COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
A maior democracia do mundo é o segundo país mais populoso do planeta, pertence ao clube atômico e é um dos quatro grandes países emergentes, juntamente com o Brasil, a Rússia e a China. FOLHA - Em "A Idéia de Índia", o sr. diz que "o futuro da teoria política ocidental se decidirá fora do Ocidente" e, nisso, "a experiência indiana terá um peso importante". Por quê? SUNIL KHILNANI - As idéias políticas centrais no Ocidente -a democracia, a nação e o nacionalismo, o crescimento econômico, o genocídio étnico, os direitos, a prevenção da proliferação nuclear- alimentaram no século 20 tanto a imaginação política quanto a ocupação do planeta. O futuro da democracia dependerá não de como os Estados da Ásia e da África podem imitar o modelo da antiga Atenas, nem mesmo os da América ou da Europa Ocidental contemporâneas. Dependerá de como podem adaptar essa idéia e fazê-la funcionar em sociedades heterogêneas, pobres, com desigualdades sociais importantes. Atualmente, a teoria política ocidental clássica nos ensina que a democracia só funciona em sociedades pequenas, prósperas e homogêneas. A experiência indiana é um desmentido cabal desse postulado da teoria política clássica, pois a Índia é grande, tem uma enorme diversidade e é muito pobre -e, mesmo assim, é uma democracia vibrante e efetiva. Por isso, acho que devemos atentar para essas outras experiências não-ocidentais, como a da Índia, para nos questionarmos e ampliarmos nossos pontos de vista sobre as precondições e possibilidades da política moderna. FOLHA - O sr. fala da justaposição de um luxo fabuloso e de uma miséria abjeta. Isso poderia ser dito do Brasil, um dos campeões em desigualdade social no mundo. Quais as semelhanças e diferenças principais entre os quatro países emergentes que os economistas reúnem na sigla Bric (Brasil, Rússia, Índia e China)? KHILNANI - Na Índia, há pelo menos três eixos de desigualdade: entre as regiões (as mais ricas têm uma renda per capita três vezes maior que as mais pobres), entre as classes sociais e entre homens e mulheres. Acho que esses três eixos são válidos para as economias emergentes. O que distingue o Brasil e a Índia da China e da Rússia é que os dois últimos não são países democráticos, são Estados essencialmente autoritários. A imprensa livre, na Índia e no Brasil, faz com que temas como injustiça social e destruição do ambiente (que afetam os quatro países) pelo menos se tornem parte do debate público, e grupos de ativistas na Índia e no Brasil podem pressionar o governo a agir, o que é muito mais difícil na Rússia e na China. FOLHA - A Índia é uma democracia isolada cercada de Estados não-democráticos, como Paquistão, China e Mianmar. A recusa iraniana a suspender o enriquecimento de urânio e as novas sanções decididas pela ONU inquietam a Índia? KHILNANI - A Índia é uma zona de democracia e estabilidade política numa zona turbulenta, tanto a oeste quanto a leste e ao norte. As ambições do Irã deixam a Índia numa posição difícil. Por um lado, ela tem historicamente relações estreitas com o Irã, há um respeito mútuo entre essas duas civilizações, e a Índia entende o desejo iraniano de maior autonomia internacional. Por outro lado, devido a razões pragmáticas, a Índia é francamente contra a proliferação das armas nucleares e gostaria de ver o Irã [que, como a Índia, é signatário do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares] observar seus compromissos internacionais e se conformar às condições da ONU. FOLHA - O capítulo "A democracia" tem uma epígrafe de B.R. Ambedkar [intelectual indiano, 1891-1956]: "Em política, admitimos que cada homem dispõe de um voto, e cada voto tem o mesmo valor. Na nossa vida econômica e social, por nossa estrutura econômica e social, continuamos a negar o princípio de que cada pessoa possui o mesmo valor. Por quanto tempo continuaremos a levar essa vida contraditória?". Como responde a essa questão? KHILNANI - Você toca no âmago do paradoxo da Índia contemporânea: liberdade política mesclada com desigualdade econômica e injustiça. Penso que os fundadores da Índia independente -Nehru e Ambedkar [que representaram as castas mais desfavorecidas do país]- desejavam que a liberdade política (o sufrágio universal e o desenvolvimento econômico) trouxessem a igualdade social e econômica. Eles também desenvolveram uma política de ação afirmativa ou discriminação positiva (na Índia se diz "reservas") para as classes desfavorecidas, e a Índia foi um dos primeiros países no mundo a introduzir essas políticas, antes do que os EUA. Elas produziram mudanças. Por exemplo, o maior Estado indiano, Uttar Pradesh [com mais de 160 milhões de habitantes] elegeu como líder uma mulher originária da classe mais desfavorecida [Mayawati, do partido vencedor do processo eleitoral deste ano], algo impensável 30 anos atrás. Mas muito disso permanece uma política simbólica, e a desigualdade social e econômica é um problema grave. FOLHA - O sistema de castas é compatível com a democracia? KHILNANI - A Índia passou por grandes mudanças no sistema de castas. No passado, ele foi definido pelos textos religiosos e por preconceitos sociais. Hoje, as políticas de governo de discriminação positiva tornaram a casta uma categoria política porque o Estado define e identifica que grupos se beneficiarão com as políticas de ação afirmativa. Assim, a casta é hoje uma identidade política, em vez de identidade social, uma forma de organizar grupos para disputar poder e recursos políticos. Nesse sentido, ela se adaptou às políticas democráticas. O ex-presidente Narayanan (1920-2005) é um exemplo de como as castas mais baixas passaram a fazer parte da vida pública indiana, já não sendo invisíveis como antes. Mas ainda há muito a fazer para melhorar essa situação. FOLHA - Como um país de 1,1 bilhão de habitantes, com várias línguas e várias religiões e culturas, construiu a maior nação democrática do mundo? KHILNANI - Esse feito formidável se deve às inovações políticas e intelectuais dos indianos no século 20, de Rabindranath Tagore [1861-1941] passando por Mahatma Gandhi até Jawaharlal Nehru. Cada um desses homens viu, de um ponto de vista próprio, que a Índia é, antes de tudo, uma idéia, um compromisso com valores universais de pluralismo, respeito às diferenças, crença na capacidade de argumentar e convencer e combate à injustiça e à opressão. Isso era o que eu tinha em mente quando escrevi "A Idéia de Índia", esse engajamento num projeto coletivo de criar a Índia, e não uma recuperação romântica e nostálgica da Índia do passado. A Índia, como diz o historiador Ram Guha, é uma "nação não-natural". Tagore, Gandhi e Nehru rejeitaram as definições européias convencionais do nacionalismo -que define uma nação em termos de uma única religião, língua, etnia ou mesmo território. Eles viam a diversidade como uma fonte de força, não de fraqueza. Isso fez com que a Índia permanecesse unida como um Estado-nação, apesar das pressões para dividi-la. Nehru é o grande responsável por isso, pois procurou traduzir essa idéia de Índia em um modelo institucional efetivo -baseado na democracia, no federalismo cultural, no secularismo, no desenvolvimento econômico e na independência política internacional. FOLHA - O sr. está escrevendo uma biografia de Nehru. Por que ele é fundamental para a Índia atual? KHILNANI - Mais de 40 anos depois de sua morte, Nehru continua sendo uma referência para todas as discussões sobre a política indiana, seu futuro econômico e seu papel no cenário internacional. Nehru foi combatido por nacionalistas hindus, por defensores do livre-mercado, por defensores do ambiente, por gandhistas e por esquerdistas, o que evidencia o alcance de sua influência permanente e de seu legado. Penso que todo indiano moderno tem que se reportar a Gandhi e Nehru e a seus legados. Minha biografia de Nehru é uma tentativa de reanalisá-lo para a nova geração e de mostrar por que ele é uma figura importante tanto para a Índia quanto para a história mundial. FOLHA - O sr. diz que o desafio da economia global é permanente. A Índia teve um crescimento formidável em 2006 (9%). O país pode desfrutar das vantagens da globalização, manter a estabilidade política e promover a justiça social? KHILNANI - Não se pode esquecer que o crescimento econômico gera tanto problemas quanto soluções. Se a Índia mantiver um nível de crescimento de 9% ao ano ou mais, deverá dispor de instrumentos políticos para lidar com os efeitos sociais desse crescimento. Um problema imediato é que, apesar de elevado, esse crescimento não produz empregos suficientes. O crescimento se dá no setor de serviços (tecnologia da informação etc.) com grande produtividade e lucro, mas pouca geração de emprego. E, ao mesmo tempo, a população da Índia tem um perfil demográfico jovem, o que é uma receita de problemas potenciais. O governo indiano precisa inventar políticas que aumentem a oferta de emprego no contexto do crescimento das medidas de redistribuição de renda. Texto Anterior: Lançamentos Próximo Texto: Beijo em atriz indiana rendeu processo a Gere Índice |
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