São Paulo, domingo, 03 de junho de 2007

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a Atenas SAgRADA

Para o sociólogo Sunil Khilnani, democracia na Índia desmente a ciência política ocidental, embora desigualdade e sistema de castas ainda sejam graves problemas

Jitendra Prakash - 3.jun.2006/ Reuters
Um sadhu ("homem sagrado") hindu, com pintura tradicional, reza em Allahabad, Índia


LENEIDE DUARTE-PLON
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS

A maior democracia do mundo é o segundo país mais populoso do planeta, pertence ao clube atômico e é um dos quatro grandes países emergentes, juntamente com o Brasil, a Rússia e a China.
A Índia -cujo PIB cresceu 9% no ano passado- é objeto do brilhante ensaio "The Idea of India" [A Idéia de Índia, Penguin, 304 págs., US$ 15, R$ 30], de Sunil Khilnani, 45, cientista político formado na Universidade de Cambridge (Reino Unido) e hoje diretor do departamento de estudos da Ásia Meridional da Universidade Johns Hopkins (EUA).
"A Índia é, antes de tudo, uma idéia, um compromisso com valores universais de pluralismo, respeito às diferenças, crença na capacidade de argumentar e convencer e combate à injustiça e à opressão", diz Khilnani.
Divide seu tempo entre Washington e Berlim, onde leciona no Wissenschaftskolleg. Atualmente, prepara uma biografia de Jawaharlal Nehru (1889-1964), um dos pais da democracia indiana, fundada em 1947.
Em Paris, como convidado do Salão do Livro, que homenageou a Índia, Khilnani deu esta entrevista à Folha.

 

FOLHA - Em "A Idéia de Índia", o sr. diz que "o futuro da teoria política ocidental se decidirá fora do Ocidente" e, nisso, "a experiência indiana terá um peso importante". Por quê?
SUNIL KHILNANI -
As idéias políticas centrais no Ocidente -a democracia, a nação e o nacionalismo, o crescimento econômico, o genocídio étnico, os direitos, a prevenção da proliferação nuclear- alimentaram no século 20 tanto a imaginação política quanto a ocupação do planeta.
O futuro da democracia dependerá não de como os Estados da Ásia e da África podem imitar o modelo da antiga Atenas, nem mesmo os da América ou da Europa Ocidental contemporâneas.
Dependerá de como podem adaptar essa idéia e fazê-la funcionar em sociedades heterogêneas, pobres, com desigualdades sociais importantes.
Atualmente, a teoria política ocidental clássica nos ensina que a democracia só funciona em sociedades pequenas, prósperas e homogêneas.
A experiência indiana é um desmentido cabal desse postulado da teoria política clássica, pois a Índia é grande, tem uma enorme diversidade e é muito pobre -e, mesmo assim, é uma democracia vibrante e efetiva.
Por isso, acho que devemos atentar para essas outras experiências não-ocidentais, como a da Índia, para nos questionarmos e ampliarmos nossos pontos de vista sobre as precondições e possibilidades da política moderna.

FOLHA - O sr. fala da justaposição de um luxo fabuloso e de uma miséria abjeta. Isso poderia ser dito do Brasil, um dos campeões em desigualdade social no mundo. Quais as semelhanças e diferenças principais entre os quatro países emergentes que os economistas reúnem na sigla Bric (Brasil, Rússia, Índia e China)?
KHILNANI -
Na Índia, há pelo menos três eixos de desigualdade: entre as regiões (as mais ricas têm uma renda per capita três vezes maior que as mais pobres), entre as classes sociais e entre homens e mulheres.
Acho que esses três eixos são válidos para as economias emergentes.
O que distingue o Brasil e a Índia da China e da Rússia é que os dois últimos não são países democráticos, são Estados essencialmente autoritários.
A imprensa livre, na Índia e no Brasil, faz com que temas como injustiça social e destruição do ambiente (que afetam os quatro países) pelo menos se tornem parte do debate público, e grupos de ativistas na Índia e no Brasil podem pressionar o governo a agir, o que é muito mais difícil na Rússia e na China.

FOLHA - A Índia é uma democracia isolada cercada de Estados não-democráticos, como Paquistão, China e Mianmar. A recusa iraniana a suspender o enriquecimento de urânio e as novas sanções decididas pela ONU inquietam a Índia?
KHILNANI -
A Índia é uma zona de democracia e estabilidade política numa zona turbulenta, tanto a oeste quanto a leste e ao norte.
As ambições do Irã deixam a Índia numa posição difícil. Por um lado, ela tem historicamente relações estreitas com o Irã, há um respeito mútuo entre essas duas civilizações, e a Índia entende o desejo iraniano de maior autonomia internacional.
Por outro lado, devido a razões pragmáticas, a Índia é francamente contra a proliferação das armas nucleares e gostaria de ver o Irã [que, como a Índia, é signatário do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares] observar seus compromissos internacionais e se conformar às condições da ONU.

FOLHA - O capítulo "A democracia" tem uma epígrafe de B.R. Ambedkar [intelectual indiano, 1891-1956]: "Em política, admitimos que cada homem dispõe de um voto, e cada voto tem o mesmo valor. Na nossa vida econômica e social, por nossa estrutura econômica e social, continuamos a negar o princípio de que cada pessoa possui o mesmo valor. Por quanto tempo continuaremos a levar essa vida contraditória?". Como responde a essa questão?
KHILNANI -
Você toca no âmago do paradoxo da Índia contemporânea: liberdade política mesclada com desigualdade econômica e injustiça.
Penso que os fundadores da Índia independente -Nehru e Ambedkar [que representaram as castas mais desfavorecidas do país]- desejavam que a liberdade política (o sufrágio universal e o desenvolvimento econômico) trouxessem a igualdade social e econômica.
Eles também desenvolveram uma política de ação afirmativa ou discriminação positiva (na Índia se diz "reservas") para as classes desfavorecidas, e a Índia foi um dos primeiros países no mundo a introduzir essas políticas, antes do que os EUA. Elas produziram mudanças.
Por exemplo, o maior Estado indiano, Uttar Pradesh [com mais de 160 milhões de habitantes] elegeu como líder uma mulher originária da classe mais desfavorecida [Mayawati, do partido vencedor do processo eleitoral deste ano], algo impensável 30 anos atrás.
Mas muito disso permanece uma política simbólica, e a desigualdade social e econômica é um problema grave.

FOLHA - O sistema de castas é compatível com a democracia?
KHILNANI -
A Índia passou por grandes mudanças no sistema de castas. No passado, ele foi definido pelos textos religiosos e por preconceitos sociais.
Hoje, as políticas de governo de discriminação positiva tornaram a casta uma categoria política porque o Estado define e identifica que grupos se beneficiarão com as políticas de ação afirmativa.
Assim, a casta é hoje uma identidade política, em vez de identidade social, uma forma de organizar grupos para disputar poder e recursos políticos.
Nesse sentido, ela se adaptou às políticas democráticas. O ex-presidente Narayanan (1920-2005) é um exemplo de como as castas mais baixas passaram a fazer parte da vida pública indiana, já não sendo invisíveis como antes. Mas ainda há muito a fazer para melhorar essa situação.

FOLHA - Como um país de 1,1 bilhão de habitantes, com várias línguas e várias religiões e culturas, construiu a maior nação democrática do mundo?
KHILNANI -
Esse feito formidável se deve às inovações políticas e intelectuais dos indianos no século 20, de Rabindranath Tagore [1861-1941] passando por Mahatma Gandhi até Jawaharlal Nehru.
Cada um desses homens viu, de um ponto de vista próprio, que a Índia é, antes de tudo, uma idéia, um compromisso com valores universais de pluralismo, respeito às diferenças, crença na capacidade de argumentar e convencer e combate à injustiça e à opressão.
Isso era o que eu tinha em mente quando escrevi "A Idéia de Índia", esse engajamento num projeto coletivo de criar a Índia, e não uma recuperação romântica e nostálgica da Índia do passado.
A Índia, como diz o historiador Ram Guha, é uma "nação não-natural".
Tagore, Gandhi e Nehru rejeitaram as definições européias convencionais do nacionalismo -que define uma nação em termos de uma única religião, língua, etnia ou mesmo território.
Eles viam a diversidade como uma fonte de força, não de fraqueza. Isso fez com que a Índia permanecesse unida como um Estado-nação, apesar das pressões para dividi-la.
Nehru é o grande responsável por isso, pois procurou traduzir essa idéia de Índia em um modelo institucional efetivo -baseado na democracia, no federalismo cultural, no secularismo, no desenvolvimento econômico e na independência política internacional.

FOLHA - O sr. está escrevendo uma biografia de Nehru. Por que ele é fundamental para a Índia atual?
KHILNANI -
Mais de 40 anos depois de sua morte, Nehru continua sendo uma referência para todas as discussões sobre a política indiana, seu futuro econômico e seu papel no cenário internacional.
Nehru foi combatido por nacionalistas hindus, por defensores do livre-mercado, por defensores do ambiente, por gandhistas e por esquerdistas, o que evidencia o alcance de sua influência permanente e de seu legado.
Penso que todo indiano moderno tem que se reportar a Gandhi e Nehru e a seus legados.
Minha biografia de Nehru é uma tentativa de reanalisá-lo para a nova geração e de mostrar por que ele é uma figura importante tanto para a Índia quanto para a história mundial.

FOLHA - O sr. diz que o desafio da economia global é permanente. A Índia teve um crescimento formidável em 2006 (9%). O país pode desfrutar das vantagens da globalização, manter a estabilidade política e promover a justiça social?
KHILNANI -
Não se pode esquecer que o crescimento econômico gera tanto problemas quanto soluções. Se a Índia mantiver um nível de crescimento de 9% ao ano ou mais, deverá dispor de instrumentos políticos para lidar com os efeitos sociais desse crescimento.
Um problema imediato é que, apesar de elevado, esse crescimento não produz empregos suficientes.
O crescimento se dá no setor de serviços (tecnologia da informação etc.) com grande produtividade e lucro, mas pouca geração de emprego. E, ao mesmo tempo, a população da Índia tem um perfil demográfico jovem, o que é uma receita de problemas potenciais.
O governo indiano precisa inventar políticas que aumentem a oferta de emprego no contexto do crescimento das medidas de redistribuição de renda.


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