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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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+ cinema

Tudo ao mesmo tempo agora


O diretor fala de "As Malas de Tulse Luper", sua trilogia que narra as aventuras de um escritor pelas prisões do mundo e que pretende reinventar a sétima arte


Lluís Amiguet
do "La Vanguardia"

O que eu tentei fazer em "The Tulse Luper Suitcases" [As Malas de Tulse Luper] foi cubismo no cinema. Mostrar o ser humano de todos os ângulos ao mesmo tempo." Essa é a explicação de Peter Greenaway para seu mais novo projeto, que conta a vida de um certo Tulse Luper (vivido pelo ator britânico J.J. Field), desde a infância no País de Gales até suas aventuras pelo mundo, por meio de três filmes de longa-metragem, uma série para TV, CD-ROMs -que permitem ao espectador bisbilhotar o conteúdo de cada uma das 92 malas de Luper-, DVDs e livros. O cineasta mais obsessivo da história em relação aos números ("Afogando em Números") e às coleções ("100 Objetos para Representar o Mundo") recheou as 92 malas com itens tais como 92 barras de ouro nazista, caçarolas, instrumentos musicais, 92 sapatos, um mapa do Paraíso, 92 folhas de papel de parede manchadas de sangue, 55 ferraduras, cardápios de restaurante chinês, uma publicação intitulada "Some Birds of the Northern Hemisphere", um cadáver etc. O primeiro filme da saga, "The Tulse Luper Suitcases Part 1 - The Moab Story", foi apresentado no 56º Festival de Cannes deste ano. A trilogia cobre 60 anos do século 20, da descoberta do urânio em 1928 no Colorado ao colapso do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria em 1989. Tulse Luper é um escritor e "prisioneiro profissional": ele é encarcerado 16 vezes ao longo da história que, depois do País de Gales, passa para o deserto de Moab, em Utah (EUA), entre os mórmons e depois segue para a Antuérpia, onde Luper é capturado por fascistas belgas.

Vou ser muito sincero: custei muito a entender seu filme.
O cinema é péssimo contando histórias. Se o senhor queria uma boa história, o senhor deveria ter lido um bom romance.

Então, o que foi que eu vi?
Uma coisa viva. "Casablanca" [1942, de Michael Curtiz] está morto e enterrado. O senhor viu uma obra que está viva e se renovando, da qual farei várias versões: quatro, cinco, seis... Veremos.

Não sei se isso é muito comercial...
E daí? O que é comercial? Hollywood está morto. É um dinossauro terminal cujo cérebro morreu faz tempo, mas cujo rabo continua a se mexer. Ainda lhe resta uma década de espasmos agônicos e depois desaparecerá.

O senhor não é o primeiro a fazer essa profecia.
Hollywood morreu em 31/9/1983. É o dia em que o controle remoto foi usado pela primeira vez. A partir daí, ninguém se conformou em engolir um filme inteiro de forma passiva. O que eu fiz foi simplesmente aceitar a realidade e atualizar a linguagem do cinema usando aquilo que a tecnologia já oferece.

Por exemplo?
Temos que superar certas tiranias. Por que confinar os filmes num retângulo? Por que uma única ação, quando podemos ver sete... até cem telas ao mesmo tempo? Por que limitar o som do cinema, quando na realidade ele é caótico?

Para entender alguma coisa, imagino.
Chega de estrelas! Não faz sentido que um filme seja o brinquedinho para a Sharon Stone da vez se exibir. Meu filme conta com a participação de atores e não-atores, todo tipo de gente interessante. Já o câmera acabou. As câmeras são inteligentes e vão fazer tudo sozinhas.

E quem permanece vivo?
O montador decide tudo. A montagem é a essência do cinema. Olhe, eu queria ser pintor: a pintura tem 5.000 anos de história, o cinema, apenas um século, e isso salta aos olhos.

Além disso, a pintura custa menos.
O fato é que assisti a "O Sétimo Selo", de Bergman, e comecei a escrever para o cinema e logo quis pôr a mão na massa; rodei documentários para a BBC e também montei muitíssimos, durante dez anos. Na verdade, o que eu fazia era propaganda britânica em plena queda do império. Queriam criar uma indústria audiovisual em suas ex-colônias.

O que o senhor aprendeu?
Que o documentário diz uma grande mentira pretendendo ser verdade, enquanto a ficção pretende ser mentira e acaba dizendo grandes verdades.

Não sei se o público está preparado para o seu desafio...
Cage dizia que, se sua obra tem 20% de inovação, você perde 80% do seu público. Eu estou disposto a ficar com esses 20% mais inteligentes.

Os outros são imbecis?
O bom cinema tem que ser como a boa música ou a boa literatura: exigente com o leitor. Mozart é maravilhoso, mas tem de haver um Stockhausen que exija mais e dê mais a quem é capaz de mais esforço. Por que usar uma tela quando posso usar cem telas ao mesmo tempo?

Talvez porque muitas ao mesmo tempo estonteiem.
Picasso também foi acusado de estontear e de coisas piores quando experimentava com o cubismo. E o que eu tentei fazer em "As Malas de Tulse Luper" foi cubismo no cinema. Mostrar o ser humano de todos os ângulos ao mesmo tempo. Se você pode ver a ação de todos os ângulos ao mesmo tempo, por que continuar se conformando com apenas um?

Por humildade, simplicidade?
Esta é minha "opera magna". Quero pôr nela tudo o que sou no cinema, e acredito que haja um público que gosta da experimentação e da busca de novas linguagens, ainda que isso exija mais esforço e atenção. Gente que não se conforma em ligar a TV, ver o que está passando e esquecer tudo quando se levanta do sofá.

O senhor admira algum artista?
Admiro o barroco como gigantesco esforço de propaganda do catolicismo assediado por Lutero, uma propaganda muito mais sofisticada e esteticamente avançada do que a triste mixórdia de publicidade pró-imperialista de Hollywood.

Qual a diferença entre os dois?
Em essência, os dois são mentira. O barroco promete o céu e ameaça com o inferno em troca da obediência, enquanto Hollywood promete felicidade idiotizante se você ficar rico e dócil ou pelo menos conseguir pagar as suas contas.

Pelo jeito, o senhor não é muito devoto...
Sou ateu, como quase qualquer pessoa inteligente na Europa depois de 2.000 anos de cristianismo. Reconheço e respeito a capacidade coesiva da religião, mas sou incapaz de acreditar nas suas histórias. Por isso me interessa como mentira exemplar a religião mórmon: moderna e sob medida para os EUA.

Todas as crenças merecem respeito?
Claro, desde que não arrastem os povos a matanças e ódios como muitas fazem até hoje.

Claro.
Já me jogaram merda de cachorro e coquetéis molotov por causa dos meus filmes, mas fico contente com isso pois quer dizer que minha obra fez alguém repensar coisas que dava como certas...


Com a "Redação".
Tradução de Sergio Molina.


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