São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2008

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Ponto de fuga

As quatro faces de Emma: Minnelli


Minnelli concebe seu filme com magnífica eloqüência; mestre dos musicais, põe o imaginário acima do real -assim o faz mesmo no drama sem canções de sua "Madame Bovary"

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Um minúsculo detalhe no romance "Madame Bovary" é bem curioso.
Trata-se de um acontecimento ocorrido durante uma festa aristocrática. Faz calor. Diz Flaubert: "O ar do baile estava pesado; as lâmpadas empalideciam. (...) Um criado subiu numa cadeira e quebrou o vidro de dois caixilhos".
Por que cargas d'água alguém quebraria caixilhos? As janelas não se abriam? Era um hábito fazer isso?
Diminuto, quase imperceptível, esse detalhe se refere a costumes de outros tempos. Metamorfoseia-se, no entanto, num apogeu de embriaguez dionisíaca dentro do filme "Madame Bovary", de Vincente Minnelli, rodado em 1949 (DVD nos EUA, pela Warner, com legendas em português).
O baile é uma vertigem; estimulado pelo texto que sugere atordoamento, Minnelli leva-o para mais longe. Os rodopios febris se aceleram girando numa valsa composta por Miklós Rózsa, chamada de "neurótica" pelo cineasta.
A efervescência culmina com os criados em libré que não sobem em cadeiras, mas as empunham, e com elas quebram espetacularmente as janelas. É uma explosão conclusiva, um orgasmo visual.
Minnelli concebe seu filme com magnífica eloqüência. "Os musicais de Minnelli celebravam o triunfo do imaginário sobre o real. Qualquer aspecto da realidade, por mais trivial que fosse, podia ser transformado e incorporado a um balé: o mundo era um palco e pertencia àqueles que sabiam cantar e dançar", escreveu Patrick Brion a seu respeito. Minnelli, mestre desse gênero, punha, de fato, o imaginário acima do real. Assim o fez mesmo no drama sem canções de sua "Madame Bovary".

Desígnios
É como se Minnelli tivesse lido Flaubert com os óculos de Stendhal. Os românticos personagens deste autor embriagavam-se com a manifestação exterior das próprias emoções, sem que isso significasse hipocrisia afetiva.
Em seus comportamentos existe uma distância entre o sentimento e sua representação. Ambos, sentimento e representação, são no entanto verdadeiros, ligados por uma espécie de intensidade teatral ("talvez um dia a senhora me veja como tema de algum melodrama", diz um de seus personagens, Julien Sorel).
Essa duplicação complexa, Minnelli a formulou numa frase: "Quando ela (Emma) se olha num espelho, é a realidade que se junta ao infinito nos sonhos mais inesperados".
No filme, tudo é artifício, os cenários de estúdio, a iluminação perfeitamente dosada. As roupas de Emma são deslumbrantes desde o início. A beleza de Jenniffer Jones, no papel principal, não parece pertencer a este mundo.
Minnelli toma, sem reticências, a defesa da subversão romântica. O choque entre o imaginário e o real se dá porque o imaginário denuncia o real como indigno, ao ponto de recusar-se a figurá-lo na obra.

Toga
Minnelli inventou um prólogo e um epílogo para "Madame Bovary". Neles é figurado o julgamento que Flaubert enfrentou, acusado de imoralismo por causa de seu livro. James Mason encarna o escritor. Sua notável peroração contra a censura é atual. Possuía porém um sentido mais direto naqueles tempos do Código Hayes, que regulamentou o moralismo mais hipócrita para as produções de Hollywood.

Fala
Minnelli não condena a heroína de seu filme. Ao contrário, justifica-a, com afeição. Declarou: "É um personagem extremamente complexo: vivia constantemente num mundo imaginário, queria que tudo fosse belo e, no entanto, à sua volta, era um lamaçal".


jorgecoli@uol.com.br


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