São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Ponto de fuga

A tessitura dos vilões


O cinema intervém diretamente no tempo, na consciência, na qualidade onírica da realidade; essa idéia, de Francis Ford Coppola, é muito verdadeira e serve também para a ópera


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

La Gioconda" no Theatro Municipal de São Paulo: tremendo melodrama inventado por Victor Hugo, remodelado por Arrigo Boito e posto em música por Amilcare Ponchielli. Ponchielli era amigo e vizinho de Carlos Gomes na cidadezinha de Lecco, perto de Milão: as propriedades dos dois compositores se separavam por um muro.
Viviam no ambiente intelectual exaltado pelo romantismo tardio dos "scapigliati", os descabelados, intelectuais embriagados pelos excessos patéticos dos sentimentos.
"La Gioconda" foi sempre uma obra popular; um trecho faz parte da memória coletiva: é a celebérrima "Dança das Horas", que Disney transformou num balé para hipopótamos, avestruzes e crocodilos.
A lógica do enredo é a dos pesadelos; a ópera submerge o ouvinte num sonho horripilante, urdido pelas mais generosas melodias. Elas favorecem as grandes vozes e são cruéis para com as medíocres; exigem beleza de timbre e grande alcance vocal de nada menos que seis cantores principais.
A montagem no Municipal foi pífia, sem imaginação nem poesia. A regência, "con rigore", "con troppo rigore", esvaziou todo lirismo, todo paroxismo que a partitura pedia. Mas os cantores foram excelentes.
É muito reconfortante assistir a uma obra tão exigente com um elenco quase totalmente brasileiro. Timbre de veludo, fraseando com requinte, Luiz-Ottavio Faria compôs um admirável Alvise Baldoero. As duas vozes femininas graves, Denise de Freitas e Regina Elena Mesquita, triunfaram em papéis que são prova de fogo.
Kaludi Kaludov cantou seu Enzo Grimaldo de modo muito poético. Eliane Coelho é uma imensa artista: sua Gioconda foi superlativa. Ela entregou-se ao personagem de corpo e alma; a ária "Suicídio!", com suas terríveis descidas dos agudos para graves abissais, arrebatou o público.
Barnaba, o gênio do mal, teve uma encarnação diabólica em Licio Bruno, soberbo barítono.

Cerração
O cinema intervém diretamente no tempo, na consciência, na qualidade onírica da realidade. Essa convicção foi formulada por Francis Ford Coppola. Ela é muito verdadeira. Serve também para a ópera, que propulsa o espectador para um supramundo em que afetos e conflitos adquirem a matéria sonora da música.
Serve ainda para o "Miami Vice" de Michael Mann, um diretor que, por assim dizer, trabalha em tapeçaria. Personagens, cenário, ação, emoções constituem o fio de um mesmo tecido, levemente descompassado em relação à realidade.
Eles se fundem entre si, contaminando-se com a mesma natureza cinematográfica que sustenta tudo.
Há muito de musical nessas imagens que parecem arrancar o espectador de sua poltrona para envolvê-lo num mundo de granulação espessa. Dessa forma, a atração mútua e progressiva que ocorre entre o casal protagonista parece infiltrar-se na luz que os envolve.
O vilão da história é um José Yero (interpretado por John Ortiz). Ele se parece em tudo com o Barnaba, da Gioconda: um subalterno que manipula os ciúmes do chefe para obter a mulher amada, mesmo contra os desejos dela.
O herói, Sonny (Colin Farrell) é uma espécie de Enzo Grimaldo angustiado. Apenas, no século 19, as vítimas eram vítimas, isto é, morriam, e os algozes ficavam vivos, nem que fosse para serem torturados pelo remorso. Nos nossos tempos conformistas, os vilões não sobrevivem.
Não importa: Michael Mann fez um filme que tem a profundidade das grandes músicas.

jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: Biblioteca básica: História da Alimentação no Brasil
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.