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Intelligentsia carunchada
Ao justificarem alguns pecadilhos políticos, intelectuais se afundam no cinismo mais descarado
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
O
caruncho que está
comendo as instituições brasileiras
não poderia poupar nossa intelligentsia, mas é surpreendente
como ela rapidamente se deixou afundar no cinismo mais
descarado.
O presidente-canditato declara que a política se faz com
os instrumentos disponíveis,
como se a esperança de um sistema político mais honesto não
fosse também um fato, uma
idéia reguladora existente. Os
áulicos de plantão, alguns esperando as migalhas que possam
cair do banquete oficial, não
têm pejo de declarar em público que os fins justificam os
meios sem que aqueles sejam
eles próprios revistos. Afirmam sem mais que uma obra a
ser pioneira na política social
desculpa alguns pecadilhos.
Que me entendam bem, é todo o sistema político que está
se corrompendo; mensaleiros e
sanguessugas se encontram em
todos os partidos.
Mas de uma responsabilidade o PT não pode se furtar: havia insistentemente transformado a ética em principal bandeira de luta, o mal, o absoluto
que, erradicado, levaria o Brasil
para o desenvolvimento e para
a democracia.
E, quando lembrei que transformar a ética no centro de um
programa político nada mais
era do que fazer política, quase
fui crucificado, muitas vezes
por aqueles que hoje aceitam
sem mais a imoralidade no trato da coisa pública.
Apenas procurei mostrar a
necessidade de distinguir entre
imoral e amoral, entre o julgamento ético de uma ação política e a suspensão do juízo enquanto novas instituições estão sendo criadas.
Na verdadeira política -mas
não na politicagem-, um líder
age às vezes amoralmente antes que suas ações sejam julgadas boas ou más. Quando César
desobedece ao Senado, a quem
jurara obediência, estava agindo imoralmente ou tentando
criar novos padrões de relacionamento político entre um império nascente e um Senado
que se reformava pela raiz?
A sangrenta política expansionista de Napoleão não teve o
apoio moral de Goethe e do jovem Beethoven? Por que isso
também não pode ocorrer no
Brasil, seja de que partido o
ator possa provir?
Lembro-me de quando Oswald de Andrade nos contava
como Luiz Carlos Prestes se recusara a aderir à Revolução de
30, mandando dizer a Getúlio
Vargas que tinha se convertido
ao comunismo; ele sempre se
perguntava indignado: "Por
que ele não mentiu?". Imaginem o que teria sido essa revolução e o percurso da esquerda
do Brasil se o Cavaleiro da Esperança tivesse mentido ou ao
menos se calado sobre suas
convicções.
É preciso ter todo o cuidado
para não pensar a política como se ela possuísse uma estrutura válida para qualquer época. Cabe desconfiar daqueles
que buscam na democracia ateniense os possíveis padrões de
uma democracia contemporânea. Simplesmente se esquecem de que a isonomia -todos
devendo ser igualmente tratados diante da lei- implicava
isegoria, isto é, o direito de
qualquer cidadão vir falar em
praça pública.
Democracia fora do lugar
Ainda se esquecem de que
não havia na Grécia uma sociedade integrada por uma economia nos moldes em que foi criada a partir do século 17 e denominada por Hegel e Marx de
"sociedade civil-burguesa".
Fora de sua casa, a vida de um
cidadão ateniense era pública
de um modo que nunca hoje
poderíamos suportar, era escarafunchada por todos, pois só
assim um seria igual a outro,
por conseguinte, sendo capaz
de vir a ocupar cargos meramente escolhidos por sorteio.
Se, de fato, em política ainda
usamos um vocabulário grego,
essa língua está morta para nós,
pois nem mesmo sabemos a
pronúncia de suas palavras.
Imaginem ainda Maquiavel
lamentando na Velha Ponte a
irrelevância da política, seu esquecimento ou ainda a indiferença que o cidadão comum teria demonstrado por ela.
Mas a nova política não estava fugindo da oposição entre
senhor e suserano, característica dos tempos feudais? "Mutatis mutandis", é o que acontece
hoje, quando as empresas
transnacionais somente garantem seus lucros se seguirem políticas a longo prazo, se souberem aplicar as ciências políticas
que se tornaram forças produtivas, se estiverem se associando ou combatendo Estados nacionais e assim por diante.
Em contrapartida, os sistemas políticos se tornam mais
efetivos no controle da vida cotidiana ou mais frágeis diante
do crime organizado mas também terrivelmente responsáveis pelos acertos e pelos erros
de suas políticas econômicas,
populacionais, educacionais
etc. Cada vez se torna mais importante a observação de Michel Foucault sobre as enormes
transformações por que passa
atualmente a idéia de soberania, que não pode mais ser pensada tendo como modelo o soberano monárquico.
A política contemporânea se
estrutura em novas formas. Ao
perder grandes horizontes
ideológicos, amplia a rede de
conhecimento disponível; os
grupos em luta não mais tendem a se polarizar, pulverizam-se em células que se juntam e se
separam em momentos de comoção pública.
Por esses e outros mais motivos, a política interna se tornou
jogo de esconde-esconde, enquanto aquela externa, uma rede de amigos e inimigos, cada
lado procurando ostentar da
forma mais incisiva seu poderio militar. Ora, nessas condições, o sistema partidário ou
mesmo os grupos que atravessam os partidos somente não
caem na bandalheira da politicagem se cada parte apresentar, em vez de bandeiras morais
e programas empolados, metas
precisas, compatíveis com os
recursos disponíveis e podendo
ser alcançadas num prazo de
tempo razoável.
O que falta é dar rumo ao
país. Sem essas medidas não
adianta pretender incendiar as
fornalhas do inferno porque já
foram tomadas pelo esgoto informe dos palácios.
E adianta menos ainda querer transformar o político no
Parsifal em busca do cálice sagrado. O candidato que se apresenta diariamente inventando
uma nova roda não merece voltar ao torno mecânico?
E aquele outro que promete
fazer o bolo crescer sem mostrar o duro caminho a ser trilhado, não estaria mais bem
alocado numa padaria?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia
do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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