São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2006

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Intelligentsia carunchada

Ao justificarem alguns pecadilhos políticos, intelectuais se afundam no cinismo mais descarado

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA

O caruncho que está comendo as instituições brasileiras não poderia poupar nossa intelligentsia, mas é surpreendente como ela rapidamente se deixou afundar no cinismo mais descarado.
O presidente-canditato declara que a política se faz com os instrumentos disponíveis, como se a esperança de um sistema político mais honesto não fosse também um fato, uma idéia reguladora existente. Os áulicos de plantão, alguns esperando as migalhas que possam cair do banquete oficial, não têm pejo de declarar em público que os fins justificam os meios sem que aqueles sejam eles próprios revistos. Afirmam sem mais que uma obra a ser pioneira na política social desculpa alguns pecadilhos.
Que me entendam bem, é todo o sistema político que está se corrompendo; mensaleiros e sanguessugas se encontram em todos os partidos.
Mas de uma responsabilidade o PT não pode se furtar: havia insistentemente transformado a ética em principal bandeira de luta, o mal, o absoluto que, erradicado, levaria o Brasil para o desenvolvimento e para a democracia.
E, quando lembrei que transformar a ética no centro de um programa político nada mais era do que fazer política, quase fui crucificado, muitas vezes por aqueles que hoje aceitam sem mais a imoralidade no trato da coisa pública.
Apenas procurei mostrar a necessidade de distinguir entre imoral e amoral, entre o julgamento ético de uma ação política e a suspensão do juízo enquanto novas instituições estão sendo criadas.
Na verdadeira política -mas não na politicagem-, um líder age às vezes amoralmente antes que suas ações sejam julgadas boas ou más. Quando César desobedece ao Senado, a quem jurara obediência, estava agindo imoralmente ou tentando criar novos padrões de relacionamento político entre um império nascente e um Senado que se reformava pela raiz?
A sangrenta política expansionista de Napoleão não teve o apoio moral de Goethe e do jovem Beethoven? Por que isso também não pode ocorrer no Brasil, seja de que partido o ator possa provir?
Lembro-me de quando Oswald de Andrade nos contava como Luiz Carlos Prestes se recusara a aderir à Revolução de 30, mandando dizer a Getúlio Vargas que tinha se convertido ao comunismo; ele sempre se perguntava indignado: "Por que ele não mentiu?". Imaginem o que teria sido essa revolução e o percurso da esquerda do Brasil se o Cavaleiro da Esperança tivesse mentido ou ao menos se calado sobre suas convicções.
É preciso ter todo o cuidado para não pensar a política como se ela possuísse uma estrutura válida para qualquer época. Cabe desconfiar daqueles que buscam na democracia ateniense os possíveis padrões de uma democracia contemporânea. Simplesmente se esquecem de que a isonomia -todos devendo ser igualmente tratados diante da lei- implicava isegoria, isto é, o direito de qualquer cidadão vir falar em praça pública.

Democracia fora do lugar
Ainda se esquecem de que não havia na Grécia uma sociedade integrada por uma economia nos moldes em que foi criada a partir do século 17 e denominada por Hegel e Marx de "sociedade civil-burguesa".
Fora de sua casa, a vida de um cidadão ateniense era pública de um modo que nunca hoje poderíamos suportar, era escarafunchada por todos, pois só assim um seria igual a outro, por conseguinte, sendo capaz de vir a ocupar cargos meramente escolhidos por sorteio.
Se, de fato, em política ainda usamos um vocabulário grego, essa língua está morta para nós, pois nem mesmo sabemos a pronúncia de suas palavras.
Imaginem ainda Maquiavel lamentando na Velha Ponte a irrelevância da política, seu esquecimento ou ainda a indiferença que o cidadão comum teria demonstrado por ela.
Mas a nova política não estava fugindo da oposição entre senhor e suserano, característica dos tempos feudais? "Mutatis mutandis", é o que acontece hoje, quando as empresas transnacionais somente garantem seus lucros se seguirem políticas a longo prazo, se souberem aplicar as ciências políticas que se tornaram forças produtivas, se estiverem se associando ou combatendo Estados nacionais e assim por diante.
Em contrapartida, os sistemas políticos se tornam mais efetivos no controle da vida cotidiana ou mais frágeis diante do crime organizado mas também terrivelmente responsáveis pelos acertos e pelos erros de suas políticas econômicas, populacionais, educacionais etc. Cada vez se torna mais importante a observação de Michel Foucault sobre as enormes transformações por que passa atualmente a idéia de soberania, que não pode mais ser pensada tendo como modelo o soberano monárquico.
A política contemporânea se estrutura em novas formas. Ao perder grandes horizontes ideológicos, amplia a rede de conhecimento disponível; os grupos em luta não mais tendem a se polarizar, pulverizam-se em células que se juntam e se separam em momentos de comoção pública.
Por esses e outros mais motivos, a política interna se tornou jogo de esconde-esconde, enquanto aquela externa, uma rede de amigos e inimigos, cada lado procurando ostentar da forma mais incisiva seu poderio militar. Ora, nessas condições, o sistema partidário ou mesmo os grupos que atravessam os partidos somente não caem na bandalheira da politicagem se cada parte apresentar, em vez de bandeiras morais e programas empolados, metas precisas, compatíveis com os recursos disponíveis e podendo ser alcançadas num prazo de tempo razoável.
O que falta é dar rumo ao país. Sem essas medidas não adianta pretender incendiar as fornalhas do inferno porque já foram tomadas pelo esgoto informe dos palácios. E adianta menos ainda querer transformar o político no Parsifal em busca do cálice sagrado. O candidato que se apresenta diariamente inventando uma nova roda não merece voltar ao torno mecânico?
E aquele outro que promete fazer o bolo crescer sem mostrar o duro caminho a ser trilhado, não estaria mais bem alocado numa padaria?


JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve na seção "Autores", do Mais!.


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