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+ ambiente
No calor da Groenlândia
Aquecimento das águas diminui geleiras, compromete modo de vida da população
e põe em risco clima mundial
GAÓLLE DUPONT
É
uma paisagem enganadora. À beira da calota glacial da Groenlândia, tudo parece
perfeitamente imóvel.
Nada além de pedra e gelo, até
onde a vista alcança. Onde está
o céu? Onde fica a terra? E o
mar? Nesse cenário imenso, as
referências habituais desaparecem. A oeste, o deserto de neve ofuscante estende-se até o
horizonte. A leste, um gigantesco rio petrificado, a geleira
Helheimgletscher, desce até
um fiorde, emoldurada por
duas altas montanhas.
Primeiramente liso como
uma nuvem, o gelo se contorce
e racha ao avançar para o mar,
onde grandes icebergs se destacam, rapidamente aprisionados pela banquisa. Não vemos a
água do fiorde. O gelo de água
doce e o da água do mar, misturados, formam na superfície
um espesso magma branco
cheio de arestas.
Nenhum indício do fantástico movimento que está em
operação. No entanto, a calota
glacial se move. Ela derrete.
Apurando o ouvido, percebemos o som de uma grande torrente de montanha: é a água
que corre embaixo da geleira.
Todo ano, 12 quilômetros cúbicos de gelo alcançam o mar
aqui. "É o equivalente a 150
campos de futebol lado a lado,
com um quilômetro de altura",
calcula o oceanógrafo Ralph
Rayner, debruçado sobre um
pico rochoso que emerge da calota. A Helheimgletscher é uma
das maiores geleiras do mundo
e uma das que derretem mais
rapidamente.
"O avanço das geleiras para o
mar ocorre há centenas de milhares de anos, mas a perda de
gelo nas margens era até agora
compensada pelo volume de
neve que se depositava sobre a
calota", explica o cientista.
"Hoje a fusão está acelerada.
Essa geleira avança num ritmo
de seis quilômetros por ano,
três vezes maior que dez anos
atrás." Ao mesmo tempo, sua
frente, o lugar onde o gelo se
quebra no mar, recuou mais de
um quilômetro por ano. E a espessura diminuiu pela metade.
Vários fatores estão em jogo.
Primeiro, o aquecimento da
temperatura do ar é mais sensível nos pólos do que nas regiões temperadas.
Clara advertência
Além disso, a água do derretimento do gelo na superfície se
infiltra nas rachaduras e lubrifica a base rochosa, o que acelera ainda mais o fenômeno.
"Não temos todas as peças do
quebra-cabeça, mas sabemos
que é aqui que o processo ocorre mais rapidamente no mundo", afirma Rayner. "Este lugar
nos faz uma clara advertência:
as coisas não estão acontecendo normalmente."
A Groenlândia está sob vigilância. A grande ilha setentrional é coberta de gelo em 85%.
A calota atinge mais de 3 km
de espessura no centro. Seus 3
milhões de quilômetros cúbicos de gelo pesam tanto que a
base rochosa da ilha afundou
abaixo do nível do mar.
Os trabalhos recentes de Eric
Rignot, do Laboratório de Propulsão a Jato de Pasadena (Califórnia), e de Pannir Kanagaratnam, do centro de televigilância das calotas polares da
Universidade de Kansas, mostraram que o déficit de gelo da
banquisa atinge cerca de 220
quilômetros cúbicos por ano e
que a Groenlândia contribui
hoje para a elevação do nível
dos oceanos à razão de 0,6 milímetro por ano.
Um estudo realizado sob a
direção de Jianli Chen, pesquisador do Centro de Pesquisas
Espaciais da Universidade do
Texas, publicado na "Science"
em 10/8, apresenta números
comparáveis: 239 quilômetros
cúbicos de gelo perdidos por
ano, dos quais 164 originários
da costa oriental da ilha, e uma
contribuição de 0,56 milímetro
para a elevação dos oceanos.
Se toda a calota derretesse,
os oceanos do globo subiriam
sete metros. "Muitas cidades
grandes ficariam sob a água,
mas imagino que os homens teriam se mudado para o interior", sorri Rayner.
Na verdade, o processo levaria várias centenas de anos.
"Há hoje um consenso em afirmar que o derretimento é inevitável. A pergunta é: em que
velocidade isso acontecerá?",
resume o oceanógrafo. "Depende em grande parte da amplitude do aquecimento, portanto das atividades humanas."
Mas não é tudo. O acréscimo
de água doce em grande quantidade à água do mar apresenta
o risco de perturbar a corrente
do Golfo, uma corrente marítima quente que banha as costas
européias. Sem ela, as temperaturas lá seriam inferiores a 7
graus. A leste da Groenlândia,
uma das engrenagens do mecanismo está desregulada.
"O acréscimo constante de
águas doces ao oceano diminui
a densidade da água e perturba
as correntes. A corrente fria
que mergulha para as profundezas do oceano parece ficar
mais lenta, o que poderia afetar
a circulação da corrente do
Golfo na superfície", resume
Ralph Rayner.
Mormaço a 25 C
Bem perto desses gelos
ameaçadores, a população assiste de camarote ao aquecimento climático. Alguns milhares de habitantes vivem em
Angmagssalik, a principal comunidade da costa leste da
Groenlândia. O recorde de
temperatura registrado no local foi superado em 13/6/2005.
"Fez 25,3 C, e as pessoas sentiram tanto calor que ficaram à
sombra o dia inteiro", lembra-se o médico da aldeia, Hans
Christian Florian.
A pequena cidade, situada
pouco abaixo do círculo polar,
fica pendurada nas vertentes
íngremes de um dos inúmeros
fiordes talhados nas costas da
Groenlândia. O povoado se parece com muitos outros da região nórdica. É um aglomerado
de pequenas casas de madeira
vermelhas, amarelas, verdes e
azuis, onde perambulam adolescentes de jeans e tênis.
Mas uma visita ao supermercado revela rapidamente as
particularidades da Groenlândia: nas gôndolas, fuzis de caça
são vendidos livremente, e basta ter 14 anos para comprar um.
Estamos num país de caçadores. Focas, narvais, ursos, baleias-brancas, morsas. Para
muitos ainda é uma profissão,
para todos uma diversão e uma
fonte de renda complementar.
Ao lado das espingardas,
grandes sacos de ração para
cães de trenó estão empilhados. As matilhas, privadas de
corridas durante o degelo, estão acorrentadas em toda parte
na aldeia, e com freqüência uivam seu tédio ao sol noturno.
Todos os produtos são importados da Dinamarca, da
qual a Groenlândia ainda depende, apesar de ter um Parlamento autônomo. O primeiro
barco de suprimentos só chega
em julho, quando o derretimento da banquisa permite sua
passagem.
É um grande acontecimento:
três tiros de canhão são disparados nesse dia. A manobra se
repete quando o último barco
parte, no final de setembro. Então Angmagssalik volta a mergulhar no isolamento durante
nove meses. Nesse país sem estradas, o acesso é feito por avião
e depois por helicóptero, ambos caríssimos.
Ainda no supermercado, é
impossível não ver as altas pirâmides de latas de cerveja. Acabam espalhadas pelas ruas da
aldeia, que ficam repletas delas.
"Mesmo que não afete a maioria da população, o alcoolismo é
um problema real aqui", comenta Florian.
"Também é mais visível que
em outros lugares pois é vivido
abertamente." Testemunha
disso, entre outros, é uma avó
que passeia de quatro sobre a
grama amarelada, diante da indiferença geral. Outro flagelo: o
índice de suicídios, quatro vezes maior que na Dinamarca.
Civilização da foca
É que em pouco mais de um
século os habitantes de Angmagssalik passaram do modo
de vida de caçadores-coletores
para a civilização digital. Em
1884, os 413 inuítes descobertos pelo pastor Gustav Holm
durante a colonização viviam
em total autarquia. Eram "sobreviventes da pré-história",
escreveu Paul-Emile Victor depois de passar dois anos ali, na
década de 1930.
O etnólogo descreveu uma
"civilização da foca", em que o
menor pedaço de carne, gordura, couro e osso proveniente do
animal era utilizado. Ele fala de
homens e mulheres vivendo
obstinadamente nessa terra,
apesar da escuridão dos longos
invernos e do frio glacial.
"Sila naalagaavok": "O tempo
é o senhor", diz um axioma
inuíte. Karl Pivat, um caçador
de 73 anos, descreve sem hesitar, com o dedo pousado num
mapa, as mudanças causadas
pela recente alteração climática. "Antes havia muito mais gelo e neve em todo lugar", diz o
ancião. "Nós vimos as geleiras
encolherem cada vez mais. A
banquisa também está mais fina." Ele está enraivecido com
os países ricos, que, ao emitirem gases do efeito estufa em
excesso, são responsáveis por
essa situação?
"Essa pergunta não tem sentido para Karl", explica Anders
Stenbakken, o diretor do departamento de turismo, que
serve de intérprete. "Ele não
procura a causa. Ele constata a
mudança e se adapta a ela. A
maioria dos groenlandeses sem
dúvida teme menos o aquecimento climático que os ocidentais. Eles sabem que o homem é
vulnerável à natureza e sempre
a enfrentaram."
O velho já viu outras mudanças. Ele nasceu numa casa de
pedra e turfa, cujas aberturas
eram fechadas com a ajuda de
intestinos de focas.
Quando criança, sua mãe lhe
contava as histórias do velho
mundo, evocações de caças heróicas, longas celebrações e
mortes violentas desses tempos conturbados. Seu pai caçava de caiaque, com arpão. Ao
longo de décadas, Karl viu surgirem "os fuzis de caça, o rádio,
as canoas a motor". "Temos
conforto, televisão. Não passamos mais fome!", afirma. Depois de tantas revoluções, alguns graus a mais não o impressionam muito.
Urso e bacalhau
Dines Mikaelsen alarma-se
mais que seu compatriota idoso. Ele nasceu há 29 anos em
Isertoq, um assentamento,
uma das aldeias isoladas e pobres ao redor de Angmagssalik.
Lá, pedaços de carne e gordura
de foca estão espalhados pelo
chão ao redor de frágeis cabanas. Peixes secam nas janelas
em fileiras cerradas.
No centro da aldeia, duas belas peles de urso, macias e espessas, estão estendidas num
secador. É claro que Mikaelsen
caça, como fazia seu pai. O jovem também viajou e fala inglês, o que é muito raro entre os
groenlandeses do leste.
Excelente conhecedor da região, ele notou as mudanças nas
rotas migratórias das aves. O
que mais o perturba é a fuga do
urso polar para o norte. O animal vive sobre a banquisa. Mas
a superfície de gelo diminui 3%
por década, e o urso torna-se
mais raro.
Os "efeitos negativos da mudança climática, como os furacões", certamente foram notados por Andersine Hansen-Kristiansen Siumut, jovem
eleita para o Conselho Municipal e adjunta ao prefeito da comunidade. Mas eles envolvem
"outras partes do mundo", ela
diz. Aqui, "a diminuição da banquisa nos traz vantagens, mais
dias de pesca, o que permitirá
ganhar mais", espera a jovem.
Thomas Kristensen Atassut,
o representante da cidade no
Parlamento autônomo da
Groenlândia, menciona outro
fato crucial que todos têm na
cabeça: o bacalhau chega à região. E, com ele, talvez, a possibilidade de desenvolver a economia. Pois Angmagssalik vive
hoje a conta-gotas. Três quartos dos empregos são administrativos e a cotação da pele de
foca, em queda livre depois das
campanhas ecológicas contra
sua caça, é mantida unicamente à custa de subvenções.
"Quando o gelo encolhe, é como se removêssemos uma cobertura, o espaço liberado é
preenchido pela vida", explica
Jacqueline McGlade, diretora
da Agência Européia do Ambiente. "Em cinco ou dez anos",
ela continua, "um novo ecossistema marinho surgirá. É preciso lhe dar tempo para se desenvolver. Se os estoques de peixes
forem explorados rapidamente, eles acabarão e com eles a
economia local. Estamos numa
encruzilhada."
Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
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