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Biologia seletiva
Leo Drummond-28.abr.2005/Folha Imagem
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Banana atirada no gramado do Pacaembu durante o amistoso Brasil x Guatemala, em ato de hostilidade contra o atacante Grafite, então do São Paulo |
Meticuloso,
mas
equivocado,
estudo do
jornalista
Ali Kamel
confunde raça
com racismo
MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA
O
s entusiastas da
obra "Não Somos
Racistas - Uma
Reação aos que
Querem Nos
Transformar numa Nação Bicolor", do jornalista Ali Kamel,
têm razão num ponto: é um livro corajoso. Ocorre que coragem não é condição suficiente
para concordar com um livro, e
talvez nem seja necessária.
O alvo de Kamel, diretor de
jornalismo da Rede Globo, são
as cotas raciais ou sociais, qualquer forma de ação afirmativa
e até políticas de redução da
pobreza, como o Bolsa-Família. Para ele, todas são injustas,
ineficientes e contraproducentes. O problema no Brasil é o
preconceito contra a pobreza,
não de cor. Nossa índole e nossas leis condenam severamente o racismo. Só a educação salva. A insistência nas cotas e
ações afirmativas vai insuflar o
ódio racial, coisa que nunca
existiu no Brasil.
O ponto forte da obra é a meticulosidade com que se debruça sobre dados e estatísticas,
dedicação que alimentou uma
enfiada de artigos de jornal ora
reunidos no volume.
Ela padece dos defeitos normais de uma coletânea do gênero, como a redundância, a retórica circunstancial e a reiteração -incômoda num livro-
de que só o autor entendeu a
questão e enxergou a verdade
dos números.
Descontados esses vícios
menores, a obra demonstra algumas virtudes. Denunciar
simplificações realizadas por
defensores de cotas raciais é
uma delas. O Brasil de fato não
tem, literalmente, 48% de negros. São 5,9% de pretos e 42%
de pardos, segundo o IBGE. Somar os dois contingentes e chamar todo mundo de "negro" é
uma operação simbólica e deve
ser reconhecida como tal.
Mistura e tolerância
Isso não prova, contudo, que
não exista racismo no Brasil. O
alto percentual de pardos, evidência inconteste da miscigenação, não significa ausência de
discriminação. Identificar mistura racial com tolerância também constitui prestidigitação
ideológica, mas o autor parece
não se aperceber disso.
Ele até admite que ocorra racismo no país, mas como desvio
de indivíduos -como em qualquer lugar do mundo, existem
boas e más pessoas.
Aqui, porém, a sociedade é
branda. Tanto é que há 19 milhões de brancos entre os 57
milhões de pobres brasileiros.
Eles são tão discriminados
quanto os pretos (4 milhões) e
pardos (34 milhões), assegura
Kamel. "Portanto, se a pobreza
tem uma cor no Brasil, essa cor
é parda", escreve.
Mas não explica por que isso
deva ser encarado como bom
ou aceitável. Afinal, os pardos
são 42% da população geral,
mas 59% dos pobres.
Concentração de renda
Para o autor, defensor da
concórdia racial brasileira, isso
nada tem a ver com a cor da pele -"cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho, moreno,
marrom-bombom", como se
permite dizer. É que o modelo
econômico brasileiro sempre
foi concentrador de renda.
Como essa gente escura descende de escravos libertos, por
definição os mais pobres da
época, não houve tempo ainda
-nem ensino de qualidade-
para que sua paulatina ascensão se completasse. Zero de discriminação.
Nem o direito de propriedade sobre seres humanos se
apoiava sobre a cor da pele,
afirma Kamel: "A verdade é que
a escravidão não assentava sua
legitimidade em bases raciais,
pois era grande a mobilidade
social dos escravos. (...) Ou seja,
uma vez alforriados, a cor não
era impedimento para que os
negros fossem aceitos como
iguais pelos brancos".
A ausência de ódio racial, que
viria portanto desde o tempo
dos capitães-do-mato e dos pelourinhos, segue ininterrupta
até hoje, ancorada na distorcida cordialidade brasileira: "O
negro que dirige um carro de
luxo e é confundido com um
motorista e, por isso, maltratado, é mais vítima de "classismo"
do que de racismo. Uma vez
desfeito o mal-entendido, um
tapete vermelho se estende para a vítima".
Kamel também se esmera
em mostrar, com suas tabelas,
os percalços, absurdos e desvios das ações afirmativas e do
combate à pobreza. De fato,
eles são muitos, mas de seu reconhecimento podem emergir
dois cursos de ação: propor
aperfeiçoamentos ou renunciar de vez às medidas.
Como o jornalista favorece o
sempre anunciado e nunca realizado passe de mágica universalista (educação), opta pelo segundo curso -sob o raciocínio
de que manter as ações desvia
recursos da verdadeira solução.
Desse ponto de vista, R$ 19
bilhões do Bolsa-Família e do
benefício de um salário mínimo para idosos e inválidos, previsto na Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), são um
desperdício. Deveriam ir para a
rede pública de ensino.
Números por números, alguém poderia dizer que R$ 180
bilhões de juros são um desperdício quase dez vezes maior,
com o agravante de que tais bilhões, eles sim, jamais chegarão
às mãos de quem precisa.
O equívoco, como já se vê, está no ponto de partida ou, mais
precisamente, no que se chama
de parti pris. Antes mesmo de
começar a pesquisar, Kamel já
estava convencido de que não
há raças no mundo nem racismo no Brasil. Como não existem raças biológicas nem diante da lei nacional -que, ao contrário, condena formalmente a
discriminação-, o racismo seria uma impossibilidade lógica
por estas bandas.
Mas quem disse que defender cotas implica ressuscitar o
conceito biológico de raça?
O movimento de reivindicação que se galvanizou com sua
defesa é de todo compatível
com a denúncia de uma modalidade puramente social de racismo, ainda que suas propostas de solução mereçam questionamento.
Existem mais coisas entre a
realidade chancelada pela ciência natural e a preconizada pelas normas formais do que pode
sonhar a sociologia jornalística.
O fato de a discriminação racial
ter sido definida como crime (e
não mais contravenção) somente em 1989 -um século depois da nossa já tardia Abolição- diz mais sobre a índole da
sociedade brasileira do que a
inexistência de leis segregacionistas, ao estilo do apartheid.
O inédito zelo republicano
contra as ações afirmativas diz
outro tanto.
Restam, por fim, duas observações sobre a contribuição da
genética para os argumentos de
Kamel.
Distinção por DNA
Primeiro, o mantra repetido
por Kamel de que não existem
raças para a biologia humana.
Em certo plano, a afirmação
é correta: há mais variedade entre indivíduos de uma mesma
população do que entre duas
populações, como mostrou Richard Lewontin ainda em 1972,
quando se consideram características isoladas (como tipos
sangüíneos). Se as raças existissem como concebidas no auge
do colonialismo, tais grupos deveriam ser mais homogêneos,
internamente, e mais diferentes entre si.
Mas isso não significa que
não se possam discriminar populações por meio da análise
em bloco de seu DNA, comparando simultaneamente múltiplos genes por meio das novas
ferramentas da genômica
-muito menos, que isso seja irrelevante.
O livro desanca como "racista" o geneticista Armand Marie
Leroi, por defender -num artigo de jornal- que raças, ainda
que sejam categorias pouco refinadas, têm, sim, relevância
epidemiológica.
Kamel apóia-se na opinião de
um geneticista de organismos
marinhos, contra Leroi, quando seria melhor atentar para as
pesquisas de autoridades como
Jonathan Pritchard.
Leroi apresenta fatos: o risco
de câncer de próstata e de
doença cardíaca por hipertensão é três vezes maior entre negros (pretos e pardos) dos EUA
do que entre brancos. Mesmo
que uma maior miscigenação
no Brasil embaralhe a correlação, isso não permite afirmar
que "a ciência já mostrou que a
associação entre raça e doença
não passa de um mito". Leroi
não é um Vincent Sarich, mas
as nuanças da paisagem acadêmica não têm lugar num universo mental em que "a ciência" dita alguma coisa, segregando a todos em duas categorias: racistas e não-racistas.
Omissão
Depois, há o exemplo sempre
citado das pesquisas do geneticista Sérgio Danilo Pena sobre
a ancestralidade da população
brasileira. Kamel reproduz o
dado de que 87% dos brancos
de todo o Brasil (contra 11% nos
EUA) têm ao menos 10% de ancestralidade africana. Evidência da boa e velha miscigenação, decerto.
O autor omite, porém, outros
resultados obtidos pelo grupo
de Pena. Em 2000, o geneticista divulgou o estudo "Retrato
Molecular do Brasil", em que
mostrava uma diferença marcante entre patrilinhagens e
matrilinhagens na ancestralidade do brasileiro tido como
branco.
Nada menos que 98% dos
marcadores genéticos herdados por parte de pai (no cromossomo Y) ao longo dos séculos têm origem européia; só 2%
provêm de homens de extração
africana e 0% de índios. Pelo lado materno (DNA mitocondrial), as proporções se revelam
mais equilibradas: 39% de contribuição européia, 33% indígena e 28% africana.
A tradução é clara: os senhores portugueses e seus descendentes, indubitavelmente
brancos, eram os machos dominantes e tinham filhos com
as poucas mulheres brancas
mas também se saciavam com
as escravas índias e negras, gerando a multidão de pardos
-na pele e no DNA, nem sempre os dois juntos- que povoou
e povoa, ainda hoje, o Brasil.
Isso, obviamente, nada tem a
ver com racismo (ao menos para quem está pronto a enxergar
como congraçamento o que outros preferem denunciar como
violência).
NÃO SOMOS RACISTAS
Autor: Ali Kamel
Editora: Nova Fronteira (tel. 0/xx/
21/ 2131-1111)
Quanto: R$ 22 (144 págs.)
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