São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2006

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Biologia seletiva

Leo Drummond-28.abr.2005/Folha Imagem
Banana atirada no gramado do Pacaembu durante o amistoso Brasil x Guatemala, em ato de hostilidade contra o atacante Grafite, então do São Paulo


Meticuloso, mas equivocado, estudo do jornalista Ali Kamel confunde raça com racismo

MARCELO LEITE
COLUNISTA DA FOLHA

O s entusiastas da obra "Não Somos Racistas - Uma Reação aos que Querem Nos Transformar numa Nação Bicolor", do jornalista Ali Kamel, têm razão num ponto: é um livro corajoso. Ocorre que coragem não é condição suficiente para concordar com um livro, e talvez nem seja necessária.
O alvo de Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, são as cotas raciais ou sociais, qualquer forma de ação afirmativa e até políticas de redução da pobreza, como o Bolsa-Família. Para ele, todas são injustas, ineficientes e contraproducentes. O problema no Brasil é o preconceito contra a pobreza, não de cor. Nossa índole e nossas leis condenam severamente o racismo. Só a educação salva. A insistência nas cotas e ações afirmativas vai insuflar o ódio racial, coisa que nunca existiu no Brasil.
O ponto forte da obra é a meticulosidade com que se debruça sobre dados e estatísticas, dedicação que alimentou uma enfiada de artigos de jornal ora reunidos no volume. Ela padece dos defeitos normais de uma coletânea do gênero, como a redundância, a retórica circunstancial e a reiteração -incômoda num livro- de que só o autor entendeu a questão e enxergou a verdade dos números.
Descontados esses vícios menores, a obra demonstra algumas virtudes. Denunciar simplificações realizadas por defensores de cotas raciais é uma delas. O Brasil de fato não tem, literalmente, 48% de negros. São 5,9% de pretos e 42% de pardos, segundo o IBGE. Somar os dois contingentes e chamar todo mundo de "negro" é uma operação simbólica e deve ser reconhecida como tal.

Mistura e tolerância
Isso não prova, contudo, que não exista racismo no Brasil. O alto percentual de pardos, evidência inconteste da miscigenação, não significa ausência de discriminação. Identificar mistura racial com tolerância também constitui prestidigitação ideológica, mas o autor parece não se aperceber disso.
Ele até admite que ocorra racismo no país, mas como desvio de indivíduos -como em qualquer lugar do mundo, existem boas e más pessoas. Aqui, porém, a sociedade é branda. Tanto é que há 19 milhões de brancos entre os 57 milhões de pobres brasileiros.
Eles são tão discriminados quanto os pretos (4 milhões) e pardos (34 milhões), assegura Kamel. "Portanto, se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa cor é parda", escreve.
Mas não explica por que isso deva ser encarado como bom ou aceitável. Afinal, os pardos são 42% da população geral, mas 59% dos pobres.

Concentração de renda
Para o autor, defensor da concórdia racial brasileira, isso nada tem a ver com a cor da pele -"cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho, moreno, marrom-bombom", como se permite dizer. É que o modelo econômico brasileiro sempre foi concentrador de renda.
Como essa gente escura descende de escravos libertos, por definição os mais pobres da época, não houve tempo ainda -nem ensino de qualidade- para que sua paulatina ascensão se completasse. Zero de discriminação.
Nem o direito de propriedade sobre seres humanos se apoiava sobre a cor da pele, afirma Kamel: "A verdade é que a escravidão não assentava sua legitimidade em bases raciais, pois era grande a mobilidade social dos escravos. (...) Ou seja, uma vez alforriados, a cor não era impedimento para que os negros fossem aceitos como iguais pelos brancos".
A ausência de ódio racial, que viria portanto desde o tempo dos capitães-do-mato e dos pelourinhos, segue ininterrupta até hoje, ancorada na distorcida cordialidade brasileira: "O negro que dirige um carro de luxo e é confundido com um motorista e, por isso, maltratado, é mais vítima de "classismo" do que de racismo. Uma vez desfeito o mal-entendido, um tapete vermelho se estende para a vítima".
Kamel também se esmera em mostrar, com suas tabelas, os percalços, absurdos e desvios das ações afirmativas e do combate à pobreza. De fato, eles são muitos, mas de seu reconhecimento podem emergir dois cursos de ação: propor aperfeiçoamentos ou renunciar de vez às medidas.
Como o jornalista favorece o sempre anunciado e nunca realizado passe de mágica universalista (educação), opta pelo segundo curso -sob o raciocínio de que manter as ações desvia recursos da verdadeira solução.
Desse ponto de vista, R$ 19 bilhões do Bolsa-Família e do benefício de um salário mínimo para idosos e inválidos, previsto na Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), são um desperdício. Deveriam ir para a rede pública de ensino.
Números por números, alguém poderia dizer que R$ 180 bilhões de juros são um desperdício quase dez vezes maior, com o agravante de que tais bilhões, eles sim, jamais chegarão às mãos de quem precisa.
O equívoco, como já se vê, está no ponto de partida ou, mais precisamente, no que se chama de parti pris. Antes mesmo de começar a pesquisar, Kamel já estava convencido de que não há raças no mundo nem racismo no Brasil. Como não existem raças biológicas nem diante da lei nacional -que, ao contrário, condena formalmente a discriminação-, o racismo seria uma impossibilidade lógica por estas bandas.
Mas quem disse que defender cotas implica ressuscitar o conceito biológico de raça? O movimento de reivindicação que se galvanizou com sua defesa é de todo compatível com a denúncia de uma modalidade puramente social de racismo, ainda que suas propostas de solução mereçam questionamento. Existem mais coisas entre a realidade chancelada pela ciência natural e a preconizada pelas normas formais do que pode sonhar a sociologia jornalística.
O fato de a discriminação racial ter sido definida como crime (e não mais contravenção) somente em 1989 -um século depois da nossa já tardia Abolição- diz mais sobre a índole da sociedade brasileira do que a inexistência de leis segregacionistas, ao estilo do apartheid. O inédito zelo republicano contra as ações afirmativas diz outro tanto.
Restam, por fim, duas observações sobre a contribuição da genética para os argumentos de Kamel.

Distinção por DNA
Primeiro, o mantra repetido por Kamel de que não existem raças para a biologia humana.
Em certo plano, a afirmação é correta: há mais variedade entre indivíduos de uma mesma população do que entre duas populações, como mostrou Richard Lewontin ainda em 1972, quando se consideram características isoladas (como tipos sangüíneos). Se as raças existissem como concebidas no auge do colonialismo, tais grupos deveriam ser mais homogêneos, internamente, e mais diferentes entre si.
Mas isso não significa que não se possam discriminar populações por meio da análise em bloco de seu DNA, comparando simultaneamente múltiplos genes por meio das novas ferramentas da genômica -muito menos, que isso seja irrelevante.
O livro desanca como "racista" o geneticista Armand Marie Leroi, por defender -num artigo de jornal- que raças, ainda que sejam categorias pouco refinadas, têm, sim, relevância epidemiológica.
Kamel apóia-se na opinião de um geneticista de organismos marinhos, contra Leroi, quando seria melhor atentar para as pesquisas de autoridades como Jonathan Pritchard.
Leroi apresenta fatos: o risco de câncer de próstata e de doença cardíaca por hipertensão é três vezes maior entre negros (pretos e pardos) dos EUA do que entre brancos. Mesmo que uma maior miscigenação no Brasil embaralhe a correlação, isso não permite afirmar que "a ciência já mostrou que a associação entre raça e doença não passa de um mito". Leroi não é um Vincent Sarich, mas as nuanças da paisagem acadêmica não têm lugar num universo mental em que "a ciência" dita alguma coisa, segregando a todos em duas categorias: racistas e não-racistas.

Omissão
Depois, há o exemplo sempre citado das pesquisas do geneticista Sérgio Danilo Pena sobre a ancestralidade da população brasileira. Kamel reproduz o dado de que 87% dos brancos de todo o Brasil (contra 11% nos EUA) têm ao menos 10% de ancestralidade africana. Evidência da boa e velha miscigenação, decerto.
O autor omite, porém, outros resultados obtidos pelo grupo de Pena. Em 2000, o geneticista divulgou o estudo "Retrato Molecular do Brasil", em que mostrava uma diferença marcante entre patrilinhagens e matrilinhagens na ancestralidade do brasileiro tido como branco.
Nada menos que 98% dos marcadores genéticos herdados por parte de pai (no cromossomo Y) ao longo dos séculos têm origem européia; só 2% provêm de homens de extração africana e 0% de índios. Pelo lado materno (DNA mitocondrial), as proporções se revelam mais equilibradas: 39% de contribuição européia, 33% indígena e 28% africana. A tradução é clara: os senhores portugueses e seus descendentes, indubitavelmente brancos, eram os machos dominantes e tinham filhos com as poucas mulheres brancas mas também se saciavam com as escravas índias e negras, gerando a multidão de pardos -na pele e no DNA, nem sempre os dois juntos- que povoou e povoa, ainda hoje, o Brasil.
Isso, obviamente, nada tem a ver com racismo (ao menos para quem está pronto a enxergar como congraçamento o que outros preferem denunciar como violência).

NÃO SOMOS RACISTAS
Autor: Ali Kamel
Editora: Nova Fronteira (tel. 0/xx/ 21/ 2131-1111)
Quanto: R$ 22 (144 págs.)


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