São Paulo, Domingo, 03 de Outubro de 1999
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Pesquisador inglês defende que a Internet é a besta que destruirá o capitalismo
A revolução banal

Associated Press
Visitantes usam cibercapacetes que permitem assisitir a filmes feitos em computador, durante feita de tecnologia em Hannover (Alemanha)


ROGÉRIO PACHECO JORDÃO
especial para a Folha, de Londres

Depois de terem vencido a Guerra Fria, os americanos estão agora, sem saber, promovendo globalmente o comunismo por meio do ciberespaço. A revolução nas tecnologias de comunicação vai levar o desenvolvimento das forças produtivas a tal ponto que o modo de produção capitalista será superado. Na prática diária de milhões de pessoas que usam a Internet está a semente de uma nova forma de economia em que a troca -em um primeiro momento, basicamente, a de informação- não será mais mediada por regras do mercado. A informação não é mercadoria ou "commoditty" -e tentar "cercá-la" na Internet é não apenas infrutífero, mas também contrário à própria lógica da rede. Se essa dinâmica vale para a rede, ela também valerá para os múltiplos desenvolvimentos que virão a partir da interação de novas mídias. O capitalismo gerou em seu ventre a besta que irá consumi-lo.
Ao mesmo tempo há uma nova tecnocracia da Web (de "World Wide Web", a rede mundial de computadores) que se imagina como uma elite modernizadora que detém a chave para o futuro. Assim como os revolucionários comunistas russos e gerações de revolucionários no século 20 se imaginavam liderando as massas para a redenção, há aqueles que hoje vêem na Web a realização do comércio perfeito. São os cibercomunistas, que se apropriaram da retórica vanguardista de Lênin -mas no sentido inverso: o fim da historia está no mercado. Nesse sentido, a nova Moscou é a Califórnia do Vale do Silício.
O professor inglês Richard Barbrook, 43, resume essas idéias em um longo ensaio recentemente lançado na Internet, cujo título já é em si uma provocação: "Cibercomunismo: Como os Americanos Estão Superando o Capitalismo no Ciberespaço".
Um dos fundadores e coordenadores do Hypermedia Research Centre da Universidade de Westminster, em Londres, Barbrook diz que o objetivo do ensaio era este mesmo: provocar. "Há coisas mais complexas acontecendo na Internet e não é a apoteose do mercado, como afirmam os ideólogos neoliberais." Ele é autor de "Media Freedom - The Contradictions of Communications in the Age of Modernity" ("Liberdade da Mídia - As Contradições das Comunicações na Era da Modernidade", Ed. Pluto, Londres).
Barbrook rotula de "ideologia californiana" o corpo de idéias que vê na Web a apoteose do mercado. "Ideologia Californiana" é também o título de outro polêmico ensaio publicado por ele há quatro anos. Crítico dessa visão, Barbrook aponta suas armas contra a revista "Wired" -a "bíblia" das novas tecnologias e novos negócios na Internet.
Em artigo saído na Internet, o editor da "Wired", Louis Rossetto, rebateu Barbrook e seus colegas, dizendo que suas idéias revelam uma "ligação atávica com o estadismo" ("statism") e que ignoram que a rede se desenvolveu como fruto do capitalismo, da liberdade de comércio e da livre expansão dos mercados de capital.
Para Barbrook, isso se chama ideologia: "Ou, se quisermos adotar a retórica stalinista, consciência distorcida da realidade". Nesta entrevista à Folha, feita em Londres, o professor expõe suas idéias sobre a revolução nas tecnologias de comunicação e explica por que acredita que a Internet favorece a livre e gratuita circulação de informações.

"A Web não surgiu do comércio; os capitalistas foram os últimos a entrar nela"



Folha - O sr. argumenta em seu ensaio que a revolução nas tecnologias de comunicação está levando a uma superação do capitalismo. O sr. também rotula a prática diária de milhões de pessoas na Web como cibercomunismo. Em que sentido isso estaria ocorrendo?
Richard Barbrook -
Escrevi o texto, em parte, porque acho necessário inverter a propaganda sobre a Web que está sendo feita por pessoas apenas preocupadas em lançar ações em Wall Street e também por ideólogos da chamada ideologia californiana, sintetizada na revista "Wired". A outra idéia era falar sobre a "gift economy" (por meio da qual a informação não tem valor de mercado, mas é um "presente"), que na minha opinião é o aspecto central da Internet -e não o livre mercado. O ensaio é também uma provocação, porque americanos odeiam ser chamados de comunistas.

Folha - Mas em que sentido os americanos estariam promovendo o cibercomunismo?
Barbrook -
É interessante observar como os neoliberais se apropriaram do discurso comunista, e aqui me refiro mais exatamente ao discurso stalinista. Uma das inspirações para o meu texto foi um artigo publicado pela "Wired", em que o autor, John Katz, dizia que uma das razões para os EUA estarem atingindo a sociedade utópica é que os americanos têm mais "laptops", mais conexões de Internet. Eu li aquilo e pensei: mas isso é o que Stálin dizia quando falava que se estava atingindo o comunismo porque a produção de tratores na União Soviética estava aumentando. Neoliberais estão usando o argumento stalinista de que o que importa é o acúmulo de tecnologia.

Folha - Mas o que seria essa utopia americana?
Barbrook-
O mercado perfeito, a sociedade perfeita, o ser humano transcendendo sua própria natureza e se tornando imortal. O que eu argumento é que o centro da Internet não é o mercado e a comercialização de informações, mas, pelo contrário, a circulação livre de informação.

Folha - Segundo levantamento recente, 83% das páginas da Web estão ligadas a finalidades comerciais. Não é exatamente o contrário do que o sr. afirma?
Barbrook-
Esse tipo de dado não é confiável. Como se mede uma coisa dessas na Internet? Essas estatísticas mentem. O mais popular programa de buscas atualmente é o MP3 (leia a respeito na pág. 5-7). É claro que há os catálogos para compras on line, e muitas companhias usam a Web para esse fim. Mas, do meu ponto de vista, não é isso o que interessa. O importante é analisar o uso que a maioria das pessoas faz da Internet. Não digo que os americanos estão abolindo o capitalismo. Uso a terminologia hegeliana de superação, que envolve dialética. Existe a crença de que se está criando na Internet o mais livre de todos os mercados. Creio que é verdade que se estão criando oportunidades comerciais para as pessoas. Eu trabalho em um centro de pesquisas no qual os estudantes são treinados para trabalhar nesse mercado, inclusive. Há muitos novos produtos e softwares sendo desenvolvidos. Mas dizer que agora é possível fazer supermercado sem sair de casa é apenas dizer o óbvio.

Folha - O que não seria óbvio?
Barbrook -
O que não se fala, e o que eu acho interessante, é o que a maioria das pessoas faz a maior parte do tempo na Web. Essa maioria passa e-mails, faz sites, forma comunidades. Em um site você não está apenas distribuindo informação, é preciso fazer com que as pessoas participem. O ponto é que essas atividades, por outro lado, se relacionam na Internet de uma maneira dialética com o lado comercial.

Folha - E qual é a importância disso?
Barbrook -
Não é a apoteose do livre mercado, como pregam os propagadores da "ideologia californiana". A maior parte da informação que circula na Web não está sendo vendida ou comprada. Até a Microsoft dá coisas de graça, como o Explorer, por exemplo. A fantasia neoliberal -que remonta ao início dos anos 70, quando se previa um mercado gigante por meio do qual todos seriam pequenos negociantes de informação- não aconteceu. Na verdade está ocorrendo o contrário: aqueles que tentam criar informação como "commodities" (algo que tem valor de compra e venda) estão sendo forçados a uma maior abertura. Apenas uns poucos serviços, como o de pornografia e informação financeira, podem adotar a visão neoliberal do comércio da informação. Setores nos quais a informação é tratada como "commodity", como a indústria da música, estão tendo problemas por causa dessa "descomodificação".

Folha - O sr. se refere ao MP3?
Barbrook -
O MP3 é apenas um exemplo. Veja o caso do texto, por exemplo. Quando morei na França, comprava todo dia o jornal "Libération". Depois desisti, porque não tinha mais tempo de lê-lo junto com o "The Guardian". Hoje leio o "Libération" on line. O que quero dizer é que há uma grande quantidade de informação gratuita à disposição, eu não preciso pagar por ela. Mas é interessante observar como se dá a hibridação desses dois lados da Web: o do gratuito e do comercial. Aqueles que conseguiram uma fórmula híbrida tiveram lucros, os que não conseguiram perderam muito dinheiro.

Folha - O sr. dá a entender que o desenvolvimento das novas tecnologias de informação chegou a um grau em que não será mais possível "cercar" a Web, transformar o que circula ali em mercadoria. Essa é a tendência?
Barbrook -
Não há nada inerente à lógica da tecnologia que diga que seu desenvolvimento levará ao mercado. A Web não foi construída a partir do comércio. Ela começou ancorada no setor público, foi construída pelo Estado a partir de projetos de defesa (a rede começou a nascer em 1969, a partir de um projeto desenvolvido por agências do Departamento de Defesa Americano), e, depois, nas idéias da cultura do "faça você mesmo". O comércio chegou por último. A indústria da música, por exemplo, deveria ter se ligado nisso há cinco anos -e talvez agora seja tarde demais.

"O copyright está sendo minado por todos os lados, depois da Internet"


Folha - Tarde demais por quê?
Barbrook -
Três anos atrás, nós fizemos o site da banda Jamiroquai. Tivemos reuniões com a Sony e foi muito interessante, porque, se bem que naquela época eles já tivessem percebido que a Web estava chegando, por outro lado eles resolveram simplesmente ignorar o fato. Tinham medo de perder o copyright sobre o software. O medo deles era o que virou o MP3. E, agora, por ter se desenvolvido como um padrão que permite o acesso a todos, é muito mais difícil criar uma versão com copyright.

Folha - E qual o resultado prático disso?
Barbrook -
Muitos músicos agora vão direto para o MP3, sem passar por gravadoras. A maioria dos músicos gasta muito dinheiro distribuindo gravações num esforço desesperado para que alguém ouça o que estão fazendo. Pelo MP3, o custo é quase zero.

Folha - Do ponto de vista de uma gravadora, o MP3 significa que eu posso colocar, por exemplo, um CD do David Bowie na Web para que outros possam copiá-lo, em vez de comprar o mesmo CD na loja, certo?
Barbrook -
Essa é uma versão. Eles estão preocupados com isso, porque David Bowie é um artista que assinou um contrato com eles, que transfere para a gravadora os direitos de distribuição e reprodução. Mas o perigo para a indústria da música é que os novos David Bowies nem se interessem em passar por ela.

Folha - O sr. acha possível, para usar um termo seu, "cercar" a Web de modo que novos David Bowies tenham de pagar para veicular suas músicas?
Barbrook -
Obviamente é isso que eles estão tentando fazer. Essa é a briga toda. Mas eu acho que a indústria da música começou muito tarde.

Folha - O sr. coordena um laboratório que pesquisa hipermídia. O processo que descreveu para a indústria fonográfica ocorre também em outros meios?
Barbrook -
Acho que a maior parte da produção de informação está transformada por esse processo. Um dos ideais da Revolução Francesa era o de que todo cidadão tinha o direito de publicar. Espera-se de você, como cidadão, que contribua com seus pensamentos, com suas opiniões. Quando veio a produção em escala, tornou-se necessária a intermediação de um processo industrial para que isso pudesse acontecer. Nesse sentido, essa contribuição foi cercada pela lógica do mercado. A transmissão ("broadcasting") é baseada na idéia central de que você tem um transmissor e uma quantidade enorme de receptores. Mas a Internet altera essa lógica: todo receptor é também um transmissor. Daqui a dez anos vai parecer completamente absurdo ter um aparelho de TV em casa pelo qual você não pode transmitir nada, apenas receber.

Folha - Como o sr. imaginaria esses aparelhos?
Barbrook -
Se você quiser fazer um vídeo e transmiti-lo para sua família e amigos, por que não o fazer? A mídia real já está mostrando essas possibilidades. Quando se chega a esse nível, torna-se extremamente difícil colocar barreiras à distribuição gratuita de informação. E veja: a maioria das pessoas, na maior parte do tempo, não está interessada em vender nem comprar informação. Não se trata para elas de uma atividade comercial.

Folha - O que o sr. chama de cibercomunismo não é então a abolição do capitalismo?
Barbrook -
Não. Eu estou dizendo que, em alguns setores da mídia, o que vai prevalecer será a produção amadora. Veja, por exemplo, no cinema, "A Bruxa de Blair", filme feito a partir do vídeo. Ou o projeto Dogma (série de filmes produzidos por cineastas dinamarqueses), em que não há iluminação artificial e os atores não usam maquiagem. O que é isso senão a estética do "faça você mesmo"? Essa estética pode ser percebida em filmes, músicas, textos. Ao mesmo tempo, isso está produzindo uma economia mista, a hibridação de que já falei.

Folha - O sr. fala também de uma nova tecnocracia da Web composta por capitalistas, cientistas, hackers geniais, estrelas da mídia e ideólogos neoliberais. O que esses grupos têm em comum? O que o sr. quer dizer com "nova tecnocracia"?
Barbrook -
Esse é um conceito do século 19, mas que vem da Revolução Francesa, da idéia jacobina de uma elite modernizadora. Na Europa ocidental, vem de Saint-Simon -sobre como fazer a transição de uma Europa católica e camponesa para o futuro. O núcleo disso é a idéia de que uma elite modernizadora é necessária. É nesse sentido que a retórica dos neoliberais nos EUA se parece com a stalinista. Eles me acusam de comunista, mas são eles que usam a retórica de que a elite modernizadora vai liberar as massas.

Folha - Mas essa não é uma discussão restrita aos EUA e à Europa, onde estão 78% dos 130 milhões de usuários da Web no mundo?
Barbrook -
Se você mora em uma favela no Rio ou São Paulo, provavelmente essa não vai ser uma das suas prioridades. Você está preocupado em ter saneamento adequado, ter uma educação, acesso à saúde. Uma vez vi uma entrevista com o Lula (Luiz Inácio Lula da Silva, presidente de honra do PT) em que ele era acusado de querer fazer o comunismo no Brasil, e ele respondia que não, que na verdade queria implantar o fordismo. Isso me parece bastante óbvio para o caso brasileiro. Mas também é verdade que as pessoas estão usando a Web no Terceiro Mundo. Se você olhar a China, por exemplo, a Web tem sido muito usada para contornar a censura e também para negócios. Mas é bom ter em mente que, mesmo nos setores mais avançados, a Web não é ainda uma mídia de massa. Talvez na Finlândia, mas não nos EUA, nem na Inglaterra.

Folha - Voltando à questão do copyright. Não há empresas na Web que colocam como condição para ter uma página a concessão dos direitos autorais?
Barbrook -
A Geocities está tentando fazer isso. Ela é um servidor gigante, em que você coloca material de graça. Eles estão reivindicando copyright sobre esse material. Mas há uma diferença entre o que a lei diz e o que acontece na prática. Eles não estão conseguindo aplicar isso. É como impor o limite de velocidade em uma estrada ou impedir o uso de drogas. Há centenas de coisas que não são legais, mas que as pessoas fazem. O copyright está sendo minado por todos os lados.

Folha - O sr. poderia resumir o que entende por ideologia californiana?
Barbrook -
Ela está ligada sobretudo à "Wired". Desde os anos 70, nos Estados Unidos, vem se desenvolvendo esse liberalismo high-tech que diz que o significado inerente à tecnologia é o mercado. É um tipo de versão neoliberal do Marshall McLuhan. Então, o que eu chamo de ideologia californiana é a junção dessa visão do mercado com a contracultura dos anos 60, que veio da Califórnia e valoriza o "faça você mesmo" -que é perfeito para a Web. A "Wired", com seu design gráfico alternativo, difundiu a mensagem política clara de que a rede era a apoteose do livre mercado.

Folha - Quem o sr. acha que tem mais chances de se dar bem na sociedade de informação: um garoto de 14 anos que só mexe na Internet ou outro, que só gosta de ler livros?
Barbrook -
E eles não podem fazer ambas as coisas? Nós vivemos em uma época em que provavelmente nunca se consumiu tantos livros. Voltando à questão da ideologia californiana, há uma idéia de que o mundo do texto e do livro está sendo superado pelo mundo da televisão. Eu tenho alguns alunos que são disléxicos e têm dificuldades para ler. Na verdade, eles têm muitas dificuldades para tudo, inclusive para ver TV e usar a rede. E por quê? Porque o texto está em todo lugar. Na TV, nos e-mails...

Folha - Recentemente foram colocados na Web os nomes e endereços de vários agentes secretos do MI6, a agência de inteligência britânica. O escândalo Clinton-Lewinsky começou com informações na rede. Como a revolução nas tecnologias de comunicação está mudando o conceito de informação?
Barbrook -
Acho que isso nos leva de volta à questão do garoto de 14 anos. Eu venho dessa cultura do "faça você mesmo", dos anos 70, na Inglaterra. Acho que a Web está impulsionando isso. É uma cultura de participação e um processo diferente daquele em que você recebe passivamente informação produzida por outros. Na Inglaterra, serviços públicos como a BBC ou mesmo organizações comerciais estão desesperadas, tentando fazer as pessoas participarem.
Nas comunidades de rede, se as pessoas não participarem, eles não vão ter "business". É uma coisa híbrida. Não é como a TV, em que eu ligo o aparelho e desligo o meu cérebro. A Internet é uma experiência completamente diferente.

Folha - O que o sr. acha que um historiador no ano de 2200 vai dizer quando olhar para trás e analisar este final de milênio?
Barbrook -
Acho que ele vai ter dificuldade em entender que nós usávamos dinheiro. O mesmo tipo de dificuldade que temos em imaginar hoje em dia como eram as relações feudais de suserania e vassalagem.
O que eu acho interessante é que esta utopia da "economia da doação" (gift economy) não é algo apocalíptico, dramático, com pessoas agitando bandeiras nas ruas -uma visão corrente da transição para uma sociedade utópica. Do meu ponto de vista, é algo banal e mundano e que está sendo feito a partir da prática cotidiana das pessoas.


Rogerio Pacheco Jordão é jornalista e mestrando em política comparada na London School of Economics and Political Science.



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