São Paulo, Domingo, 03 de Outubro de 1999
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Tecnologias democratizam a produção e exibição de filmes
Novo e digital

LUCAS BAMBOZZI
especial para a Folha

Novas tecnologias estão forçando um redimensionamento sem precedentes da produção audiovisual em todo o mundo. O que é hoje conhecido como cinema tende a transformar-se, com os avanços no campo das imagens digitais, num conjunto de formatos tão diversos quanto acessíveis e espontâneos, ao alcance de quem se interessar. Uma efetiva democratização dos meios de produção de filmes -estrutura muito pouco questionada ao longo de um século- pode estar em curso, mesmo que ela venha a durar pouco tempo.
Essa é a promessa da revolução digital, estampada em anúncios de softwares de edição não-linear, na promoção de computadores mais potentes, no lançamento de novas câmeras, nos inúmeros sites de exibição, promoção e distribuição de filmes on line, nas capas de revistas de cinema, vídeo ou mídias digitais e mesmo em festivais tradicionais, como os de Roterdã (Holanda), Sundance (EUA) e Cannes (França).
Novos procedimentos de produção significam muito mais do que a incorporação de equipamentos e técnicas. Também estão sendo colocadas em questão a estrutura e a logística que mantêm o cinema como entretenimento de massas e, com elas, os modos de aferir a qualidade das produções, de detectar suas intenções e conceitos e a forma tradicional de trabalho em equipe numa produção audiovisual. É toda a solidez de um modelo industrial que começa a ser abalada. Mesmo o sistema hollywoodiano, que está longe de ruir, terá de se adaptar a novos ambientes, posturas e estratégias.
O circuito convencional do longa-metragem já não pode ignorar casos como o do filme americano "A Bruxa de Blair", feito sem a participação de grandes produtoras e que multiplicou mais de 3.000 vezes o seu investimento "doméstico" inicial. Também não pode fechar os olhos para iniciativas como a dos diretores reunidos em torno do movimento Dogma, que tem desenvolvido seu modelo de produção e sua estética a partir de facilidades oferecidas pela tecnologia digital.
A revista "Wired" de outubro, em artigo de capa de Rob Kenner, discute a dimensão desse fenômeno e a possibilidade de filmes como "A Bruxa de Blair" aparecerem aos milhares na próxima década. O resultado pode ser estrondoso, se ao impacto dessas produções alternativas somarmos um bom trabalho de divulgação, distribuição e promoção e também o enorme potencial de exibição prometido pela Internet.
Não há nada que impeça o surgimento crescente e incontrolado de filmes digitais e baratos, como "A Bruxa de Blair" ou os de Todd Verow (diretor do recente "The Trouble with Perpetual Dèja Vu"), um cineasta digital independente que pretende produzir, com uma equipe composta por ele e seu assistente, dez filmes de longa-metragem para o ano 2000.
Os recursos estão cada vez mais disponíveis, acessíveis e sedutores, tanto no âmbito da produção (filmagem) quanto no da pós-produção (montagem e edição) e da finalização. Não há mais desculpas para não se fazer filmes, desde que haja uma boa dose de talento e alguma verba utilizada de forma racional.

"Nada vai impedir o surgimento crescente de filmes digitais e baratos"



Possibilidades digitais
Um audiovisual digital pode ser "muitas coisas". Sua configuração pode variar segundo inúmeros itens e procedimentos de produção. Os preços das câmeras vão de US$ 800 (no caso das novas D8 ou alguns modelos MiniDV mais acessíveis) a valores bem acima dos US$ 120 mil (como uma High Definition Camera HDC-500 e modelos similares utilizados por George Lucas em "Guerra nas Estrelas"). No patamar profissional intermediário, e já em larga utilização, existem o Betacam Digital, o DVCAM (Sony e outras) ou o DVCPro (JVC, Panasonic e outras).
Naturalmente, há controvérsias quanto ao barateamento efetivo dos custos, quando se passa a "filmar" com câmeras mais caras. Em qualquer dos casos, além disso, sempre haverá algum cineasta que prefirirá a utilização da película. Existe "magia" no filmar em película, dizem alguns. Wim Wenders, no entanto, se rendeu a uma dessas câmeras de custo intermediário, rodou 150 horas de material digital em Cuba e conseguiu um de seus filmes mais belos, o documentário "Buena Vista Social Club".
O que uma captação de imagens em formato digital proporciona de imediato é a redução da equipe. O custo de um equipamento de filmagem em película não está apenas no elevado preço de locação da câmera, mas na logística que o modelo de produção demanda. Pode ser bastante enriquecedor reunir numerosos profissionais em torno de um set de filmagem (e do ritual que envolve a produção tradicional), mas isso pode também reduzir o exercício da expressão e da criação cinematográficas.
Todd Verow, que se cansou da lentidão da produção cinematográfica, partiu para o vídeo digital e lançou no Festival de Sundance de 1999 o manifesto "O Filme Está Morto". Nele, afirma que, ao se trabalhar com uma grande equipe, esta acaba por fazer o filme por si mesma. De fato, existe uma certa automação na produção cinematográfica, mantida em parte pela estrutura publicitária, que é, ao menos no Brasil, o que alimenta a mão-de-obra do cinema e gera modelos estéticos questionáveis.
O despojamento do material sensível de captação de imagens por via digital é outro item que transforma drasticamente as práticas de filmagem e expande as chances de experimentação visual.
A facilidade de manuseio do aparato técnico propiciada pelo equipamento digital, por sua vez, permite que o próprio diretor exercite seu ponto de vista e veja garantido seu objetivo estético já na fotografia de seu trabalho, por exemplo.
Mas é na pós-produção que os novos recursos mais auxiliam o realizador. A proliferação das câmeras e dos VTs (reprodutores e videogravadores digitais nos formatos MiniDV, DVCAM e DVCPro) que utilizam a interface IEE1394 (também conhecida por Firewire ou i-Link) tem transformado os sistemas de edição (montagem) do filme. Antes, esses sistemas tinham custo bastante elevado, devido à necessidade de uma placa de vídeo que convertesse o sinal analógico das câmeras e VTs em informação digital a ser processada pelo computador (fazendo uma compressão das imagens, o que deteriorava o resultado final).
Os sistemas atuais apenas transferem para dentro do computador o sinal proveniente das fitas digitais. Como não há compressão das imagens nesse processo de transferência, elas ficam praticamente preservadas. Um sistema como esse, acompanhado de disco rígido capaz de armazenar o material bruto de um longa-metragem, custa menos de US$ 10 mil. É uma ferramenta que permite ao cineasta ou videomaker ter em sua própria casa uma estação de trabalho que vai viabilizar a edição, uma das etapas mais importantes e caras da realização de uma obra audiovisual.

Outros circuitos
O sucesso de "A Bruxa de Blair" comprova o quanto a Internet foi fundamental na promoção do filme. Muito antes de qualquer espectador tê-lo visto, o longa-metragem já era motivo de interesse em inúmeras listas de discussão na Internet e sites ligados ao cinema independente. Trechos do filme foram divulgados na rede, aguçando a curiosidade do público potencial.
As tendências evidenciam que esse panorama aparentemente passivo da Internet (de simples vitrine) é temporário e pode vir a mudar repentinamente, não apenas com os avanços nos padrões de compressão de vídeo digital para transmissão pela rede, mas também devido ao interesse que os formatos de curtíssima duração vêm obtendo dos internautas.
O filme como conceito e não como modelo estandardizado pode existir em vários formatos, graças aos novos meios. "Filmes digitais" podem ser, por exemplo, uma pequena peça fílmica, produzida sob medida para a Internet -veículo, aliás, no qual se encaixam melhor os formatos de curta duração e que não requerem maior imersão por parte do espectador.
Esses trabalhos procuram outras formas de ganhar a atenção do espectador e se constituem como um terreno propício a todo tipo de experimentação, pelo descompromisso que têm com a lógica do mercado -até o momento. Um exemplo disso pode ser encontrado no site sobre cinema independente Blackchair - Independent Exposure Microcinema Screening (www.blackchair.com), onde um manifesto defende o "microcinema".
Os efeitos de estratégias e movimentos "silenciosos" desse tipo, o caráter pouco burocrático da rede mundial de computadores e a disponibilidade de recursos para se trabalhar com baixos orçamentos devem mudar definitivamente o panorama da produção dita "avulsa" ou genuinamente independente de vídeos e filmes.
Os festivais e eventos no exterior há muito vêm detectando a riqueza da confluência e proximidade entre suportes e formatos. Vários sites e distribuidores on line estão disponibilizando trabalhos produzidos com essas características. Entre os mais famosos, estão o FiFi - Festival Internacional de Filmes para Internet (www.internet-film.org), o D-film, que organiza mostras itinerantes de formatos curtos também fora da Internet (www.dfilm.com), além de distribuidores e promotores de filmes digitais como a Atomfilms (www.atomfilms.com) e o iFilm (www.ifilm.net). Muitos desses vídeos não utilizam sequer uma câmera: são produzidos sinteticamente dentro do computador. Em breve, podem também não ter existência física, como a de um rolo de filme ou mesmo de uma fita magnética.

A mudança dos hábitos
Desde o surgimento dos recursos videográficos de registro da imagem, há mais de 30 anos, discute-se a "interferência" das novas tecnologias eletrônicas no cinema -polêmica que remete também ao contexto da introdução do som no cinema ou do surgimento dos primeiros filmes em cores.
Como antes, há ainda muita resistência em aceitar determinadas inovações, como as que são agora proporcionadas pela hibridização dos meios de produção. Mudanças desse tipo demandam reposicionamentos também na esfera da percepção e absorção dos novos estímulos e narrativas que se desenvolvem.
Além desses fatores subjetivos, o que pesa contra uma utilização mais racional dos recursos digitais ou ao menos uma análise mais complexa de suas implicações estéticas diz respeito às práticas de mercado, tais como a qualidade superior da imagem em película, o fato de as TVs valorizarem mais as produções em filme na hora da compra (inclusive porque o custo da produção determina parâmetros para negociações) e a circunstância de os avanços tecnológicos da projeção digital ainda não serem acessíveis à maioria das salas de cinema do mundo.
De qualquer modo, já não se fala mais em especificidade de suportes e já não é relevante a definição de limites entre filme e vídeo, porque tudo se contamina reciprocamente e surgem cada vez mais novas regiões de intersecção e indefinição.
A tecnologia da informação causou mudanças irreversíveis na sociedade, alterando noções de tempo, distância, poder, trabalho e prática social. Por que não aceitar essas mudanças também no terreno da estética e dos procedimentos ligados ao audiovisual?
As imagens digitais estão se tornando um componente inerente a quase todas as áreas da comunicação visual. Outras sensibilidades e formas de percepção tendem a surgir progressivamente nesse processo de consolidação dos novos formatos. Os hábitos se transformam de forma sorrateira. O estranhamento e o incômodo causados pelo arranhamento da narrativa cinematográfica vêm sendo enfrentados sem trauma pelo espectador, que a eles se habituou em boa parte devido ao videoclipe musical. O boom mundial do documentário mostra que histórias podem ser contadas de formas menos glamourosas. Licenças poéticas, metáforas e exploração de texturas da imagem já são mais bem aceitas no circuito convencional de produção de cinema.
Com a tecnologia do vídeo, o cinema ganhou a superfície do plano em detrimento da perda da profundidade de campo. Agora,com o digital, ganha também uma maleabilidade inédita, que possibilita ousadias de linguagem e, quem sabe, a chance de renovar permanentemente os preceitos ditados pelo mercado.
Enfim são mesmo necessários novos valores para se aferir a qualidade estética desses novos formatos. Mas não se pode ignorar que, da mesma forma como o padrão vigente se dissolve em meio ao surgimento de alternativas "espontâneas", estas estão sempre propensas a serem recuperadas pelos modelos dominantes do entretenimento visual.
O meio digital é um lugar turbulento e renovador, no qual mais cedo ou mais tarde cruzarão positivamente todas as diferentes linguagens que lidam com imagens em movimento. Refletir sobre as novas mídias tornou-se fator crucial para todos aqueles que trabalham com essas imagens. Realizadores que planejaram sua carreira em meios estáveis precisam correr contra o tempo, a fim de não serem atropelados pela história. A instabilidade que hoje domina o meio audiovisual é também uma tábua de salvação contra a inércia de vários talentos e cinematografias em todo o mundo.


Lucas Bambozzi é pesquisador de novos meios e linguagens. Realiza filmes, vídeos, CD-ROM's e videoinstalações. Utilizou filme e vídeo na realização de "LoveStories" (1991) e "Ali É um Lugar Que Não Conheço" (1997). Seu curta-metragem "Otto, Eu Sou Um Outro" (1998) utiliza processos digitais em todas as etapas.


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