São Paulo, Domingo, 03 de Outubro de 1999
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LIVROS
Francis Fukuyama projeta um futuro otimista para o homem
História com final feliz

ANTHONY GOTTLIEB
Do "The NYT Book Review"

Francis Fukuyama é um analista que não sai da cama -em termos intelectuais- por nada menos do que o grande painel abrangente da História com "h" maiúsculo. Dez anos atrás este ex-planejador político do Departamento de Estado norte-americano emergiu do anonimato intelectual com um artigo no qual argumentava que a ascensão da democracia liberal constituía a fase final do desenvolvimento político humano. Poucos críticos aceitaram a idéia tal como foi apresentada, mas todo mundo passou a falar dela. Uma exposição mais longa da tese, no livro "O Fim da História e o Último Homem" (Ed. Rocco), de 1992, foi amplamente lida.
O "National Interest", o primeiro periódico a divulgar sua tese apocalíptica, acaba de publicar seu "Second Thoughts" (Outras Reflexões) sobre o assunto, ao lado das opiniões de vários comentaristas pesos-pesados, que vão de E.O. Wilson a Gertrude Himmelfarb. Mas nada indica que Fukuyama, que hoje é professor da cadeira de Omer L. e Nancy Hirst de Política Pública na Universidade George Mason, tenha moderado suas ambições. Longe disso: seu novo livro lançado nos EUA, "The Great Disruption" (A Grande Ruptura, a sair no Brasil no ano que vem), analisa o desenrolar dos fatos sociais e morais na mesma escala grandiosa que vimos em seu primeiro trabalho.
"O Fim da História" afirmava que todas as nações são destinadas a se tornar democracias liberais e que, quando o fizerem, a história vai acabar, porque lhe vai faltar combustível. Assim será, segundo Fukuyama, porque a história é uma sequência de lutas pelo domínio, lutas essas que são movidas pelo desejo humano de reconhecimento -e esse desejo é satisfeito, necessariamente, nas democracias liberais. Esse quadro portentoso, milenar da história como avanço facilmente explicável em direção a uma conclusão predeterminada, tem a marca de Hegel impressa sobre ela.
De fato, a tese de Fukuyama foi defendida pela primeira vez numa série influente de palestras sobre Hegel dadas em Paris, no final dos anos 1930, por Alexandre Kojève, um assessor russo do Ministério francês da Economia. Kojève não deixou muito claro qual seria a data exata dessa conclusão inevitável, mas em alguns momentos sugeriu que ela já teria acontecido no início do século 19.
No final de seu novo livro, Fukuyama reafirma sua tese de que a história "parece ser progressiva e direcional" no campo político e econômico. Agora, porém, afirma que essa máxima não é necessariamente verdadeira no que diz respeito à "esfera social e moral". O comportamento moral das sociedades seria cíclico, com picos (como a era vitoriana) e vales (como a década de 1980). Apesar disso, vê motivos de otimismo e conclui falando, em tom esperançoso, sobre o "rumo ascendente da seta da História".
A "Grande Ruptura" mencionada no título do livro diz respeito à deterioração das condições sociais na maior parte do mundo industrializado entre meados dos anos 60 e o início dos anos 90, conforme medida por (entre outras coisas) índices crescentes de criminalidade, divórcio e nascimento de filhos ilegítimos e taxas decrescentes de fertilidade, confiança pessoal e confiança nas instituições sociais. Para Fukuyama, quando tantos indicadores sociais apresentam modificações dramáticas mais ou menos concomitantes é porque alguma coisa importante está acontecendo, algo que pede uma explicação abrangente.
A culpa, para ele, recai sobre a transição à economia pós-industrial ou à era da informática. Essa transição, afirma, leva ao esgotamento do "capital social", com consequências maléficas que ele mapeia de maneira meticulosa. Seja o que for que se pense sobre suas teorias, a reportagem cuidadosa que ele faz de uma ampla gama de dados sociais -e sua transposição crítica das diversas explicações que já foram aventadas para eles- fazem deste livro uma obra útil.
Mas será que o fato de o Japão e a Coréia do Sul terem em grande medida escapado da Grande Ruptura -apesar de terem sofrido as transformações econômicas que, na visão do autor, a provocaram em outras partes do mundo- não constitui um grande obstáculo à sua teoria? Os dados que ele apresenta contêm várias anomalias menores, como o fato de que os índices de divórcio nos EUA vêm caindo desde a década de 80. Igualmente desconcertante é o fato de que ele caracteriza a era da informática ou economia pós-industrial de maneira extremamente vaga e pouco convincente.
O desenvolvimento da pílula anticoncepcional, o aumento da longevidade e a cultura do individualismo, por exemplo, são todos citados, de forma plausível, como fatores que contribuíram para a Grande Ruptura. Apesar disso, nenhum deles pode ser visto como efeito necessário ou característica intrínseca da transição para uma economia informatizada. O que parece se impor aqui é a tendência à generalização excessiva da história, ao estilo hegeliano: Fukuyama tende a enxergar cada fato simultâneo como manifestação de um fenômeno único.
Há problemas, também, em seu conceito de capital social (que ele define como o cabedal de valores comuns à sociedade e que seria manifestado principalmente por meio da confiança, tema de um livro anterior). Quando introduz a idéia, Fukuyama afirma que o capital social é um recurso chave a ser acompanhado, porque dele depende o sucesso econômico. Mas essa premissa se coaduna mal com sua tese de que a Grande Ruptura sofreu uma escassez de capital social, já que esse período como um todo foi marcado por forte crescimento econômico. Ou o capital social não é tão importante quanto ele afirma que é, ou então ele não se reduziu muito durante a Grande Ruptura. Fica a impressão de que o conceito é muito vago e sem sentido.
Depois de descrever e analisar o mal-estar do período entre meados dos anos 60 e início dos anos 90, Fukuyama toma distância, na segunda parte de seu livro, a fim de analisar o que chama de "a genealogia da moral" -um título nietzscheano para uma explicação nada nietzscheana da ordem social. Embora esse passeio pela teoria dos games, pela psicologia da evolução e pelo campo da ética não apresente grande novidade, talvez seja a parte mais convincente do livro. Fukuyama argumenta que "os seres humanos sempre criam regras morais pelas quais se pautar, em parte porque a natureza os fez assim e em parte pela busca de satisfação dos seus próprios interesses".
Isso dito, não é grande surpresa ler que a humanidade já se curou de várias Grandes Rupturas anteriores. Na parte final, Fukuyama ilustra brevemente alguns dos casos -hoje distantes- de recuperação de fases de declínio social e moral, como a restauração Meiji, no Japão, e a era vitoriana no Reino Unido e nos EUA.
E é nesse momento que ele nos revela sua grande surpresa: que nossa Grande Ruptura já está chegando ao fim. Os índices de criminalidade, divórcio e nascimento de filhos ilegítimos começaram a crescer menos na década de 90 e, em alguns países, já começaram a cair. Nos EUA, o índice de criminalidade voltou ao que era antes do início da Grande Ruptura. A porcentagem de dependentes da previdência social está caindo em ritmo quase equivalente. Os níveis de confiança já subiram de maneira significativa, e há indícios de que a cultura destrutiva do individualismo exacerbado esteja chegando ao fim. Para que, então, se fez tanto alarde desses fenômenos nas primeiras centenas de páginas do livro? Como acontece com um romance barato, é difícil deixar de concluir que o final feliz prejudica o livro como um todo.
Esse é um paradoxo para o qual Fukuyama oferece apenas respostas insatisfatórias. Ele insiste que nossa recuperação da Grande Ruptura não teve nada de automático. Deve ter razão, estritamente falando. Mas quem, excetuando os hegelianos como ele, acreditava na inevitabilidade da história, para começo de conversa? Fukuyama nos deu fortes motivos para acreditar que a recuperação iria acontecer e as provas de que isso de fato aconteceu. Não precisamos de seta ascendente da História para perceber a direção em que o vento está soprando.


Anthony Gottlieb é editor executivo da "The Economist" e autor de "Socrates - Philosophy's Martyr" (Sócrates - O Mártir da Filosofia).
Tradução de Clara Allain.

ONDE ENCOMENDAR
"The Great Disruption - Human Nature and the Reconstitution of Social Order" (A Grande Ruptura - A Natureza Humana e a Reconstituição da Ordem Social) , de Francis Fukuyama (The Freed Press, Nova York, 354 págs., US$ 26), pode ser encomendado, em São Paulo, à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 0/xx/11/285-4033) e, no Rio de Janeiro, à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel. 0/xx/21/ 294-5994).


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