|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Dieta moral
O professor de bioética em Princeton Peter Singer fala sobre seu livro "Como Nos Alimentamos", discute a opção pelo vegetarianismo e defende a condenação religiosa da gula
SÉRGIO DÁVILA
DE WASHINGTON
P
ela primeira vez na
história da humanidade, há mais pessoas
obesas do que famintas no mundo. Os acima do peso respondem hoje
por 1 bilhão da população mundial, ante 800 milhões que passam alguma forma de privação
na alimentação. Os cálculos são
do professor Barry Popkin, epidemiologista da nutrição da
Universidade da Carolina do
Norte, nos EUA.
Ser gordo, e não passar fome,
é o principal problema na área
do acadêmico hoje.
A causa são más dietas e sedentarismo, e o "monopólio da
fome" não é mais dos menos favorecidos economicamente
-se espalha igualmente pelas
classes sociais. Popkin se baseia nos números fornecidos
pelos programas de saúde e os
de combate à fome da Organização das Nações Unidas
(ONU). No Brasil, calcula, haveria um mesmo percentual de
indivíduos acima do peso e de
pessoas malnutridas.
Outro estudo adiciona mais
água ao feijão da discussão nutricional do século 21. Em
2005, 12% da população dos
EUA involuntariamente não tiveram acesso a comida por algum período, segundo relatório anual do Departamento da
Agricultura norte-americano
-foram 35 milhões de pessoas
que "experimentaram seguridade alimentar muito baixa".
No ano passado, no país mais
rico e poderoso do mundo e
também no que primeiro registrou uma epidemia de obesidade em sua população, o equivalente à população de duas São
Paulo passou fome por algum
período. Esse "novo paradoxo
nutricional" tem mobilizado
cientistas e filósofos.
Talvez quem mais barulho
vem fazendo nesse campo seja
um filósofo utilitarista australiano de 60 anos que não teme
associar seu nome a temas e
causas polêmicas: Peter Singer.
Ele é o titular da cadeira de
bioética da Universidade de
Princeton, em Nova Jersey,
nos EUA, e foi chamado pela
revista "New Yorker" de "provavelmente o mais controvertido filósofo vivo".
A última vez em que Singer
ganhou o noticiário foi no chamado caso Terri Schiavo, em
2005, em que defendeu o direito do marido da mulher em estado vegetativo de desligar a
máquina que a alimentava -o
que efetivamente aconteceu,
depois de uma briga na Justiça
que envolveu até o então líder
da maioria republicana na Câmara, Tom DeLay.
Agora, volta ao assunto da
ética alimentar em novo livro,
"The Way We Eat - Why Our
Food Choices Matter" (Como
Nos Alimentamos - Por Que
Nossas Escolhas Alimentares
Importam, Rodale Books, 288
págs., US$ 25,95/R$ 56) -escrito em parceria com Jim Mason-, em que defende que sejam aplicados cinco princípios
éticos para uma escolha consciente na hora das refeições:
transparência, equilíbrio, humanidade, responsabilidade
social e necessidade.
Singer conversou com a Folha por telefone de seu escritório em Princeton sobre se há
ética na obesidade, por que razão é "melhor" ser vegetariano
e até sobre a defesa do "revival"
do conceito religioso de que a
gula é ruim.
FOLHA - É mais ético ser vegetariano do que onívoro?
PETER SINGER - Em geral, sim.
Ser vegetariano evita participação em práticas cruéis com animais e também geralmente
tem um impacto menor no ambiente do que comer carne ou
outro produto animal.
FOLHA - Mas como ser ético com a
alimentação no dia-a-dia?
SINGER - Em primeiro lugar, há
muitas possibilidades diferentes que as pessoas podem escolher, umas mais éticas do que
outras. Um dos pontos que nós
defendemos muito fortemente
no livro é que você não tem de
ser vegetariano para fazer escolhas éticas razoáveis.
Você pode dizer: "Eu vou evitar produtos de "fábricas de carne", mas ainda vou comer alguns produtos animais, mas garantir que venham de fazendas
orgânicas sustentáveis". Isso já
é dar um passo ético importante. Não será tão grande quanto
ser vegetariano, mas ainda assim é um grande passo ético.
Essa é a primeira coisa.
A segunda é: não é tão difícil
ser vegetariano, pelo menos se
você vive numa cidade ou numa
sociedade em que há várias escolhas alimentares.
É claro que será difícil para
algumas pessoas em certas circunstâncias -se você vive de
caça, se é um esquimó ou um
aborígene australiano ou não
tem muitas escolhas alimentares, seria compreensível-,
mas, para aqueles que entram
num supermercado e compram
grande variedade de comidas,
não é tão difícil quanto as pessoas pensam.
FOLHA - O sr. defende que é menos
ético comprar alimentos vindos de
outros lugares que não aquele em
que se vive?
SINGER - Nem sempre. É mais
complicado do que as pessoas
pensam. Às vezes você pode
comprar comida produzida localmente, mas que pode ter sido produzida de maneira a prejudicar o ambiente.
Por exemplo: as pessoas nos
EUA compram alimentos locais que usam muito combustível fóssil para serem produzidos; se comprarmos alimento
importado, mesmo que tenha
levado alguns anos para a viagem, pode ser que ele tenha
causado um impacto ambiental
menor ao ambiente.
Especialmente se tiver chegado aos EUA por navio. Há
grande diferença entre alimentos exportados por navio ou por
avião. Alimentos transportados
por avião não são "friendly" para o ambiente. Mas, por navio,
não tenho muitos problemas
com a importação. E isso pode
ajudar países em desenvolvimento, o que também é uma
boa coisa a fazer.
FOLHA - Sendo de um país em desenvolvimento, tenho de perguntar:
como é possível balancear ética alimentar e fome?
SINGER - Você tem de priorizar
a prevenção do sofrimento terrível que está envolvido na fome. Se você está numa posição
em que suas escolhas alimentares vão ajudar a evitar a fome
ou, de outra maneira, outras
pessoas não comerão por suas
escolhas alimentares, então é o
que você deveria fazer.
FOLHA - Michael Pollan diz em seu
livro "Omnivore's Dilemma" (O Dilema do Onívoro) que, se todo o mundo se tornasse vegetariano, as vacas
seriam extintas e que existe um propósito em havermos domesticado
alguns animais.
SINGER - Acho que não necessariamente elas seriam extintas...
Temos vários animais domésticos que não foram extintos e
que não usamos como alimento. Criamos reservas, onde podem viver sua vida natural.
Poderíamos fazer o mesmo
com vacas, se escolhêssemos
fazer isso. Deixá-las viver a vida
delas. Em vez de tirar os bezerros da convivência delas, que é
o que fazemos quando produzimos leite, deixaremos os bezerros crescendo com elas,
de uma maneira normal, uma
vida melhor para as vacas e os
bezerros.
Esse é o jeito que escolhemos
para viver, não estamos presos
a uma situação na qual, se não
tivermos vacas produzindo leite comercialmente, não haverá
vacas. Essa é a escolha que escolhemos fazer. Pode não haver
tantas, mas isso pode acabar
sendo melhor para o ambiente,
de qualquer maneira.
FOLHA - O sr. escreveu sobre a ética
da obesidade e sugere que revivamos o conceito bíblico de que gula é
algo ruim. Pode explicar melhor?
SINGER - Eu acho que nós tendemos a deixar de lado as visões
tradicionais, de que as pessoas
não deveriam simplesmente
obedecer a seus apetites, pelo
menos naquilo que diz respeito
à alimentação.
É interessante notar que, pelo menos no campo religioso, a
igreja ainda nos diz que devemos controlar pelo menos nossos apetites sexuais, mas parece ter abandonado a visão de
que devemos abandonar nosso
apetite pela comida.
O resultado pode ser visto todos os dias em todas as grandes
cidades norte-americanas: há
pessoas bastante obesas e muita gente que está acima do peso.
Isso não é ruim apenas para a
saúde deles, é ruim para o ambiente, porque, de novo, mais
comida tem de ser produzida,
mais combustível fóssil é consumido.
Portanto, acho que seria útil
ter essa idéia de que não deveríamos pegar mais do que precisamos. E que, se o fizéssemos,
seria uma falta de respeito pelos outros e uma falta de respeito pelo ambiente.
Não estamos realizando partilha com aqueles que necessitam quando se tem uma parte
do mundo que luta seriamente
contra a obesidade e outra que
não tem o suficiente para comer. Isso nos mostra que há algo muito, muito errado.
FOLHA - E plantas ou animais modificados geneticamente, como o
chester? São práticas éticas?
SINGER - Devemos ter cuidado
aqui. Não são necessariamente
não-éticos em si, mas acho que
há um risco real de que venhamos a criar fazendas que levem
a um desastre ecológico, se simplesmente permitirmos que sejam usados de modo amplo
sem uma supervisão estrita.
FOLHA - E quanto aos animais que
vivem em espaços minúsculos e não
podem andar?
SINGER - Isso é ainda mais sério, porque caracteriza crueldade animal. Há casos em que
criamos animais que sofrem
por conta disso. Acho que é o
caso de, virtualmente, todos os
frangos hoje. Eles têm de comer tão rápido que suas pernas
não podem aguentá-los. É o
mesmo com as poedeiras, que
estão o tempo todo famintas.
Nós levamos sofrimento exótico ao mundo animal, e acho
que isso é errado.
FOLHA - Comida orgânica é necessariamente mais ética?
SINGER - Falando em termos
gerais, sim. É menos provável
que prejudique o ambiente,
porque é produzida de maneira
que não usa fertilizantes, herbicidas e pesticidas, põe mais matéria orgânica no solo, o que é
melhor para o o aquecimento
global, inclui biodiversidade.
Está se tornando mais produtiva e os custos estão caindo.
E são culturas mais éticas.
FOLHA - O sr. fez muitas pesquisas
para o livro. O que o chocou mais?
SINGER - Várias coisas. O fato
de que os perus produzidos nos
EUA para o Dia de Ação de Graças têm peitos tão grandes que
mal conseguem respirar, de
modo que têm todos de ser inseminados artificialmente -isso é chocante.
Mas também a quantidade de
combustível fóssil que é consumido por produtos de fazendas.
Os americanos poderiam economizar tanto combustível e
emitir tão menos gás carbônico
se evoluíssem de uma dieta que
é altamente baseada em fazendas industriais...
E também as condições gerais das fazendas industriais. Já
havia lido sobre elas, mas vê-las
é diferente. É degradante e chocante pensar que animais como
porcos são mantidos em gaiolas
em que não podem se mexer, e
isso acontece com milhões e
milhões de porcos neste exato
momento.
FOLHA - De acordo com sua teoria
geral de ética, aborto e eutanásia
são atos justificáveis, já que, no momento dessas ações, não haveria vida humana envolvida. Pode-se criticá-lo por se preocupar demais com
os direitos dos animais e nem tanto
com os dos seres humanos. Como o
sr. responde a isso?
SINGER - Em primeiro lugar,
quero fazer uma pequena correção. Você tem razão, eu defendo o aborto e a eutanásia,
mas não é porque eu ache que
não haja vida humana envolvida. No aborto, eu acho que é
uma vida humana, mas acho
que não é uma vida humana
que esteja consciente ou que
perceba o mundo ao seu redor
-pelo menos não no momento
em que a vasta maioria dos
abortos é feita.
É por isso que acho que o fato
de ser um ser humano seja relevante, mas, nesse caso, é a morte de um ser humano que não
pode sentir nada e que não tem
esperanças ou questões sobre
sua vida.
Quanto à eutanásia, depende
do caso de que falamos, se foi
pedida ou não. De qualquer
maneira, você não está tirando
a vida de alguém que quer continuar vivendo.
Não acho que eu dê um peso
maior e injustificado aos direitos dos animais. Acho que, em
ambos os casos, sou movido pelo desejo de diminuir o sofrimento. Em toda a nossa entrevista, eu não disse em nenhum
momento que as pessoas deveriam se tornar vegetarianas
porque é errado matar animais,
mas, sim, que o sistema comercial está arruinando e causando
muito sofrimento aos animais.
Minha preocupação em
apoiar a eutanásia e o aborto
em algumas circunstâncias é
para reduzir o sofrimento. É a
mesma questão em relação aos
animais de fazendas industriais. Portanto, não acho que
seja o caso de preferir animais a
humanos...
É só olhar para ambas as situações e dizer: "Por que temos
de ter todo esse sofrimento que
pode ser evitado?".
FOLHA - Nos EUA de hoje, é difícil
pensar do modo como o sr. pensa?
SINGER - É mais difícil ser efetivo, mas espero que as coisas
mudem e comecem a ir para
outra direção. Assim poderemos ter uma discussão produtiva dessas questões.
FOLHA - O que levou um filósofo
utilitarista como o senhor a se preocupar com questões alimentares?
SINGER - Porque a produção de
alimento é a maneira pela qual
os seres humanos mais afetam
diretamente o planeta. É a agricultura o que mais transforma
a superfície da Terra, mais do
que qualquer outra atividade.
Afeta um grande número de seres, talvez 50 bilhões de animais por ano, é um sofrimento
inacreditável que poderia ser
reduzido.
Então, acho que essa é uma
questão ética com que um utilitarista pode lidar, como qualquer outra.
FOLHA - Presumo que o sr. ainda
seja vegetariano, certo?
SINGER - Sim, não radical, porque não creio que seja como
uma religião. Então, às vezes
como alimentos vegetarianos
que tenham produtos animais.
Mas, essencialmente, sim, sou
vegetariano.
ONDE ENCOMENDAR - Livros em
inglês podem ser encomendados no
site www.amazon.com
Texto Anterior: Bardo inspira centro de pesquisas em Minas Gerais Próximo Texto: Deficiências nutricionais dividem especialistas Índice
|