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Aventuras pela memória
"História Natural da Ditadura" se serve do romanesco para transitar entre Walter Benjamin, Hitler e Fidel
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um memorial das
ditaduras do século 20, recortado
pela lembrança
pessoal, que, a partir da enumeração de dezenas
de fatos marcantes, pensa e repensa circularmente os sentidos que deles se podem extrair.
Mas não um olhar com pretensão de ciência ou filosofia puras; antes, uma percepção contaminada pela própria presença, corpo e alma, dando-lhe a
consistência das coisas vivas.
E, finalmente, a vitalidade da
linguagem romanesca, capaz
de lidar com vozes outras sem
se entregar inteiramente ao
objeto. Eis aqui uma pálida
tentativa de classificar esta fascinante "História Natural da
Ditadura", de Teixeira Coelho.
Numa palavra, um ensaio escrito por um narrador.
Sentindo-se em casa
Quem quer que nos últimos
50 anos tenha transitado pelas
velhas e novas utopias com livros, armas ou pensamentos
vai se sentir em casa -no bom e
no mau sentido- nas páginas
deste livro.
No primeiro momento
("Portbou"), a visita a um monumento sob um vento feroz
em "lugar nenhum" é a deixa
para acompanharmos o filósofo Walter Benjamin tentando ir
da França à Espanha, em 1933,
até que amanhecesse morto
num quarto de hotel.
Em seguida ("Sur"), contamos os mortos da ditadura na
Argentina por meio dos recortes de jornal, sob o título "Nosotros No Sabíamos", caprichosamente colecionados pelo artista plástico León Ferrari.
Na terceira parte ("30"), estamos no Brasil, em 1964, e somos estudantes, jovens e
cheios de planos. Em "Teoria
da Tristeza", as idéias de "sursis" -estado de exceção, medidas provisórias, morte e suicídio- transitam entre a filmografia de Eric Rohmer, os quadros de Turner, Whistler e Monet, os tempos de Salazar, Hitler, Mussolini, Stroessner, Stálin, Fidel, mais o fantasma de
Aldo Moro, a memória do Dops,
e em tudo paira uma consciência narrativa que avança aparentemente sem sistema.
E na última parte, ou "Livro",
como a própria narração classifica os textos, um crítico, sob
um tom entre o irônico e o farsesco, assumindo a "vergonha
de narrar" que é um dos traços
centrais do que se convencionou chamar pós-modernismo,
avalia as quatro partes anteriores como se fossem cinco, o que
inclui a própria crítica como
elemento integral da obra, afirmando uma espécie de geometria ("quincunx" -o narrador é
um erudito) -aliás, já prometida pelas amarrações incidentais que marcam o livro do começo ao fim.
Álbum de fotografias
E o memorial é também um
"álbum de fotografias", como
nas obras do alemão W.G. Sebald (1944-2001), pontuado de
"selos" em preto-e-branco que
funcionam menos como ilustrações e mais como índices do
texto, na sua ostensiva simplicidade.
Um dos tópicos da obra é o
conceito das coincidências, o
que reitera a "estética da coincidência" que parece crescer
hoje na literatura e no cinema,
à falta de sistemas que dêem
conta de nós mesmos. É preciso
atribuir sentido ao império dos
fragmentos, desta vez sem contar com o totalitarismo mental
das grandes interpretações do
mundo.
No esforço desse sentido impossível, a estética ocupa um
espaço único, como se fosse ela
em si uma categoria ética, levando "à conclusão inevitável
de que a tônica é dada sempre
pela estética que, corretamente
desdobrada, conduzirá à ética
adequada".
Entramos aqui quase no território de uma nova utopia, em
que o evento aberto da vida
(território da ética) se funde
com o seu recorte observado
(território da estética), sob a
pressão do "corretamente" e do
"adequado".
O suicídio como o único problema realmente sério da filosofia -a proposta de Albert Camus em "O Mito de Sísifo"- é
outro dos tópicos centrais deste memorial, do mistério de
Benjamin aos mortos todos que
se empilharão no século.
Presença viva
Mas, como frisamos, trata-se
de um narrador, não de um ensaísta, e essa é a chave do livro.
Acompanhamos uma presença viva que, pela circularidade obsessiva das lembranças,
o seu caráter simultâneo e seu
instrumental teórico (também
ele parte integrante da vida),
vai corroendo, nas vísceras dos
fatos, os pressupostos das teleologias políticas que -na via
da Revolução Francesa, da guilhotina, do terror e das maquinações generosamente servidas por sonhos e teorias totalizantes que suspendem o presente em nome da abstração do
futuro- vieram e vêm amontoando cadáveres ao longo da
história.
A idéia de que o "estado de
exceção" tem sido de fato permanente -no Brasil, o narrador frisa, marcado pelo império
das medidas provisórias que
destruíram o Congresso- consubstancia o pessimismo do livro, que será, enfim (agora é o
resenhista quem conclui), uma
libertação, uma reserva vital de
anarquia (no seu sentido etimológico, "sem comando"),
que nos permita respirar.
CRISTOVÃO TEZZA é escritor, autor de "O Fotógrafo" (romance) e "Entre a Prosa e a Poesia
- Bakhtin e o Formalismo Russo" (ensaio), ambos publicados pela Rocco.
HISTÓRIA NATURAL DA DITADURA
Autor: Teixeira Coelho
Editora: Iluminuras (tel. 0/xx/11/
3031-6161)
Quanto: R$ 44 (304 págs.)
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