São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2009

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O ROCK ERROU


CULTUADO MAIS NA EUROPA DO QUE NOS EUA E AUTOR DE POUCOS SUCESSOS "POPULARES", COMO "WALK ON THE WILD SIDE", O COMPOSITOR LOU REED DIZ QUE SE TORNOU UM PERSONAGEM "GROTESCO" AOS OLHOS DA MÍDIA



"As canções perderam impacto. Inclusive as boas. Elas estão em toda parte, são ouvidas em todas as situações, sem força"

France Presse
O cantor compositor Lou Reed, que diz ter "obra suficiente" para poder merecer o Nobel de Literatura, durante show em Madri, na Espanha

DIEGO A. MANRIQUE

Lou Reed emergiu de um período de obscuridade em 1971 com o manto de poeta. Tinha sido expulso de modo ignominioso de seu grupo revolucionário, The Velvet Underground, e se refugiado na casa de seus sofridos pais, em Long Island. Retornou a Manhattan para um recital de letras e poemas ao qual compareceram [o poeta beat] Allen Ginsberg, todo o mundo do jornalismo musical de Nova York e parte do círculo de Andy Warhol [artista plástico e cineasta norte-americano ícone da pop art]. Diante desse público seleto, Lou Reed triunfou e proclamou que nunca voltaria a cantar -que se alegrava de ser finalmente reconhecido como poeta.
Felizmente, ele não demorou a esquecer essa intenção -embora agora esteja em Barcelona para recitar poemas. O compositor participa do projeto Made in Catalunya, pelo qual o Instituto Ramón Llull quer difundir a poesia catalã traduzida ao inglês. Na ocasião desta entrevista, em novembro passado, Lou Reed está carregando sozinho o peso do recital, que congrega uma pequena multidão no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona.

 

PERGUNTA - Você se sente à vontade nesses eventos? Quero dizer, em comparação com a tensão de trabalhar com uma banda?
LOU REED
- É mais tranquilo. Você pode expressar nuances que se perdem quando você está cercado de instrumentação. Se tive tempo de preparar a leitura e se o som está em ordem, não há medo no palco. Além disso, para mim é como voltar para casa. Eu sempre falei que tentava levar uma sensibilidade literária ao rock and roll, mas ninguém me entendia. Ainda não estou certo de que me entendam.

PERGUNTA - Quem foram seus mestres literários?
REED
- Mestre autêntico foi (o poeta) Delmore Schwartz, que me deu aulas na Universidade de Syracuse [em Nova York]. Ele me ensinou muito sobre a autoexigência e as armadilhas que espreitam um escritor -mas odiava o rock and roll. Em termos de estilo, aprendi mais com Raymond Chandler [escritor americano]. Seus argumentos não são perfeitos, mas ele escrevia romances como um poeta.

PERGUNTA - Vamos mergulhar na fantasia. Você se imagina como candidato ao Nobel de Literatura?
REED
- (Olhar de incredulidade). A pergunta é se acho possível? Não, Bob Dylan já preenche a cota de candidatos no setor dos cantores/ compositores judeus. Se acho que mereço? Tenho obra suficiente.
[Ele acaricia um livro que está sobre a mesa. Lou Reed insistiu que sua apresentação -que faz parte do festival literário Kosmopolis- coincidisse com o lançamento de "Travessa el foc: recull de lletres" (Editorial Empùries), primorosa edição bilíngue (inglês e catalão) de sua obra, abrangendo até suas canções mais recentes.
A parte interna do livro chama a atenção: o responsável pela arte aproveitou a fundo a oportunidade para jogar com as possibilidades tipográficas. Lou está satisfeito com o resultado: "Me encanta que esta edição atualizada saia na Catalunha antes que do nos EUA. A poesia catalã me deixa maravilhado -a quantidade de grandes autores em um país tão pequeno."]

PERGUNTA - Você é um leitor atento de poesia?
REED
- Agora não sou leitor de nada! Perdi meu reprodutor de livros eletrônicos. Você sabe, uma coisa na qual você pode colocar centenas de livros. É um invento perfeito para mim, já que viajo muito de avião. Mas já é a segunda vez que o esqueço num avião, e nunca o devolvem! Apesar de eu ter me dado ao trabalho de colocar uma etiqueta com meu nome e um telefone de contato. [Ele parece espantado por alguém ignorar sua vontade. O fato é que Lou Reed age de modo imperial. Ao longo da conversa, surgem nomes de escritores e ele quer, precisa, exige que lhe consigam seus livros. Por exemplo, uma tradução para o inglês de "Coplas a La muerte de Su Padre" [Versos Sobre a Morte de seu Pai], de Jorge Manrique ("um poeta do século 15 que morreu no ataque a um castelo? Isso me interessa muito!"). Acaba se conformando com um "Dom Quixote" em inglês. Também há um momento em que, falando do romance negro, surge o nome de James Lee Burke, autor que retrata as profundezas sórdidas da Louisiana, nos EUA.]
REED - As pessoas o conhecem aqui? Me identifico muito com seu personagem principal, esse ex-policial alcoólatra que é obrigado a enfrentar o mal. Acho que preciso ler alguma coisa dele [Burke] esta noite. Se não houver o último livro dele, aceito "The Neon Rain" [A Chuva de Neon] ou "Cadillac Jukebox". Posso mandar alguém buscar. Há algum lugar em Barcelona onde tenham livros do Burke em inglês? [Estou a ponto de lhe dizer que existe uma livraria especializada, mas me calo a tempo. Lou vem martirizando as duas assistentes que o acompanham nesta viagem. Todo jornalista musical que se preze conhece anedotas sobre as atitudes bruscas, as manias, os melindres e a paranoia que caracterizam Lou Reed. Parece estar obcecado em controlar sua imagem. Exige examinar as fotos feitas dele, insistindo que sejam eliminadas as que não o favorecem. Trabalho difícil: o tempo foi cruel com ele -anos demais abusando do álcool e de anfetaminas (não de heroína, como acreditavam muitos).]

PERGUNTA - É uma pena que suas "obras completas" incluam tão pouca prosa. Estou pensando no seu texto de 1970, em que reflete sobre as mortes de Jimi Hendrix, Brian Epstein, Brian Jones e Janis Joplin.
REED
- Você gostou? Naquela época eu precisava de dinheiro. Eu trabalhava com meu pai (contador), e ele não era muito generoso. Durante um momento de fraqueza, pensei até mesmo em virar jornalista profissional. Eu não teria aguentado. Lembro que me encarregaram de escrever um texto sobre Jim Morrison (vocalista do The Doors, morto em 1971). "Até onde se chega", pensei.

PERGUNTA - Você não gostava do The Doors?
REED
- Eram lixo de Los Angeles, lixo pretensioso. E Jim Morrison era um babaca.

PERGUNTA - Você não acha que, como você com o Velvet Underground, Jim Morrison rompeu os esquemas do que se cantava no rock?
REED
- Ele não fazia mais do que reciclar letras do blues. Se fazia passar por deus sexual. Ele não teria resistido uma noite na Factory [Lou Reed se refere ao estúdio de Andy Warhol em Nova York nos anos 1960, ponto de encontro de muitas almas perdidas dedicadas a fazer experimentos com drogas e explorar sua identidade sexual. Mas Lou não quer se aprofundar naqueles anos. Levanta-se e vai para o seu quarto. Reaparece usando a jaqueta -de couro negro, é claro- mais gasta que se poderia ver numa cidade tão fashion quanto Barcelona. Ele retorna agressivo. Cheira o jornalista e lança uma acusação: "Alguém andou fumando. Não gosto disso. Estou sem fumar há cinco anos, mas o cheiro do tabaco ainda me desperta desejos." A última coisa que eu imaginaria seria ouvir Lou Reed protestando contra um vício tão comparativamente inocente.]
REED - Inocente? Um maço de cigarros equivale a um raio-X. Pense nisso!

PERGUNTA - Eu me lembro de uma entrevista com você em 1986, em Atlanta (EUA), quando estava tentando parar de fumar e estava subindo pelas paredes; me contou que tinha tentado todos os métodos, desde a hipnose até a acupuntura.
REED
- Consegui, finalmente, com umas ervas chinesas. Fazem para você uma beberagem de sabor horrível, chamam aquilo de chá do equilíbrio. Ele restitui seu equilíbrio quando você sente o desejo da nicotina. Eu queria lhe dizer o nome original. Mas, infelizmente, sou zero à esquerda em chinês. [Mas ele é fanático pela cultura chinesa: pratica tai chi chuan e já convidou um mestre dessa arte para subir ao palco.]
REED - Comecei a praticar tai chi devido a seus valores marciais. Em Nova York é preciso estar preparado para brigar por qualquer bobagem. [Vem então uma pergunta mal-intencionada, sobre se aceitaria um trabalho para o governo chinês. Lou integra o contingente ruidoso dos roqueiros que defendem a causa do Dalai Lama. Muitos deles parecem ignorar as realidades geopolíticas, como a história tétrica do Tibete como sociedade feudal, marcada por guerras civis e o ódio enrustido aos monges.]
REED - Que estupidez. Não creio que a China queira algo comigo.

PERGUNTA - Não pense isso: a China se interessa por tudo o que possa sugerir modernidade. Agora mesmo há grupos em Pequim que soam como o Velvet Underground.
REED
- Bem... Espero que minha música lhes sirva de exemplo de dissidência, como acontecia na Europa comunista. [Lou Reed adora mencionar seus amigos ilustres. Ele interrompe a conversa quando recebe uma ligação do diretor Wim Wenders. Durante alguns minutos, até sua voz se modifica, ficando doce e obsequiosa. Alguns dos presentes olham para ele, pasmos: a impressão que se tem é que o ogro se transformou em princesa. Convém recordar um pequeno segredo: Lou Reed é infinitamente mais respeitado e reconhecido na Europa do que nos EUA. Poderíamos descrevê-lo como desconhecido dos cidadãos comuns de seu próprio país. Chegou ao auge da popularidade com "Walk on the Wild Side", de seu álbum "Transformer" (1972), carinhosamente produzido por David Bowie. Tirando esse momento mágico, seus discos carrancudos nunca saíram do circuito do rock.]

PERGUNTA - Você acha que a indústria americana de discos entendeu quem era realmente Lou Reed?
REED
- (Sarcástico) Não gosto de falar mal dos mortos. A indústria do disco está morta.

PERGUNTA - Mas sempre houve quem o apoiasse. A RCA [Radio Corporation of America] inclusive lançou um trabalho tão indigesto quanto o disco duplo "Metal Machine Music", em 1975.
REED
- Não sabiam o que fazer com ele. Eles o editaram para enterrá-lo. No ano passado, fiz um disco instrumental muito mais suave, "Hudson River Wind Meditations", e nenhuma gravadora grande quis tocar nele. Apenas um selo pequeno, quase sem distribuição. Foi pensado para acompanhar exercícios de tai chi e sessões de meditação. Acho que poucas vezes se gravou o vento com tanto realismo quanto nesse disco. E eu o fiz sozinho, em minha casa.

PERGUNTA - Mas você tem canções novas?
REED
- A música que mais me interessa hoje é instrumental, improvisada, totalmente livre. Algumas semanas atrás eu estive tocando em Los Angeles com Ulrich Krieger (instrumentista alemão que transcreveu "Metal Machine Music" para uma orquestra de câmara) e Sarth Calhoun, um engenheiro que manipula nossos sons. Foi muito instigante: boa parte do público foi saindo (riso seco). Mas muitos aguentaram. E foram duas horas!

PERGUNTA - O fato de torturar seus ouvintes lhe dá prazer?
REED
- Não é isso. Adoro frustrar as expectativas desse público que procura o artista decadente. Você sabe o que Frank Sinatra dizia? Que, se um décimo das coisas que falavam a seu respeito fosse verdade, ele teria terminado num zoológico. Comigo é a mesma coisa. Tenho 65 anos e ainda posso romper barreiras sonoras.

PERGUNTA - Ultimamente você anda mais interessado no som puro do que nas canções?
REED
- As canções perderam impacto. Inclusive as boas. Elas estão em toda parte, são ouvidas em todas as situações, mas muito baixinho, sem força. Quero reivindicar o poder transformador do som em alto volume, aquele que o agarra pelo estômago e tira seu fôlego. Som saindo de bons amplificadores, não dos fones de ouvido ridículos que as pessoas usam. [Bem, as pessoas e o próprio Lou Reed. Ele mostra, orgulhoso, um reprodutor minúsculo no qual leva armazenados os programas -incluindo as capas dos discos originais- que faz para a rádio por satélite Sirius.]
REED - Chama-se "New York Shuffle" e consiste em oferecer música muito eclética. Há grupos atuais, como Kings of Leon ou Queens of the Stone Age, mas também guitarristas dos anos 1930 e os quartetos de gospel que Elvis Presley ouvia. Ou a música eletrônica que produziam nos laboratórios da BBC para acompanhar histórias de ficção científica.

PERGUNTA - Você se inspirou no "Time Theme Radio Hour", o programa apresentado por Bob Dylan?
REED
- Você está de brincadeira? Dylan nunca se atreveria a colocar Ornette Coleman (saxofonista de free jazz), que é um dos meus heróis. [O entrevistador é obrigado a conviver com os nervos de Lou. E não falo apenas do tremor de suas mãos: ele salta de um assunto para o outro, como se concentrar-se o entediasse. De modo geral, comporta-se como homem inquieto e curioso. Do terraço de seu hotel, esquadrinha a paisagem urbana de Barcelona. Pergunta sobre os prédios que estão sendo restaurados, quer saber os horários de abertura dos museus. Afirma que ainda se recorda da sua primeira visita à cidade: "No final da apresentação, eu queria dar um bis. Mas dois militares se aproximaram e me proibiram. Como eu insistia, sacaram uma pistola. Então fiquei quieto." Consultado a respeito, o promoter que o levou à Espanha duvida que algo semelhante tenha acontecido: "Talvez ele tenha se confundido com a Itália; nos anos 1960 costumava haver muita violência nos concertos. De qualquer maneira, a polícia prefere falar com os organizadores de um concerto, não com o artista." Não é fácil confirmar dados com ele. Muda o rumo da prosa constantemente. Diz estar farto de perguntas sobre política e, em seguida, começa a discorrer sobre as diferenças morais entre a Guerra do Afeganistão e a invasão do Iraque.]
REED - Gosto de informações baseadas na realidade. Tenho conhecidos que se refugiam em teorias conspiratórias; eu mesmo já passei dias pesquisando na internet, mas você acaba numa indeterminação que o leva à loucura. Finalmente, minha conclusão é que a administração Bush não teria sido suficientemente inteligente para arquitetar algo como o 11 de Setembro -o que diria mantê-lo em segredo. [Conversar sobre um assunto qualquer com ele também tem seus encantos. Ele demonstra sede por informação e menciona, por exemplo, os dados de "Operation Lune", o falso documentário em que o diretor francês William Karel desenvolvia -com a cumplicidade de convidados famosos- o rumor de que a Nasa não teria chegado à Lua e que as cenas que vimos teriam sido feitas por Stanley Kubrick num estúdio britânico. "Espere até eu contar isso a [sua mulher] Laurie [Anderson] -ela vai adorar."]

PERGUNTA - Você reconstruiu seu personagem público. Nos anos 1970 e 1980, era o "rock and roll animal" (era esse o título de seu primeiro disco gravado ao vivo, em 1974). E agora o vemos muito à vontade em eventos de alta cultura.
REED
- Meu personagem se converteu em algo grotesco. Estou pensando em algumas histórias em quadrinhos editadas na Espanha, em que eu era uma espécie de Conde Drácula do rock. Minha vida não era tão ... interessante assim (risos). Acho divertido enganar os estereótipos, tratar com políticos ou representantes do mundo acadêmico. [Suas assistentes começam a se mostrar inquietas. O evento de divulgação começou com muito atraso, e já passou da hora razoável de comer. Lou Reed sempre foi um tanto quanto esnobe em matéria de alimentação: fazia dietas insólitas, aconselhado por nutricionistas misteriosos. Mas hoje ele age como qualquer turista americano urgentemente necessitado de combustível: pede um hambúrguer.]

DIEGO ALFREDO MANRIQUE é jornalista e crítico musical. A íntegra deste texto foi publicada no "El País".

Tradução de Clara Allain.



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