São Paulo, domingo, 04 de janeiro de 2009

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Reforma sem rigor


Carente de coerência, Novo Acordo Ortográfico tira Brasil de posição marginal

MARIA HELENA DE M. NEVES
ESPECIAL PARA A FOLHA

N este período de efervescência do processo de implantação do Novo Acordo Ortográfico, a pergunta inicial que se recebe é sempre a seguinte: "Você concorda com o acordo?". Ou seja: "Era ele necessário?". Prefiro responder alterando a pergunta: sim, era necessário um acordo, não exatamente este. Surgem, por aí, duas questões, que tratarei pela ordem: 1) qual era a situação do regramento ortográfico nos países de língua oficial portuguesa, e 2) qual é a avaliação de mérito do novo acordo. Contra o acordo, um argumento forte é o que se centra no fato de que outros países vivem comunidades de língua oficial sem necessidade de regramento ortográfico comum, ficando abrigadas pacificamente grafias diferentes nos diferentes países, e até dentro de um mesmo país.
É assim que o Cambridge International Dictionary registra "babysit", enquanto o dicionário Collins-Cobuild registra "baby-sit", e, para o verbete "baby talk", ainda traz o registro "also spelled with a hyphen" [também escrito com um hífen].
Ora, não era essa situação consentida de "livre escolha" que ocorria entre nós. Vivíamos, na comunidade de língua oficial portuguesa, uma situação histórica peculiar: Brasil e Portugal tinham, cada um, seu regramento ortográfico particular e oficializado. Além disso, exibiam uma história frustrada de tentativas de acordo. Se não, vejamos.
No começo da história de uma busca de fixação ortográfica, os tempos eram outros. Quando, em 1904, Portugal fez sua tentativa nesse sentido, nada sinalizava alguma atenção à produção linguística do Brasil, ainda sem a mínima padronização de linguagem e sem representatividade político-cultural. O texto português referia-se apenas à "anarquia ortográfica" existente em Portugal.

Sem ortografia
O Brasil, por sua vez, na mesma época (1907), cuidou de uma uniformização interna da grafia, com um projeto que também denunciava uma "anarquia ortográfica" brasileira. Longe estava qualquer propósito de unificação entre Brasil e Portugal, pelo contrário, o texto declarava não ser possível uma ortografia "conciliadora", dada a grande diferença entre as duas pronúncias.
Mais do que isso, em "desabafo", o texto dizia que nem haveria razão para que 20 milhões de brasileiros se dobrassem aos hábitos de prosódia de 5 milhões de portugueses. Veementemente criticado, o projeto não vingou.
Em 1911, Portugal fez uma reforma ortográfica, e a situação passou a ser esta: Portugal tinha uma ortografia, e o Brasil, não. Até que, em 1915, o Brasil deu o primeiro passo na tentativa de uma unificação, harmonizando sua reforma de 1907 com a portuguesa de 1911. Mas também não foi aí que a unificação chegou. Só em 1931 se firmaram as "bases" de um primeiro acordo entre os dois países, mas Portugal elaborou um Vocabulário Ortográfico (1940), e o Brasil elaborou outro (1943), ou seja, permaneceu a divergência.
Ainda em 1943, assinou-se uma Convenção Ortográfica Luso-Brasileira, abalada, porém, já em 1945, quando outra reunião fixou novas "bases", que, entretanto, o Brasil, justificadamente, não ia aceitar: restabeleciam-se, por exemplo, consoantes de simples valor etimológico, como em aflicção, conductor, assumpto, uma reviravolta que os brasileiros não teriam condição de assimilar.
Era esta, pois, a situação (problemática) vigente em 1986, início da definição deste novo acordo: dois acordos assinados em sequência, cada um deles oficializado num país, e, afinal, um desacordo "oficial".
Ora, estamos hoje em um novo palco mundial: além da globalização, assiste-se à ampliação do universo da língua oficial portuguesa para um bloco de novas nações independentes, cujo destino no concerto das nações está por definir-se, mas que representam um contingente a pesar na avaliação da lusofonia. Ora, todos eles, até agora, se regram pela fixação ortográfica de Portugal, o que compõe um cenário estranho, que coloca o Brasil numa situação oficializada de ortografia discrepante daquela dos demais componentes do bloco de países de língua oficial portuguesa. Aí está montada, afinal, a situação inconteste da conveniência de um acordo ortográfico para esse concerto de nações de mesma língua.

Justificativas
O problema é que merecíamos um documento mais preciso, completo, autossustentado e coerente. Não tenho a pura intenção de crítica nas questões de que tratarei a seguir, mas qualquer balanço desse acordo que passa a vigorar há de resultar em cobrança de melhor resolução final.
Algumas regras não têm nenhuma razão ligada ao sistema de representações, pelo contrário -e, por isso, são difíceis de entender-, mas têm sua justificativa na simples finalidade de unificação: por exemplo, a queda (no Brasil) do acento agudo dos ditongos abertos (éi, ói e éu) em palavras paroxítonas (como ideia) atende exclusivamente ao fato de que essas palavras não levavam acento em Portugal. No contraponto, existem casos de mudança do que havia em Portugal, para efeito de unificação com o Brasil: por exemplo, a eliminação daquelas mesmas consoantes "mudas" (simplesmente etimológicas), como em aflição, diretor, batizar. Tudo dentro do que consideraríamos as "regras do jogo": alguém "perde" aqui, mas "ganha" ali.
Outras regras, também unificadoras, têm, além disso, um papel simplificador, por exemplo a eliminação do trema e a eliminação do acento na sequência "oo". Mesmo a decisão de desvincular o uso do hífen das especificidades dos prefixos é simplificadora, mas por aí ingressamos no grande problema desse texto que por mais de 20 anos simplesmente dormiu, ignorado e incontestado, enquanto poderia ter sido submetido ao exame de especialistas, para verificação de seu rigor e completude. No geral, era de esperar que se seguissem mais sistematicamente os princípios declarados, que se desse complementaridade absoluta às medidas e que se atingisse maior precisão e coerência.

Sugestões
Caberia, por exemplo: 1) Conferir sempre rigor às formulações: "[Nas locuções] não se emprega em geral o hífen, salvo algumas exceções já consagradas pelo uso".
2) Não abrigar circularidades: usa-se hífen "nas formações em que o segundo elemento começa por h"; e "o h inicial mantém-se [...] quando numa palavra composta pertence a um elemento que está ligado ao anterior por meio de hífen".
3) Não abrigar contradições: acentuam-se diferentemente pônei e pónei porque "apresentam oscilação de timbre"; mas não se acentua proteico "dado que existe oscilação [...] entre o fechamento e a abertura na sua articulação".
4) Não abrigar incoerências: "Além dos ditongos orais propriamente ditos, os quais são todos decrescentes, admite-se, como é sabido, a existência de ditongos crescentes".
5) Não abrigar enganos: "[O ditongo nasal "uin",] embora se exemplifique numa forma popular como ruim, representa-se sem til nas formas muito e mui, por obediência à tradição".
6) Não extrapolar competências: "Existem [...] verbos em "-iar" [...] que admitem variantes na conjugação: negoceio ou negocio".
7) Não deixar lacunas, como a do uso do hífen com o prefixo re- e com os prefixos terminados em d e b (ad-, ab-, ob-, sob-, sub-).
8) Não deixar zonas totalmente descobertas, como ocorre com o uso do hífen em compostos, caso que, aliás, poderia ter sido resolvido coerentemente com o princípio de abrigo de "duplas grafias". Assim, e finalmente, o que há de criticável, na verdade, não é a medida em si -muito pelo contrário-, nem é este ou aquele acento que se tira ou que se põe, antes diz respeito ao rigor que o conjunto nos fica a dever, aos do lado de cá como aos do lado de lá do Atlântico.

MARIA HELENA DE MOURA NEVES é linguista, professora da Universidade Mackenzie e da Universidade Estadual Paulista. É autora de "Gramática de Usos do Português" (Ed. Unesp).



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