São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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Ponto de fuga

Sons e comoções


Os luxos dos tempos ricos da borracha amazônica viraram mitos na memória; imagina-se Caruso nos teatros de ouros e veludos -ele na verdade não cantou por lá, mas vieram belas companhias

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Um livro, publicado em Belém do Pará, vai buscar, no passado, tesouros muito escondidos. O título é severo: "Cronologia Lírica de Belém". O autor, Márcio Páscoa. Foi editado pela Associação Amigos do Theatro da Paz.
Os luxos e requintes dos tempos ricos da borracha amazônica viraram mitos na memória. Sabe-se dos teatros de Manaus, de Belém, das grandes temporadas líricas. Imagina-se Caruso [1873-1921, tenor italiano] nos teatros de ouros e veludos, com chuvas torrenciais lavando os telhados.
Caruso, na verdade, não cantou por lá. Mas vieram belas companhias. O livro fala de muitos cantores desconhecidos, que não passaram à posteridade. Voltam em fotografias nostálgicas e nas críticas, extraídas dos jornais.
De hábito, em livros sobre a ópera no passado, as informações do texto e das imagens formam andaimes para um edifício que não existe mais: a voz dos cantores.
Mas o amor pela ópera é tão forte que faz milagres. Márcio Páscoa encontrou gravações de vários artistas que cantaram em Belém. Compilou dois CDs, que vêem com o livro.

Fantasmas
Mesmo apaixonados por ópera furiosos e aguerridos não identificarão muitos nomes reunidos no livro de Páscoa. Sinal, por si só, de grande interesse histórico: saber como cantava, não os artistas de exceção, mas a boa média da época.
Quando o CD começa, porém, há um impacto. A reconstituição sonora é uma proeza. Sem chiados, sem achatamentos de agudos, pouquíssima distorção. E uma presença! Mais que um eco do passado: cem anos depois, os cantores estão lá, no meio da sala. É arrepiante e indescritível. O engenheiro de som se chama Odorico Nina Ribeiro. Um mago.
Depois, que cantores! Entre todos, uma Tina Poli Randaccio, Gioconda como muito poucas foram; um Gino Martinez Patti, em "I Pagliacci", Andrea Chénier, "Fausto"; uma Amalia Agostoni, Butterfly com timbre de mel.

Goela
Outro grande livro sobre ópera, também acompanhado de dois CDs: "Enrico Caruso na América do Sul" (Cultura Ed.). Seu autor é György Miklos Böhm, professor na Faculdade de Medicina da USP.
Na juventude foi um concorrente do programa "O Céu É o Limite", que, nos idos de 1950, dava prêmios elevados em dinheiro para quem se dispusesse a responder perguntas sobre um tema qualquer. Ele respondia sobre Caruso. Sua escrita é a mais simpática, fluente e despretensiosa.
Disfarça uma fenomenal pesquisa em vários arquivos do mundo e um conhecimento sem falhas.
O título é modesto e enganador porque o livro, de fato, vai muito além. Com familiaridade, mergulha na ópera daqueles tempos efervescentes. Uma delícia de ler, mesmo para quem não gosta de ópera.
Ou melhor, na verdade um ótimo meio de se iniciar nesses prazeres incomparáveis, porque a análise das interpretações, muito finas, se articula com os discos: as faixas são demonstrativas, excelentes lições de como ouvir ópera.

Dito
"A reação das pessoas quando ouvem ópera pela primeira vez é extrema. Podem amar ou odiar. Se amam, vão amar para sempre. Se não amam, podem aprender a amar, mas a ópera nunca fará parte de suas almas." Frases muito justas, tiradas do filme "Uma Linda Mulher", de Garry Marshall.
Outra referência, para quem quiser coisa mais elevada: Stendhal, grande escritor do século 19, gostava muito de mulheres. Dizia, porém, que nenhuma o obrigaria a percorrer cem léguas para ir vê-la. Um espetáculo de ópera, sim.


jorgecoli@uol.com.br


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