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Julgando Pinochet
O historiador Peter Burke compara
como povos diferentes lidaram com
o tabu da ditadura
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
A morte impediu que
Augusto Pinochet
(1915-2006) fosse
levado a julgamento. Por outro lado,
entretanto, ela pode oferecer
uma oportunidade para que os
chilenos falem sobre suas recordações dolorosas.
Quando visitei o Chile pela
primeira vez, pouco depois de
Patricio Aylwin ter chegado à
Presidência, em 1990, constatei que os chilenos que falavam
do passado o faziam com certa
relutância, como se sentissem
que Pinochet estava ouvindo.
Para romper o tabu e comentar o regime militar, que durou
17 anos, era preciso empregar
meios indiretos, como escrever
romances. Um dos livros cuja
criação o regime estimulou foi
"Noturno do Chile" (2000), de
Roberto Bolaño (1953-2003).
O livro é uma espécie de autobiografia, ou, mais precisamente, uma seqüência de memórias que assombra o protagonista, Sebastián Urrutia Lacroix, numa noite em que ele
está febril, quase delirando, e
na expectativa de morrer.
Urrutia é poeta, crítico, sacerdote e membro do Opus
Dei. Ele apoiou o regime militar, mas não se envolveu com
ele até ser convocado para dar
aulas de marxismo a Pinochet e
alguns de seus colegas. Urrutia
é um observador do regime que
é curiosamente desapegado,
quase inumano.
A parte mais assustadora do
livro descreve como ele descobriu que, no passado, dissidentes do regime eram torturados
no porão da casa que ele visitava com freqüência para participar de um salão literário.
Bolaño disse depois que retratou Urrutia como estranhamente livre do sentimento de
culpa, enquanto "eu, que fui vítima de Pinochet (tendo passado seis dias na prisão), me sinto
culpado por seus crimes, como
alguém que foi seu cúmplice".
Presume-se que ele sentisse
não ter feito o suficiente para
se opor ao regime.
Convite
Ao enxergar Urrutia como
inumano, os leitores são convidados a questionar se eles, também, poderiam ter feito mais
para se opor a Pinochet.
O convite de Bolaño não precisa limitar-se a seus leitores
chilenos. Em outros países,
também, romances e filmes
têm sido eficazes em romper
tabus e trazer memórias reprimidas para a superfície.
Na Alemanha Ocidental,
quando memórias do período
de Hitler foram reprimidas durante décadas, o romance
"How German Is It" (Quão Alemão É, 1980), do emigrado austríaco Walter Abish, provocou
um certo choque ao relatar a
história dos resquícios de um
campo de extermínio encontrados durante a construção de
um supermercado numa pequena cidade da Alemanha.
Na Espanha, romances e filmes discutiram a Guerra Civil
por uma série de maneiras indiretas, tais como as memórias
de uma criança.
No Brasil, o regime militar
não foi representado em romances ou filmes com a freqüência que se poderia esperar
(pelo menos para um estrangeiro como eu), apesar de exceções respeitáveis, desde "Em
Câmara Lenta", de Renato Tapajós, escrito no [presídio do]
Carandiru em 1973 e publicado
durante a ditadura, até o recente "Zuzu Angel", filme de Sérgio
Resende.
Duas das tentativas mais
bem-sucedidas de romper esse
tabu retratam a maneira como
um indivíduo se conscientiza
das atrocidades cometidas por
membros de sua família. O filme argentino "A História Oficial", de Luiz Puenzo, foi lançado em 1985, dois anos após a
restauração do governo civil.
Sua heroína, Alicia, leciona
história numa escola de Buenos Aires, defendendo as interpretações tradicionais da história argentina.
Um encontro
com uma velha amiga a leva a
perceber que mulheres de sua
classe foram torturadas pelo
regime.
Sara, mãe de um dos "desaparecidos", faz com que Alicia se
questione sobre a origem de
sua filha adotiva, Gaby. Quando
a junta militar finalmente está
prestes a cair, Alicia toma consciência de que seu marido foi
um dos torturadores.
O livro "A Hora Azul" (ed.
Objetiva, 2005), do peruano
Alonso Cueto, adota uma estratégia semelhante à de Puenzo.
O protagonista, Adrián Ormache, faz parte da classe média
alta e vive num subúrbio abastado de Lima.
Seu mundo vai ruir com revelações de envolvimento do pai
com atrocidades na campanha
oficial contra o Sendero Luminoso, entre 1980 e 1992.
O romance, que começou
com uma descrição satírica da
vida burguesa limenha, de repente se torna história de investigação, criando um clima
de tensão crescente.
A história é ainda mais convincente pelo fato de descrever
os guerrilheiros não como vítimas inocentes, mas como tão
implacáveis e sádicos quanto os
soldados que os combatiam.
"A Hora Azul" encoraja os
peruanos a lançar um olhar novo sobre sua história recente e,
o resto de nós, a nos recordarmos do preço da chamada
"guerra ao terrorismo".
É claro que seria possível argumentar que Adrián errou ao
abandonar sua carreira e sua
família para descobrir "o que
realmente aconteceu". De fato,
já se argumentou muitas vezes
que, depois do fim de uma guerra civil, a melhor política é de
anistia e de amnésia (as duas
palavras guardam relação entre
si, evidentemente).
No curto prazo isso pode ser
o melhor, para não provocar
ex-governantes militares a tentativas de derrubar o novo regime civil, mas o preço emocional a ser pago é grande.
Cura pela fala
O que aconteceu no Peru, assim como o que aconteceu na
Argentina, no Brasil e no Chile,
causou um trauma coletivo a
famílias e amigos, sem falar nas
próprias vítimas e em alguns
dos perpetradores .
Certamente um trauma desse tipo requer o que Freud descreveu como "a cura da fala".
Essa cura pode assumir a forma
do discurso direto, com pessoas
relatando suas próprias histórias, ou do discurso indireto,
quando um escritor, ator, historiador ou juiz relata a história
em nome deles.
Um meio de reagir ao trauma
poderia ser que os sul-americanos seguissem o exemplo dos
sul-africanos e criassem algo
que estes últimos intitularam
Comissão de Verdade e Reconciliação, exigindo confissões de
todos os implicados na violência, mas que seriam seguidas
por uma espécie de absolvição
ou anistia.
Outra resposta poderia ser
que mais escritores e cineastas
seguissem os exemplos de Bolaño, Cueto, Puenzo e Resende.
Esses não apenas encorajaram
leitores e espectadores a lançar
um novo olhar sobre um passado problemático como também
levantaram as questões fundamentais da culpa e da cumplicidade que a morte de Pinochet
impediu que testemunhas, advogados e juízes tratassem no
tribunal.
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Clara Allain .
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