São Paulo, domingo, 04 de fevereiro de 2007

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Julgando Pinochet

O historiador Peter Burke compara como povos diferentes lidaram com o tabu da ditadura

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

A morte impediu que Augusto Pinochet (1915-2006) fosse levado a julgamento. Por outro lado, entretanto, ela pode oferecer uma oportunidade para que os chilenos falem sobre suas recordações dolorosas.
Quando visitei o Chile pela primeira vez, pouco depois de Patricio Aylwin ter chegado à Presidência, em 1990, constatei que os chilenos que falavam do passado o faziam com certa relutância, como se sentissem que Pinochet estava ouvindo.
Para romper o tabu e comentar o regime militar, que durou 17 anos, era preciso empregar meios indiretos, como escrever romances. Um dos livros cuja criação o regime estimulou foi "Noturno do Chile" (2000), de Roberto Bolaño (1953-2003).
O livro é uma espécie de autobiografia, ou, mais precisamente, uma seqüência de memórias que assombra o protagonista, Sebastián Urrutia Lacroix, numa noite em que ele está febril, quase delirando, e na expectativa de morrer.
Urrutia é poeta, crítico, sacerdote e membro do Opus Dei. Ele apoiou o regime militar, mas não se envolveu com ele até ser convocado para dar aulas de marxismo a Pinochet e alguns de seus colegas. Urrutia é um observador do regime que é curiosamente desapegado, quase inumano.
A parte mais assustadora do livro descreve como ele descobriu que, no passado, dissidentes do regime eram torturados no porão da casa que ele visitava com freqüência para participar de um salão literário. Bolaño disse depois que retratou Urrutia como estranhamente livre do sentimento de culpa, enquanto "eu, que fui vítima de Pinochet (tendo passado seis dias na prisão), me sinto culpado por seus crimes, como alguém que foi seu cúmplice".
Presume-se que ele sentisse não ter feito o suficiente para se opor ao regime.

Convite
Ao enxergar Urrutia como inumano, os leitores são convidados a questionar se eles, também, poderiam ter feito mais para se opor a Pinochet.
O convite de Bolaño não precisa limitar-se a seus leitores chilenos. Em outros países, também, romances e filmes têm sido eficazes em romper tabus e trazer memórias reprimidas para a superfície.
Na Alemanha Ocidental, quando memórias do período de Hitler foram reprimidas durante décadas, o romance "How German Is It" (Quão Alemão É, 1980), do emigrado austríaco Walter Abish, provocou um certo choque ao relatar a história dos resquícios de um campo de extermínio encontrados durante a construção de um supermercado numa pequena cidade da Alemanha.
Na Espanha, romances e filmes discutiram a Guerra Civil por uma série de maneiras indiretas, tais como as memórias de uma criança.
No Brasil, o regime militar não foi representado em romances ou filmes com a freqüência que se poderia esperar (pelo menos para um estrangeiro como eu), apesar de exceções respeitáveis, desde "Em Câmara Lenta", de Renato Tapajós, escrito no [presídio do] Carandiru em 1973 e publicado durante a ditadura, até o recente "Zuzu Angel", filme de Sérgio Resende.
Duas das tentativas mais bem-sucedidas de romper esse tabu retratam a maneira como um indivíduo se conscientiza das atrocidades cometidas por membros de sua família. O filme argentino "A História Oficial", de Luiz Puenzo, foi lançado em 1985, dois anos após a restauração do governo civil.
Sua heroína, Alicia, leciona história numa escola de Buenos Aires, defendendo as interpretações tradicionais da história argentina.
Um encontro com uma velha amiga a leva a perceber que mulheres de sua classe foram torturadas pelo regime.
Sara, mãe de um dos "desaparecidos", faz com que Alicia se questione sobre a origem de sua filha adotiva, Gaby. Quando a junta militar finalmente está prestes a cair, Alicia toma consciência de que seu marido foi um dos torturadores.
O livro "A Hora Azul" (ed. Objetiva, 2005), do peruano Alonso Cueto, adota uma estratégia semelhante à de Puenzo.
O protagonista, Adrián Ormache, faz parte da classe média alta e vive num subúrbio abastado de Lima. Seu mundo vai ruir com revelações de envolvimento do pai com atrocidades na campanha oficial contra o Sendero Luminoso, entre 1980 e 1992.
O romance, que começou com uma descrição satírica da vida burguesa limenha, de repente se torna história de investigação, criando um clima de tensão crescente.
A história é ainda mais convincente pelo fato de descrever os guerrilheiros não como vítimas inocentes, mas como tão implacáveis e sádicos quanto os soldados que os combatiam.
"A Hora Azul" encoraja os peruanos a lançar um olhar novo sobre sua história recente e, o resto de nós, a nos recordarmos do preço da chamada "guerra ao terrorismo".
É claro que seria possível argumentar que Adrián errou ao abandonar sua carreira e sua família para descobrir "o que realmente aconteceu". De fato, já se argumentou muitas vezes que, depois do fim de uma guerra civil, a melhor política é de anistia e de amnésia (as duas palavras guardam relação entre si, evidentemente).
No curto prazo isso pode ser o melhor, para não provocar ex-governantes militares a tentativas de derrubar o novo regime civil, mas o preço emocional a ser pago é grande.

Cura pela fala
O que aconteceu no Peru, assim como o que aconteceu na Argentina, no Brasil e no Chile, causou um trauma coletivo a famílias e amigos, sem falar nas próprias vítimas e em alguns dos perpetradores .
Certamente um trauma desse tipo requer o que Freud descreveu como "a cura da fala". Essa cura pode assumir a forma do discurso direto, com pessoas relatando suas próprias histórias, ou do discurso indireto, quando um escritor, ator, historiador ou juiz relata a história em nome deles.
Um meio de reagir ao trauma poderia ser que os sul-americanos seguissem o exemplo dos sul-africanos e criassem algo que estes últimos intitularam Comissão de Verdade e Reconciliação, exigindo confissões de todos os implicados na violência, mas que seriam seguidas por uma espécie de absolvição ou anistia.
Outra resposta poderia ser que mais escritores e cineastas seguissem os exemplos de Bolaño, Cueto, Puenzo e Resende.
Esses não apenas encorajaram leitores e espectadores a lançar um novo olhar sobre um passado problemático como também levantaram as questões fundamentais da culpa e da cumplicidade que a morte de Pinochet impediu que testemunhas, advogados e juízes tratassem no tribunal.


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (Jorge Zahar). Escreve regularmente na seção "Autores". Tradução de Clara Allain .


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