São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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Ponto de fuga

Visível e invisível

Obedecer ao "certo" exclui a compreensão do que é certo: a própria natureza do certo escapa a quem obedece; Eastwood expõe os princípios que comandam a todos, mas que são exteriores a cada um

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

A Conquista da Honra" e "Cartas de Iwo Jima", filmes dirigidos por Clint Eastwood, formam um díptico. Ambos têm, como núcleo, a montanha que se eleva numa ilha estéril.
No primeiro, ela serve de pedestal. A bandeira vitoriosa dos EUA foi plantada bem no pico. A célebre fotografia dos soldados no esforço de hasteá-la virou uma imagem definitiva na cultura do Ocidente. Ela foi mesmo fundida em bronze e virou um monumento. O diretor se interroga sobre a hiperexposição à mídia, ao imaginário coletivo que se inventa pulsões heróicas, e demonstra o descompasso entre a crença na glória e as contradições humanas que ela encobre.
A ação do segundo filme, as "Cartas de Iwo Jima", se passa na mesma ilha, na mesma montanha que fede a enxofre, e sua péssima água provoca disenteria. É despida de qualquer vegetação. Mas, ao contrário do que se vê em "A Conquista da Honra", seu tema central não é a visibilidade de uma imagem. O cerne está bem escondido num buraco, no fundo das galerias escavadas montanha adentro. Ali, algumas cartas pessoais foram enterradas. Elas não falam das batalhas, dos combates, do heroísmo, dos mortos e dos feridos. Elas trazem sentimentos domésticos e familiares.
Essa correspondência é autêntica e foi encontrada há poucos anos. Nada de uma celebração pública do heroísmo, para a qual a montanha serviu de base física e simbólica, mas uma intimidade confidencial que a montanha guardou secretamente.
Tons
Os soldados acuados viraram toupeiras. Eles cavam para resistir, mergulhados numa batalha perdida de antemão. Morrem e matam-se por uma honra coletiva, viva, mas distante dos destinos de cada um.
Homens e areias, tudo é azul acinzentado, metálico. De vez em quando, num emblema figurando o sol nascente, numa ferida ensangüentada, vibra o vermelho.
Ferocidade
"Cartas de Iwo Jima" expressa uma oposição que está implícita em "A Conquista da Honra". A frase faça o que é certo porque é certo serve tanto para o dever dos soldados japoneses quanto o dos americanos. Esse certo, porém, se anula pelo fato de significar, para um, o aniquilamento do outro.
A obsessão ética vai mais fundo. Uma obediência ao certo exclui a compreensão do que é certo; ou seja, a própria natureza do certo escapa a quem obedece. Clint Eastwood expõe assim os princípios abstratos, políticos, militares, que comandam a todos, mas que são exteriores a cada um. Seria possível dizer que o diretor faz sobressair a humanidade espessa dos indivíduos, em carne e osso, carregados de sentimentos, separados de suas famílias, sofrendo dolorosamente, sobre o pano de fundo desumano estendido pelos políticos e pelos militares. Ocorre, porém, que esse desumano é, infelizmente, parte do humano porque foi também criado pelos homens. O diretor modela um humanismo feito de carne, osso e sentimentos para denunciar a barbárie feroz imposta do alto, comandada pelos ideais e pelas pátrias.
Além
Clint Eastwood intui comunicações invisíveis, impalpáveis, entre os indivíduos. Isso aparece, por exemplo, em "Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal" [1997] e, mais ainda, em "Dívida de Sangue" [2002]. As "Cartas de Iwo Jima" mostram laços incompreensíveis. As cartas nunca foram enviadas. Pouco importa: elas são a expressão concreta desses sutis vasos comunicantes que, não se sabe bem a razão, mesmo à distância, unem os seres de maneira tão forte.


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