|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ Crônica
Copacabana, cidade aberta
Cenário de duas tragédias
recentes, o bairro mais famoso do
Rio resiste, com sua vida
multifacetada, ao apelo da decadência
FAUSTO FAWCETT
ESPECIAL PARA A FOLHA
E
ncostado num poste à
espera do sinal vermelho pra poder atravessar, dou uma dissolvida no meu ego, entrego minha mente à zoeira bregarunner de Copacabana, zoeira
blade runner, sinestesia acachapante.
Encostado num poste em
frente à recém-inaugurada estação Cantagalo do metrô. Terceira e última estação do bairro, reiterando a fama de Copacabana como o logradouro carioca mais bem servido em termos de transporte público.
Daqui você vai pra qualquer
lugar ou tem a sua empreitada
de deslocamento pela cidade
facilitada.
Encostado no poste observando um camarada ao lado
com o jornal aberto exibindo
duas notícias mortais que tiveram o bairro como cenário.
O desabamento de uma marquise [em 26/2] e o assassinato
de uma rapaziada francesa
[dois homens e uma mulher,
em 27/2] ligada a uma ONG.
De repente chega uma senhora tomada de ímpeto imprecatório e desanda a dizer,
apontando para as notícias,
que Copacabana virou mesmo
uma favela, que o bairro tá perdido e que nos áureos tempos
da juventude e adultidade dela
é que era bom e, enfim, que a
decadência tomou conta de tudo, e o negócio é se mandar.
O camarada, é claro, interrompeu a leitura e, na maior
elegância estóica, mandou
bem: "Minha senhora, no Rio,
em São Paulo, em qualquer lugar do Brasil, mas, principalmente, nas duas maiores cidades do país, não adianta fugir
porque a precariedade da situação social, jurídica, financeira, cultural, tecnológica, psiquiátrica, neurogenética, emocional vai achar a senhora e
partir pra cima da sua pessoa".
Não tem Leblon, Barra da Tijuca, zona oeste ou Vila Isabel,
o bicho tá pegando, e, como Copacabana é uma microamostra
do país encurralada em quatro
quilômetros de cartão-postal
natural e social, não tem jeito, o
número de ocorrências escancarando a tal da precariedade é
muito maior.
Paraíso de neo-idosos
Fica fria, minha senhora,
porque aqui é o único lugar onde a senhora tem divertimento
e atendimento 24 horas; aqui é
o paraíso dos neo-idosos.
Fica fria porque Copa é a capital humana do Rio de Janeiro, o tal purgatório da beleza e
do caos...
Pois é, volta e meia rola esse
papo, acontece esse tipo de comentário obtuso e, principalmente, preguiçoso em relação a
Copa, acusando-a de viver numa abusada e desaforada decadência, que vem a ser sinônimo
de declínio, empobrecimento e,
nos territórios jurídicos, "extinção de um direito por ter decorrido o prazo para exercício
do mesmo".
Essa designação jurídica para
decadência é que me ajuda a dizer o seguinte: points culturais
e juvenis aliados a processos de
revitalização de certos lugares
é que outorgam a certas partes
da cidade-purgatório o direito
de exercer uma certa influência
de agitação cultural, transformarem-se em pólos de magnetismo juvenil.
Copacabana não tem point
porque já é um gigantesco e
multifacetado point cosmopolita que se dá ao luxo de usar
uma injusta imagem de decadência como camuflagem para
o tudo-acontece.
Camadas de história
As tão decantadas eras de
glamour bossanovista ou de juventude transviada ou copacabanapalacianas ou de incipiente classe média inaugurada na
zona sul ou sejam quais forem
essas épocas fantasiadas de
bons-tempos-aqueles-que-não-voltam-mais se transformaram em camadas de história
da força humana e urbana desse bairro.
Essa força está mais presente
do que nunca naquilo que eu
chamei nas primeiras linhas de
zoeira bregarunner, zoeira blade runner, e não apenas em
movimentos artísticos ou pólos
de entretenimento.
Estes existem, sim, mas você
tem que se jogar no bairro pra
descobrir, você tem que se entregar e, como eu disse no princípio, dissolver um pouco seu
ego na matéria humana em movimento, na matéria humana à
espreita, como um Homero
funk te levando pruma epopéia
inesperada pelos recantos do
maior bairro do mundo.
Aqui você não tem paz de espírito, aqui você tem zap de espírito, cada pessoa funcionando como um canal aberto pra
aventuras inesperadas. Aqui,
médium pede arrego porque se
sente num Maracanã lotado de
espíritos zombeteiros, almanaque de almas estourando a bocada do Kardec.
Tudo em Copacabana é a
maior concentração.
Keith Richards, o guitarrista
dos Rolling Stones, no dia do
arrastones (gostei muito dessa
expressão sacada por um jornalista cujo nome infelizmente
me foge da memória agora) disse que era muito bom estar ali e
alguns segundos depois emendou: "É muito bom estar em
qualquer lugar", e em Copa é
assim, você está no Brasil e em
qualquer lugar.
O que tem em São Paulo ou
Nova York ou Macau ou Tóquio, só que em quatro quilômetros. É como se fosse uma
Mônaco dos Apocalipses.
Aqui o Vale do Jequitinhonha se encontra com a Dinamarca e Madureira dá beijinhos no Caribe, enquanto a
exuberância imobiliária e a agitação das ruas e favelas formam
uma dupla de futevôlei metafísico pra enfrentar a outra dupla
exuberante, a da praia e da floresta do morro.
Copacabana desencana, Copacabana libera e não tem
point porque já é um gigantesco "point of view". Quanto às
tais notícias, é a boa e velha velocidade de cruzeiro das atávicas barbaridades brasileiras.
Abismo que não chega
O Brasil é um abismo que
nunca chega, um paiol de vertigens onde o verniz da civilização é ralo, e o clichê dos núcleos
de excelência cercados por vastas incompetências, inércias
burocráticas e bandidagens de
várias estirpes e naipes já virou
superarquétipo de referência
final. Solução é um mega-soluço do gigante deitado em berço
esplêndido?
Ironia mórbida nas duas notícias. O que foi feito pra proteger caiu matando.
A marquise, por óbvios desleixos de falhas ou, quem sabe,
azar mesmo, desabou levando
duas pessoas e quebrando gravemente outras sete ou nove,
não sei.
Uma rapaziada de ONG é deletada por um cara que era
exemplo de vitória no que diz
respeito ao que se pode fazer
pelos jogados por aí. Não é que
o cara, pra usar o jargão-gíria
das ruas, caiu matando?
No caso da marquise, vacilo
de incompetência, e teremos
outros tantos exemplos.
No caso dos ongs deletados, o
papo é mais pesado, pois diz
respeito ao fla-flu psicológico-psiquiátrico típico das megaconcentrações urbanas: normopatas contra sociopatas.
Não tem humanismo que dê
conta do que está acontecendo
nesse embate.
Nossos corações e mentes
são despachos na encruzilhada
desses dois. Garoto arrastado,
família incendiada, drogas ou
cismas levando a assassinatos à
toa, enfim, o indivíduo criado,
educado para ser humanisticamente emancipado ganhou a
companhia do indivíduo foda-se (ou dane-se), "if" (ou "id")
para os íntimos.
É por isso que a coqueluche
agora são os humanistas anônimos, aqueles que já estão há
1.350 dias sem desejar um
mundo melhor. São os pessimistas festivos ajudando todo
mundo a segurar as pontas.
Só me resta dizer que decadência é o caramba.
Copacabana é imponência
urbana e humana, num curto
espaço de terra. Copacabana,
cidade aberta, imbatível. A
princesinha está mais para rainha dos excessos, oxigenada Iemanjá, gostosona vivida cheia
de vertigens sedutoras. Tem
muito de antiga loba romana, e
quem não mamar nas suas tetas urbanas jamais vai saber como é se sentir superbacana.
FAUSTO FAWCETT é músico e escritor.
Texto Anterior: Discoteca básica: Coisas Próximo Texto: + Teatro: A barbárie sob a superfície Índice
|