São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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+ Crônica

Copacabana, cidade aberta

Cenário de duas tragédias recentes, o bairro mais famoso do Rio resiste, com sua vida multifacetada, ao apelo da decadência

FAUSTO FAWCETT
ESPECIAL PARA A FOLHA

E ncostado num poste à espera do sinal vermelho pra poder atravessar, dou uma dissolvida no meu ego, entrego minha mente à zoeira bregarunner de Copacabana, zoeira blade runner, sinestesia acachapante. Encostado num poste em frente à recém-inaugurada estação Cantagalo do metrô. Terceira e última estação do bairro, reiterando a fama de Copacabana como o logradouro carioca mais bem servido em termos de transporte público. Daqui você vai pra qualquer lugar ou tem a sua empreitada de deslocamento pela cidade facilitada.
Encostado no poste observando um camarada ao lado com o jornal aberto exibindo duas notícias mortais que tiveram o bairro como cenário. O desabamento de uma marquise [em 26/2] e o assassinato de uma rapaziada francesa [dois homens e uma mulher, em 27/2] ligada a uma ONG. De repente chega uma senhora tomada de ímpeto imprecatório e desanda a dizer, apontando para as notícias, que Copacabana virou mesmo uma favela, que o bairro tá perdido e que nos áureos tempos da juventude e adultidade dela é que era bom e, enfim, que a decadência tomou conta de tudo, e o negócio é se mandar.
O camarada, é claro, interrompeu a leitura e, na maior elegância estóica, mandou bem: "Minha senhora, no Rio, em São Paulo, em qualquer lugar do Brasil, mas, principalmente, nas duas maiores cidades do país, não adianta fugir porque a precariedade da situação social, jurídica, financeira, cultural, tecnológica, psiquiátrica, neurogenética, emocional vai achar a senhora e partir pra cima da sua pessoa".
Não tem Leblon, Barra da Tijuca, zona oeste ou Vila Isabel, o bicho tá pegando, e, como Copacabana é uma microamostra do país encurralada em quatro quilômetros de cartão-postal natural e social, não tem jeito, o número de ocorrências escancarando a tal da precariedade é muito maior.

Paraíso de neo-idosos
Fica fria, minha senhora, porque aqui é o único lugar onde a senhora tem divertimento e atendimento 24 horas; aqui é o paraíso dos neo-idosos. Fica fria porque Copa é a capital humana do Rio de Janeiro, o tal purgatório da beleza e do caos... Pois é, volta e meia rola esse papo, acontece esse tipo de comentário obtuso e, principalmente, preguiçoso em relação a Copa, acusando-a de viver numa abusada e desaforada decadência, que vem a ser sinônimo de declínio, empobrecimento e, nos territórios jurídicos, "extinção de um direito por ter decorrido o prazo para exercício do mesmo".
Essa designação jurídica para decadência é que me ajuda a dizer o seguinte: points culturais e juvenis aliados a processos de revitalização de certos lugares é que outorgam a certas partes da cidade-purgatório o direito de exercer uma certa influência de agitação cultural, transformarem-se em pólos de magnetismo juvenil. Copacabana não tem point porque já é um gigantesco e multifacetado point cosmopolita que se dá ao luxo de usar uma injusta imagem de decadência como camuflagem para o tudo-acontece.

Camadas de história
As tão decantadas eras de glamour bossanovista ou de juventude transviada ou copacabanapalacianas ou de incipiente classe média inaugurada na zona sul ou sejam quais forem essas épocas fantasiadas de bons-tempos-aqueles-que-não-voltam-mais se transformaram em camadas de história da força humana e urbana desse bairro. Essa força está mais presente do que nunca naquilo que eu chamei nas primeiras linhas de zoeira bregarunner, zoeira blade runner, e não apenas em movimentos artísticos ou pólos de entretenimento.
Estes existem, sim, mas você tem que se jogar no bairro pra descobrir, você tem que se entregar e, como eu disse no princípio, dissolver um pouco seu ego na matéria humana em movimento, na matéria humana à espreita, como um Homero funk te levando pruma epopéia inesperada pelos recantos do maior bairro do mundo. Aqui você não tem paz de espírito, aqui você tem zap de espírito, cada pessoa funcionando como um canal aberto pra aventuras inesperadas. Aqui, médium pede arrego porque se sente num Maracanã lotado de espíritos zombeteiros, almanaque de almas estourando a bocada do Kardec. Tudo em Copacabana é a maior concentração.
Keith Richards, o guitarrista dos Rolling Stones, no dia do arrastones (gostei muito dessa expressão sacada por um jornalista cujo nome infelizmente me foge da memória agora) disse que era muito bom estar ali e alguns segundos depois emendou: "É muito bom estar em qualquer lugar", e em Copa é assim, você está no Brasil e em qualquer lugar. O que tem em São Paulo ou Nova York ou Macau ou Tóquio, só que em quatro quilômetros. É como se fosse uma Mônaco dos Apocalipses.
Aqui o Vale do Jequitinhonha se encontra com a Dinamarca e Madureira dá beijinhos no Caribe, enquanto a exuberância imobiliária e a agitação das ruas e favelas formam uma dupla de futevôlei metafísico pra enfrentar a outra dupla exuberante, a da praia e da floresta do morro. Copacabana desencana, Copacabana libera e não tem point porque já é um gigantesco "point of view". Quanto às tais notícias, é a boa e velha velocidade de cruzeiro das atávicas barbaridades brasileiras.

Abismo que não chega
O Brasil é um abismo que nunca chega, um paiol de vertigens onde o verniz da civilização é ralo, e o clichê dos núcleos de excelência cercados por vastas incompetências, inércias burocráticas e bandidagens de várias estirpes e naipes já virou superarquétipo de referência final. Solução é um mega-soluço do gigante deitado em berço esplêndido?
Ironia mórbida nas duas notícias. O que foi feito pra proteger caiu matando. A marquise, por óbvios desleixos de falhas ou, quem sabe, azar mesmo, desabou levando duas pessoas e quebrando gravemente outras sete ou nove, não sei. Uma rapaziada de ONG é deletada por um cara que era exemplo de vitória no que diz respeito ao que se pode fazer pelos jogados por aí. Não é que o cara, pra usar o jargão-gíria das ruas, caiu matando?
No caso da marquise, vacilo de incompetência, e teremos outros tantos exemplos. No caso dos ongs deletados, o papo é mais pesado, pois diz respeito ao fla-flu psicológico-psiquiátrico típico das megaconcentrações urbanas: normopatas contra sociopatas. Não tem humanismo que dê conta do que está acontecendo nesse embate.
Nossos corações e mentes são despachos na encruzilhada desses dois. Garoto arrastado, família incendiada, drogas ou cismas levando a assassinatos à toa, enfim, o indivíduo criado, educado para ser humanisticamente emancipado ganhou a companhia do indivíduo foda-se (ou dane-se), "if" (ou "id") para os íntimos. É por isso que a coqueluche agora são os humanistas anônimos, aqueles que já estão há 1.350 dias sem desejar um mundo melhor. São os pessimistas festivos ajudando todo mundo a segurar as pontas.
Só me resta dizer que decadência é o caramba.
Copacabana é imponência urbana e humana, num curto espaço de terra. Copacabana, cidade aberta, imbatível. A princesinha está mais para rainha dos excessos, oxigenada Iemanjá, gostosona vivida cheia de vertigens sedutoras. Tem muito de antiga loba romana, e quem não mamar nas suas tetas urbanas jamais vai saber como é se sentir superbacana.


FAUSTO FAWCETT é músico e escritor.


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