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Dizer o indizível
O PROFESSOR DE ÉTICA DA USP AFIRMA QUE ESTÁ PAGANDO O PREÇO POR TER EXPOSTO SEUS SENTIMENTOS, MAS QUE NÃO CHEGOU A PROPOR NADA DE CONCRETO, E ACUSA OS FORMADORES DE OPINIÃO DE FAZEREM JOGO DE CENA E ESVAZIAREM O DEBATE PÚBLICO
RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Meu artigo sobre
o odioso assassínio de João
Hélio [no
Mais! de 18/2]
causou uma polêmica que se
desviou muito do que eu disse.
Incomodou-me que na Folha
se comentasse mais meu ensaio do que o crime contra a
humanidade.
Ao expor meus sentimentos
(e era isso o que buscava ante o
horror que vivia), deixei claro
que estava tão perplexo que
não cabia propor nada de concreto, tal como a pena de morte. Alguns leitores, entre eles
jornalistas, acadêmicos e advogados, leram em minha indignação o que lhes conveio. Retomo o assunto.
Porque disse que minha reação ao crime incluía desejar a
morte de seus autores, quiseram entender que defendia sua
execução sob tortura, a vingança ou mesmo o sadismo.
Ora, "imaginar", "torcer" não
é "propor, fazer, recomendar".
Desde Freud, sabe-se que é
normal sentir raiva. Humanizamo-nos quando aprendemos
a nos conter. Mas conter-se
não é varrer a emoção para baixo do tapete.
Alguns, compreensivos, lamentaram que eu levasse a público o que deveria ter guardado para mim ou amigos. Discordo, embora pague um preço
por ter dito em alto e bom som
o que muitos, no fundo, também sentiram.
Filosofar, como percebeu [o
jornalista] Alberto Dines, se faz
melhor em público. O esvaziamento e a esterilidade do espaço público, no Brasil, se deve
muito ao fato de que fazemos
cena: intelectuais, advogados,
acadêmicos simulam uma sobriedade que não têm.
O intelectual não pode dizer
só o que agrada.
Não ajuda, em nosso debate
político e social, fingir uma civilização que tem pés de barro.
Calar em público os sentimentos que se referem à vida pública induz à idéia do intelectual
como quem pensa sem paixões,
a esconder a face oculta de nossa comum humanidade.
Cisão radical
Pessoas comuns que somos,
nossa reflexão sobre o que fazer
com crimes não pode se contentar com princípios impecáveis, a fundar leis que ninguém
contesta, mas tampouco reconhece ou respeita. Nossa reflexão e ação não devem ser esterilizadas por uma cisão radical
entre sentir e pensar.
Pois, sem eu renunciar à defesa do processo justo, à importância da educação (mas que
demora a dar resultados), vejo
que os discursos construtivos
esbarram num fato bruto, o
horror, que é quase da ordem
do indizível. O horror é sentimento típico do século 20.
Palavras são poucas para
enunciar os casos em que falha
o grande projeto de Rousseau, a
compaixão, a piedade: o padecer junto com qualquer ser vivo
que sofra.
O horrível dos infanticidas é
a extinção cabal da compaixão.
"Não sei, não tenho filho", disse
um dos assassinos, ao lhe perguntarem o que imaginava sentirem os pais de João Hélio.
Mas sentir com o outro não exige ter vivido pessoalmente a
mesma experiência.
Preocupa-me a permanência
de um discurso acabado que
condena a indignação, respondendo a ela com artigos de leis e
uma moral pronta.
Boa parte da população está
tão revoltada que descrê do discurso, sincero ou hipócrita, da
lei e de quem diz aplicá-la. A ausência do Estado se mede pela
ausência do respeito e garantia
dos direitos humanos de uma
população que repudia o crime.
Essa exaustão de nosso semi-Estado de Direito é grave, porque sem a confiança do povo
soberano sobram só resíduos
do direito. Uma democracia
sem povo o que é?
Expressar o horror, desnudar a própria alma sem censura, talvez sirva para destacar
que há gritos que não podem
ser silenciados e ignorados
quando se discute a construção
de uma nova sociedade.
O crime hediondo não é um
crime qualquer. Uma coisa é fazer do crime um meio de vida
(própria), outra é fazer dele um
meio de morte (alheia). O assassino cruel passou há muito
dos limites da civilidade. Espanta que alguém deseje, para
ele, tormentos? Desejar não é
fazer. Mas uma indignação que
o patriciado não escuta corrói
as bases da pólis.
A vingança privada só deu lugar à justiça pública após lento
avanço nas relações sociais. E a
justiça se manteve porque garantiu o cumprimento das leis.
Mas se lembram da bóia-fria
que matou aquele que violentou seu filhinho? Devia ela crer
no devido processo legal? Mas
assim não se devolve a justiça à
vingança, não renuncia o poder
público a qualquer utilidade?
Pergunto: em que medida o
Judiciário brasileiro beneficia
o dia-a-dia de uma população
que não desfruta do direito à
segurança que, lembra-me Lenio Streck [professor e procurador de Justiça do Rio Grande
do Sul], está na Constituição?
Enquanto alguns publicistas
exibem fé plena nas instituições, pura decência, a maioria
se estarrece diante da barbárie.
Admirando Rousseau, talvez
o filósofo moral de maior grandeza, penso porém que a compaixão é uma construção laboriosa feita em sociedade. Divide
o humano do bestial. Criminosos, hoje, lucram na razão direta de sua falta de compaixão, de
sua desumanidade.
Tenho sustentado que -se a
modernidade política surge
quando passam à esfera pública
conceitos do direito privado romano- nossa época se caracteriza inversamente pela passagem, para a esfera privada, de
conceitos que eram do âmbito
político.
Paradigma individual
O príncipe de Maquiavel,
sem garantia de triunfar num
mundo sem regras, hoje é paradigma de indivíduos que já não
têm parâmetros prontos para a
vida profissional e pessoal -vivendo no chão ensaboado do
"condottiere" maquiaveliano.
Por que não pensar, então,
que o nazismo pode também
estar presente em indivíduos
-que agem com igual falta de
compaixão, mesmo sem ter o
projeto hitlerista de dominar o
mundo? Há nazismo quando
um grupo ou um indivíduo busca extirpar as últimas marcas
de humanidade.
Continuo vendo razões contra a pena de morte: o risco do
erro judicial irreparável, a vergonha que é o Estado matar.
Mas as estatísticas mostram
o fracasso do Estado em recuperar o criminoso, tarefa que
parece exigir dedicação quase
religiosa.
Ouvi o padre Júlio Lancelotti
[da Pastoral do Menor] dizer
que a liberdade assistida, alternativa inteligente ao aprisionamento dos menores delinqüentes, para que eles trabalhem,
estudem, saiam do crime, custaria seis salários mínimos per
capita ao mês.
É caro, embora talvez metade do custo da Febem, com a
vantagem de que pode recuperar a pessoa para a vida inteira,
enquanto a Febem faz o contrário. É a fábula do filho pródigo
aplicada.
Frustração
Na insuficiência das soluções
leigas para os problemas do crime, não tenho visto saídas a
não ser as marcadas pela religião e/ou por uma dedicação
leiga da ordem do heroísmo,
como a dos militantes de direitos humanos. Se houver salvação, está aí. E é difícil. Repetem-se as faixas do Rio contra o
crime. A maioria esmagadora
da população é contra o crime,
quer compaixão.
Mas, até agora, adiantou a indignação popular? O meio jurídico e político teve palavras de
consolo e apoio para a multidão
sofrida ou frustrou-a, como o juiz de menores que disse que o
assassino jovem de João Hélio
ficará três anos internado -e
falou isso como se fosse normal? Como podem as pessoas
falar tão friamente e querer
compreensão?
Os infanticídios não mudam
minha defesa dos direitos humanos porque, como sustento
em "O Afeto Autoritário" [ed.
Ateliê], os direitos humanos
não são só os direitos do suspeito perante a polícia (embora
preciosos) mas também a igualdade dos sexos, o direito ao trabalho e a uma vida digna -e o
direito de João Hélio a viver
uma vida normal e longa.
Mas me fizeram pensar no
nazismo entre nós.
Esta, que ninguém comentou, talvez seja a idéia mais original de meu artigo: a comparação do atual horror privado ao
nazista. Parece que não se quer
ver o nazismo aqui, na esquina.
O século 20, o de maior progresso na história, foi rachado
ao meio pelos totalitarismos,
dos quais o pior foi o hitlerista.
Remeti a duas idéias-chave.
Primeira: dizer o horror é dificílimo, como sabe quem narrou
os campos de concentração ou
a tortura na América do Sul
-assunto que no Brasil é calado, haja vista a crítica da imprensa ao processo dos Teles
contra seu torturador.
Foi tocante, na novela "Páginas da Vida", familiares de assassinados falarem. Porque não
dizer -ou escutar- o horror
corrompe a todos. Acentua o
teor de hipocrisia na vida social. Esteriliza ainda mais a vida
pública.
A segunda idéia é a de que, se
o nazismo é o inimigo do humano (do humano como valor,
"humane", em inglês, e não
apenas como descrição, "human"), se falar sobre ele é um
esforço e refletir sobre ele é difícil, ele se situa nas exceções da
nossa espécie. Institui-se como
estado de exceção.
Carl Schmitt [jurista alemão,
1888-1985] pensou a soberania
não a partir do "nós, o povo", da
regra republicana, mas da exceção ditatorial. A exceção vira
regra. Para dizer o humano,
prefiro Camus, que falava no
caráter irredutível de cada sofrimento pessoal intenso.
Nenhuma explicação dá conta do assassínio de um filho. Políticas podem resolver o problema mais adiante, mas nossa sociedade está cada vez mais ferida pelo extermínio do seu futuro. As soluções eram devidas
ontem. Se não forem cobradas
com muita intensidade, não virão nunca.
Se a emoção crescente da
perda injusta do filho ou da filha -isto é, o que jamais será
banalizado, porque sempre será insuportável- se potencializar, cada um decidindo sua própria lei, que restará de nossos
laços sociais ou, pelo menos,
políticos?
NOTA
Devo a Alberto Dines, Lenio Streck, Silvia Pimentel, Anita Novinski, Olgária Matos, Manuel
da Costa Pinto, Edson Teles, Sara Albieri, Eric
Calderoni, Yumi Suzuki, Newton Pimenta, Auxiliadora Nicolato e outros algumas idéias e expressões que aparecem neste artigo, cuja responsabilidade, porém, é minha.
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