São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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+ cinema

A vida que levou Ernesto a ser Guevara

"Diários de Motocicleta", novo filme de Walter Salles, estréia no dia 7 de maio em São Paulo

Jurandir Freire Costa

Walter Salles é incansável. "Diários de Motocicleta", seu último filme, condensa o que os anteriores tinham de melhor e vai adiante. O enredo é baseado nos relatos de viagem de dois amigos pela América Latina: Alberto Granado e Ernesto Guevara de la Serna, o Guevara antes de se tornar "Guevara". Em 1952, Alberto, com 29 anos, e Ernesto, com 23, saíram de Buenos Aires em uma velha motocicleta. Atravessaram a América Latina da Patagônia à Venezuela, onde a viagem se encerrou. Fim de um percurso, começo de outro. Depois da travessia, os viajantes jamais foram os mesmos. Alberto foi para Cuba e lá vive até hoje. Quanto a Guevara...! Quem foi Che Guevara? Para os mais conservadores, um guerrilheiro comunista, um "homem sem utilidades", exceto, "marché oblige", a de vender pôsteres, bonés, camisetas e ímãs de geladeira; para os marxistas, os humanistas ou os mais liberais, um revolucionário, um visionário, um espírito livre e compassivo que fez da sede de justiça o sentido de sua vida. Walter Salles não se detém nessa controvérsia. Não por julgá-la irrelevante, mas porque sua questão é outra (e a de sempre): o que faz com que alguém, em certo momento, torça a curva da vida e a dirija para o improvável e o inesperado? Ou, indo direto ao filme, por que Ernesto, que em pouco tempo seria o dr. Ernesto de la Serna, escolheu a vida que o destinou a ser "Guevara"? A pergunta, sabemos, persegue a imaginação humana pelo menos desde que Édipo, a caminho de Tebas, teve que enfrentar o enigma da esfinge. Alguns pensaram achar a resposta na boa ou na má fortuna. Outros, como Kierkegaard, consideram que esse "salto" não tem explicação. Explicá-lo seria pedir que a existência entregasse à inteligência seus silêncios e mistérios. As últimas perguntas não existem para ser respondidas. Existem para que os sujeitos, ao tentar respondê-las, fabriquem sonhos e realidades e deixem para as novas gerações o legado de seus estilos.

Razão e tripas
Qual, então, o estilo Walter Salles? Penso que é o de não separar ética de estética. Em seu cinema sobram beleza e magia, mas o encantamento nunca se torna embotamento dos sentidos ou evasão moral. Para um público intoxicado por lágrimas, ruídos e efeitos visuais estrambóticos, a solução é desconcertante. Afinal, pode-se dizer, por que o estoicismo de imagens e emoções? Por que razão, e não tripas; por que sobriedade, e não vertigem? Porque, diria, na genuína sensibilidade artística a forma não trai o conteúdo. Falar sobre ética, como quer Walter Salles, é transitar entre aquilo sobre o que se pode falar e aquilo sobre o que se deve calar ou, no máximo, mostrar. O desenho cinematográfico de Ernesto, portanto, não poderia ser diferente. A concisão do filme não é um capricho técnico; é a medida do talento do diretor. Nos "Diários", qualquer gesto a mais, qualquer excesso na composição do personagem, poderia "glamourizar" ou caricaturar uma vida que foi tudo menos espetáculo midiático. Ser fiel a Guevara significava respeitar, tanto quanto possível, a letra dos relatos. Era isso ou a grandiloqüência; era isso ou o melodrama. Walter Salles entendeu o desafio, fez a aposta e ganhou o jogo. O Ernesto dos "Diários" não agia como se soubesse que seria o Che Guevara. Essa é a pedra de toque da leitura do cineasta: quem age eticamente não posa para a posteridade. Simplesmente se engaja naquilo em que acredita. Guevara, quando jovem, tinha apenas um caderno nas mãos e uma idéia na cabeça: conhecer a América Latina. A aventura, em retrospectiva, pode ser vista como uma descida ao "coração das trevas" ou como uma subida ao coração da luz. No instante em que ocorreu, contudo, foi apenas um "achado"; um espanto que se transformou em convicção e ação. Um dos maiores méritos dos "Diários" é o de não se deixar iludir pelo mito Guevara e mostrar que a viagem de Ernesto foi, sobretudo, uma reinvenção ética de si. É difícil driblar o viés do gosto pessoal diante do que nos comove. A meu ver, Walter Salles se superou porque nunca chegou tão perto dos grandes mestres -e aí vem o viés, penso, de imediato, em David Lean. Quem, mais do que Lean, fez o épico dialogar com o psicológico sem que um emudecesse o outro? Onde, senão em Lean, o deslumbramento do cinema explode sem ferir olhos e ouvidos? Por fim, quem, depois de Lean, soube ver que o mal é banal, mas a imensidão do bem só tem paralelo na imensidão do mundo? Assistindo aos "Diários", é impossível deixar de notar como Walter Salles se aproximou de "Dr. Jivago", "Lawrence da Arábia", "A Ponte do Rio Kwai" ou "Passagem para a Índia". O eco das estepes russas, dos desertos da Arábia, das florestas do Sudeste Asiático ou da magnífica geografia indiana parece reverberar na vastidão das cordilheiras, rios e planícies latino-americanas, que "dizem" o que Ernesto sentia, mas não sabia nomear. O Guevara que nascia não cabia em seus velhos e conhecidos sentimentos. Um amor tão grande pelos humildes e desprezados, um compromisso tão intenso com sua querida América Latina, só tinha uma tradução possível, os picos andinos, as extensões da Patagônia, o portento da Amazônia. Assim, em um dos mais belos trechos do filme, ao contemplar as ruínas de Machu Picchu, Ernesto se volta para o amigo e comenta: "Como pudemos fazer, de tudo isso, "isso'?". O que não pôde ser dito pôde ser mostrado. O primeiro "isso" era Machu Picchu, um exemplo da grandeza do engenho humano. O segundo era Lima, que poderia ser, igualmente, Rio de Janeiro, São Paulo, Cidade do México, Caracas ou Bogotá. Lima são "os tristes trópicos". São as cidades latino-americanas que "decaem antes de envelhecer", que são guetos de indigência e precariedade mantidos pela violência dos que mandam sem nenhum senso de decência ou magnanimidade. A pequenez da opressão chocou o jovem Ernesto. Mas não despertou nele ressentimentos mesquinhos. Os fortes, os arquitetos do mundo, não odeiam: acreditam. Em sua vida, não havia lugar para a vingança ou o rancor, pois tudo foi ocupado pela solidariedade e pela doação. Dureza, sim, quando preciso, mas endurecer sem jamais perder a ternura. O futuro refletido na juventude de seus olhos não deveria pertencer às hienas de ontem, mas também não aos abutres de amanhã. Deveria ser a terra dos que amam a liberdade, a igualdade e a fraternidade; dos que querem sair de si e, com os outros, construir uma só humanidade.

Nós e eles
"Diários de Motocicleta" nem chora o que passou nem é um manual de como ser herói em tela grande e em 120 minutos. Heróis, mostra Walter Salles, não se fazem com bravatas. Heróis são os que agem de moto próprio. Os que têm apenas duas mãos, um sentimento do mundo e, às vezes, até mesmo a respiração frágil, como Ernesto. Mas com isso, não mais que isso, um dia jogam fora as luvas do preconceito, cruzam o rio, chegam ao próximo e mudam o rumo da história. A diferença entre eles e a maioria de nós é pequena, mas decisiva. Nós amamos "nosso mundo", eles amam "o mundo de todos"; nós amamos "nossa vida", eles amam "a vida". Por isso, a eles, somente a eles, concedemos a glória e a imortalidade que o tempo não corrompe.
Enfim -e sem mais- um filme primoroso na intenção e no feitio; um filme digno da memória do comandante; um filme que honra o cinema; um filme à altura de Walter Salles.


Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É autor de, entre outros, "Sem Fraude nem Favor" e "Razões Públicas, Emoções Privadas" (ed. Rocco). Escreve esporadicamente na seção "Brasil 504 d.C.".


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