São Paulo, domingo, 04 de abril de 2004

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O MAL ABSOLUTO

ESCRITOR QUE CONSAGROU A NARRATIVA DE ESPIONAGEM, JOHN LE CARRÉ FALA DE SEU MÉTODO DE TRABALHO E DIZ QUE "AMIGOS DE VERDADE" PROTESTA CONTRA A NOVA ORDEM MUNDIAL

Florence Noiville
Raphaelle Rérolle

do "Le Monde"

Antes de ser o que seu autor diz a seu respeito (um livro "político"), antes de colocar o dedo sobre a ferida daquilo que não funciona na ordem mundial e dos desvios seguidos pela luta contra o terrorismo, "Absolute Friends" [Amigos de Verdade] é um romance apaixonante, bem escrito, habitado por dois heróis retratados de maneira contundente. É uma das tramas ao mesmo tempo simples e complicadas cujos menores meandros John Le Carré sabe dominar como ninguém, sem jamais deixar de lado seus leitores nem seus personagens.
Entre estes está Ted Mundy, um inglês que se tornou espião e agente duplo por acaso, a serviço da Inglaterra durante a Guerra Fria. Seu correspondente por trás do Muro de Berlim é Sasha, um antigo companheiro de barricadas nas fileiras da extrema esquerda berlinense.
Partindo de um longo mergulho no passado da Europa (nazista, comunista, depois agitada pela contestação dos anos 1970), John le Carré (1931) constrói um romance no qual reaparecem os temas que lhe são familiares e, ao mesmo tempo, desenvolve outros, ligados à atualidade imediata. Não é de surpreender que "Amigos de Verdade" tenha sido criticado por uma parte da imprensa britânica, sem dúvida chocada pelas posições muito antiocidentais de Ted Mundy, mas também chocada, possivelmente, por seu idílio com uma jovem turca, muçulmana praticante.
O personagem parece ser muito próximo do autor, compartilhando com ele uma infância caótica (pai imprevisível, mãe morta) e o gosto por escrever -sem falar, é claro, da carreira no serviço secreto. A descrição desse universo da inteligência, sobre o qual o autor fala na entrevista a seguir, é sem dúvida a maior realização de Le Carré, hábil para mostrá-la como metáfora da condição humana, na qual ninguém é realmente aquilo que afirma ser.


O livro também contém a idéia de que podemos ser destruídos pela mentira, pela capacidade de enganarmos a nós mesmos

Bush e Bin Laden foram feitos um para o outro: nenhum deles consegue aceitar meias medidas



Como o senhor trabalha?
Sem descanso, no começo de um livro. Retorno constantemente à primeira página, ao primeiro capítulo. Mas não sigo um plano. Procuro mergulhar na história o mais tarde possível e, em seguida, volto atrás para explicar como se chegou lá. Faço pesquisas sem as quais o romance não poderia avançar muito, já que cada detalhe impele a ação. Mas não é apenas pesquisa fria -é preciso também fazer entrevistas, formular perguntas e ouvir as respostas, criar um clima de confiança com as pessoas, como se faz no jornalismo.
Para escrever "O Jardineiro Fiel", por exemplo, que tratava da indústria farmacêutica, precisei ir à Basiléia e encontrar um executivo de escalão médio da indústria farmacêutica, alguém que concordou em falar de sua vida. Passar tempo com ele, prometer a ele que não revelaríamos suas fontes e que lhe mostraríamos o resultado.
O senhor tem a impressão de ajudar o leitor a apreender a complexidade do mundo?
Tive orgulho quando a Oxfam [instituição sediada em Londres, presente em mais de cem países e voltada para a busca de soluções para a pobreza e a injustiça] me escreveu para me agradecer, depois de "O Jardineiro Fiel". Mas, no caso de "Amigos de Verdade", quero apenas que os leitores compartilhem minha indignação e sintam que existem novas formas de protesto e de expressão populares a inventar.
Uma das vantagens do caos atual pode ser a de reconciliar a vontade popular e o poder político. O impacto da TV, a repetição incessante de clichês conseguiram nos tornar estúpidos e apáticos. Pior, conseguiu nos dar a impressão de que a política é virtual -assim como a guerra, os mortos e até mesmo a vitória. Hoje, o fato de que civis tenham se tornado alvos talvez gere protestos populares mais eficazes.
Seu livro evoca a Berlim dos anos 1970, aquela da extrema esquerda. O que o senhor pensava dela, na época?
Eu tinha a impressão de ser espectador de um teatro humano. Eu estava rico na época, já tinha escrito "O Espião Que Saiu do Frio", e olhava tudo isso com os olhos de alguém que acaba de ter acesso à propriedade. Me sentia um pouco culpado.
Mas eu não era engajado, ao contrário de agora. Naquela época, eu era funcionário público, logo, era "institucionalizado".
Eu tinha lecionado em Eton, o cúmulo da respeitabilidade universitária, tinha ingressado no Ministério da Defesa, depois no Foreign Office. Tinha sido diplomata em Bonn, cônsul em Hamburgo. Tinha tido uma educação primorosa. Eu escrevia de madrugada, das 4h às 7h. Levava uma vida dupla, e minhas inibições eram fortemente enraizadas.
A ficção o libertou?
Sim, mas isso levou tempo. Uma das causas de minha inibição era minha infância. Meu pai era um homem muito estranho, um empreendedor fracassado. Minha mãe morreu quando eu era muito pequeno. Meu irmão e eu vivemos fora de qualquer controle paterno, sob uma forma de controle institucional: o das escolas internas, desde os 5 anos de idade.
Por esse motivo, fui um pequeno espião desde muito pequeno. Eu e meu irmão aprendemos a falar a linguagem das classes médias, a pensar e a funcionar como alguém das classes médias, mas sem fazer parte delas. Pensávamos que era o papel que era preciso representar na vida. Eu enxergava o mundo como um lugar muito perigoso, no qual era preciso fazer de conta, o tempo todo, para evitar desastres. Essa impressão de ter saído de lugar algum também explica minhas relações com as pessoas: de maneira geral, sempre me sinto mais à vontade com os empregados de hotéis do que com os hóspedes.
O senhor parece ter sido feito sob medida para o mundo dos agentes secretos.
Sim, é preciso fazer de conta sempre, ser aquele que os outros querem que você seja, para poder seduzi-los ou obter aquilo que você quer. Para um escritor, é uma escola formidável. O mundo secreto se torna um santuário. Aliás, muitas pessoas se refugiam nele por medo do mundo real.
Seus romances freqüentemente são ligados à história recente, mas "Amigos de Verdade" o é ainda mais, pois foi lançado um mês após o fim da guerra no Iraque.
Nunca tive a impressão de escrever tão "ao vivo" assim. Normalmente, um romance representa a síntese de uma experiência: são elementos reunidos num clima de relativa tranqüilidade. Mas este foi ditado pela cólera. Eu tinha a impressão de estar revendo um filme antigo e conhecido até demais, com os EUA, mais uma vez, no papel principal.
Só que não basta a ira, a indignação. É preciso que o argumento também funcione. Quanto a isso, eu sabia que ia funcionar, porque conheço muito bem Ted Mundy, meu personagem principal. Ele é muito próximo de mim. Além disso, quando começo a escrever um livro, sempre crio alguém que compartilha um segredo comigo. Quando eu era jovem, criei para mim um pai substituto, George Smiley. Isso me permitiu encontrar um certo grau de estabilidade, de respeitabilidade. E, como eu não compreendia as mulheres, nunca o deixei ter realmente uma mulher.
Essa guerra, que o senhor repudiava, foi o fator que desencadeou o livro?
Eu já me interessava pela radicalização ligada à globalização, mesmo antes do 11 de Setembro. Depois de Seattle e das manifestações contra o G8 [grupo que reúne os sete países mais ricos do mundo e a Rússia], em Gênova, eu me perguntei, em minha ingenuidade, se não poderiam surgir novas formas de ação direta contra a globalização e contra os EUA.
Pareceu-me que estava ressurgindo uma situação do tipo 1967-1968. Sem o inimigo comunista, o imperialismo americano se transformava em obsessão. A partir do 11 de Setembro, evidentemente, tudo mudou. Tentei desesperadamente representar esse acontecimento da melhor maneira que conseguia.
Acredito que muitos autores se colocaram a mesma questão e, depois disso, se sentiram velhos, acabados. Até então eu jogava com ambigüidades, mas, de uma hora para outra, nos vimos diante do mal absoluto. A história nos acusava: a maneira como tínhamos utilizado os mujahedines contra a União Soviética, nossas relações com a Arábia Saudita...
Não obstante eu podia compreender e até mesmo aprovar a invasão do Afeganistão. Em seguida, porém, quando vi os preparativos para a guerra no Iraque, me pareceu que alguma coisa de realmente nefasta estava acontecendo nos Estados Unidos. Compreendi que, na primavera de 2002, Blair sem dúvida já tinha prometido a Bush acompanhá-lo na guerra. Blair pensou que poderia atravessar o Atlântico e entregar a Europa, as Nações Unidas. Ele se enganou ou foi enganado com relação às informações da inteligência que teriam justificado a invasão do Iraque.
Alguma coisa de muito desagradável se insinuou na ordem mundial, algo que era dirigido por uma loucura puramente ideológica.
No livro, é impossível enunciar a verdade.
Quando, na primavera de 2002, Blair se comprometeu sem dizê-lo, me pareceu que esse silêncio se transformou numa mentira enorme. Achei que nada mais poderia interromper aquele processo. O livro também contém a idéia de que podemos ser destruídos pela mentira, pela capacidade de enganarmos a nós mesmos. E que a loucura pode triunfar em pessoas altamente inteligentes. Hoje sabemos que os neoconservadores decidiram empreender a guerra no Iraque muito antes de 11 de setembro de 2001 e que eles usaram Osama bin Laden contra Saddam.
Em certo sentido, Bush e Bin Laden foram feitos um para o outro: nenhum deles consegue aceitar meias medidas.
A política norte-americana o choca muito?
O orçamento norte-americano para a Defesa por sete anos foi de US$ 3,5 trilhões, se não me engano. É apenas instinto, mas acho que muitos problemas que exigem soluções hoje são bem mais simples do que os profissionais da política querem nos fazer crer. Após o 11 de Setembro, o bom senso deveria ter prevalecido. A reconstrução do Afeganistão deveria ter podido virar prioridade absoluta, e a pobreza na África também. Os especialistas calcularam que custaria em média US$ 25 milhões por país africano para garantir o acesso de todo o mundo à água potável. Existem coisas que se podem fazer e que, a meu ver, constituem um verdadeiro começo de resposta à guerra contra o terror. Enquanto continuarmos a dar ênfase ao mercado livre, ao poder das empresas comerciais, reforçaremos a miséria e mataremos.
Essa guerra foi conseqüência de coisas que o revoltavam havia muito tempo?
Sim. O fato, por exemplo, de que, após a Guerra Fria, não se tenha procurado redesenhar o mundo de maneira construtiva. Creio que houve um momento, entre 1989 e 1991, em que, com imaginação e coragem, teria sido possível fazer muito -e não estou sendo demasiado sentimental ou romântico. Mas ninguém nos orientou. Tudo o que aconteceu foi que o comércio livre se exportou para todo lugar.
De repente, os países do antigo bloco do Leste aderiram ao capitalismo com o mesmo fervor com o qual alguns deles tinham aderido ao comunismo. O que saiu disso tudo é a conseqüência desse fracasso -fracasso de imaginação, de altruísmo, de visão, de sabedoria, de bom senso.

Nota da Redação
À exceção de "Amigos de Verdade", ainda sem previsão de lançamento no Brasil, os demais livros de John le Carré citados nesta entrevista foram publicados no país pela ed. Record.

Tradução de Clara Allain.



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