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ESTÉTICA
O filósofo e crítico Arthur Danto explica como a filosofia e a arte superaram
suas sucessivas "mortes" neste século
A comédia divina
MARCELO GUIMARÃES LIMA
especial para a Folha
"Podemos viver dentro da história como se vivêssemos fora dela, tal como nos exige a filosofia?", pergunta o filósofo e crítico
de arte norte-americano Arthur
Danto, nascido em 1924. Dada
uma tal exigência, podemos afirmar então que o "paradoxo" de
sua teoria da arte é precisamente a
tentativa de formular filosoficamente a condição das artes em
nosso presente "pós-moderno",
condição caracterizada, no dizer
do filósofo, pela anomia, a entropia e o "pluralismo". Daí vem a
atenção e o interesse que sua obra
tem despertado em filósofos, críticos de arte e artistas, desde a publicação de seu artigo "The Artworld" (O Mundo da Arte), em
1964, e em livros como "The
Transfiguration of the Commonplace" (A Transfiguração do Lugar-Comum, 1964) e "After the
End of Art" (Após o Fim da Arte,
1997), entre outros.
Como crítico de arte, papel que
assumiu numa segunda fase da
sua carreira, Arthur Danto escreve
regularmente para a revista "The
Nation". Podemos dizer que o
confronto com a arte do presente
fornece o impulso e a ocasião para
o desenvolvimento da sua teoria
da arte. Dentro da tradição socrática, essa é, ou tende a ser, ao mesmo tempo, conhecimento do objeto e uma espécie de terapia da
cultura, que, no caso, visa, ao retomar o tema hegeliano do fim da
arte, a "libertação da arte de sua
própria ideologia".
Como sempre, ao leitor cabe a
decisão final do sucesso ou fracasso de um tal empreendimento.
Sem dúvida, ele diz respeito à
compreensão do presente, pois
pensar a arte, conforme diz o filósofo em entrevista à Folha, feita
por telefone, é pensar o que somos. Afirmação que por si só já
merece nossa atenção.
Folha - A filosofia da ciência foi a
disciplina com a qual o sr. se iniciou nos estudos filosóficos, não é
certo?
Arthur Danto - Fui estudar na
Universidade de Columbia não
porque o departamento me atraísse, mas porque ficava em Nova
York, cidade onde eu queria morar. Minha meta era, na ocasião,
ser artista. Como veterano do
Exército, eu tinha direito a uma
bolsa para frequentar a universidade e achei que a filosofia era uma
boa disciplina, que me deixaria
com bastante tempo para a arte.
Na realidade, o departamento
era "bolorento", mesmo com o
fato de enfatizar a história da filosofia e de ter alguns historiadores
de primeira linha. Ernest Nagel era
meu professor e minha dissertação
foi sobre a representação histórica.
Eu descobri a filosofia analítica em
meu primeiro compromisso como
professor, em Boulder, Colorado.
E foi como o choque de uma revelação súbita, por ser tão clara e brilhante.
Eu voltei no ano seguinte para
Columbia como uma espécie de
missionário, determinado a atualizar o departamento. Devo dizer
que os cursos de estética não me
ofereciam nada. No entanto eu me
aproximei muito de Suzanne Langer, que lecionava num deles. Eu
fiz, como você imagina, filosofia
da ciência, já que era o campo que
mais desafios apresentava na época... Sidney Morgenbesser e eu publicamos uma primeira antologia
de filosofia de ciência que definiu o
campo, até o momento em que tudo mudou, sob influência de Thomas Kuhn. E eu escrevi o artigo sobre o tópico para a "Enciclopédia
de Filosofia". Minhas primeiras
publicações sobre filosofia da história foram também dessa perspectiva, ou seja, a estrutura lógica
da explicação histórica. Não sou
mais assim tão positivista, mas o
modo de formular questões que eu
aprendi como filósofo da ciência
permanece comigo até hoje.
Folha - A noção hegeliana do fim
de arte tem uma contrapartida no
marxismo, na noção do fim da filosofia... O fim da filosofia foi proclamado também, de um modo diferente, pelos positivistas lógicos.
Podemos pensar que, ao refletir
hoje sobre o fim da arte, a filosofia
reflete também suas próprias
transformações, sua própria "mortalidade"?
Danto - Não sei bem quando
me ocorreu pela primeira vez que
o corpo mais influente de trabalhos filosóficos no Ocidente é quase que totalmente construído ao
redor de uma condenação -e, eu
sentia, um temor- da arte mimética. Isso continua em Hegel, que
atribui à arte uma posição menor
na tríade que constitui o que ele
chamou de Espírito Absoluto,
porque a arte não pode se liberar
da apresentação sensível.
Os positivistas, é claro, desconsideravam a poesia, que concebiam
como cognitivamente vazia, embora alguns deles gostassem de ler
poemas. Em todo caso, a filosofia
parecia projetada para excluir a arte de qualquer maneira -para
desqualificá-la, para condená-la
ao banimento. E isso, eu pensei,
explicaria a própria estrutura do
pensamento filosófico, projetado
como um tipo de labirinto no qual
a arte deve ser confinada como um
Minotauro, para evitar pôr em risco a sociedade.
Assim foram relacionadas, uma
à outra, a arte e a filosofia, como
negativo e positivo. Se correto, esse ponto de vista libera a arte imediatamente da filosofia e libera a
filosofia de si mesma. A arte provavelmente não precisa realmente
de liberação, embora os artistas tenham mostrado uma certa consciência intranquila em relação à
viabilidade de seus esforços. Eu
tentei remover todas as restrições
filosóficas, o que coloca a arte em
um estado pós-histórico. Pós-histórico, porque a história foi especificada pela desqualificação constante da arte.
É verdade que o marxismo fala,
prematuramente, do fim da filosofia, mas a maioria dos sistemas do
século 20 são essencialmente estratégias para nos livrar da filosofia de uma vez por todas. O positivismo, o pragmatismo, a fenomenologia, a filosofia analítica, em
todas as suas fases, buscaram pôr
qualquer outra coisa no lugar ocupado pela filosofia. Rorty busca
substituir filosofia por conversação e trata as questões da filosofia
no espírito de zombaria intelectual. Podemos fazer um paralelo
entre o fim da arte e o fim da filosofia. A arte termina quando sua natureza filosófica é trazida à consciência, e talvez a filosofia termine
quando fica claro, afinal, o que filosofia é.
A magnificência do sistema de
Hegel é que todas as narrativas importantes terminam com o amanhecer de consciência e, consequentemente, da verdade reflexiva. E, da mesma maneira que arte
continua sendo feita depois do
fim, assim também a filosofia. A
triste verdade é que a filosofia
pós-histórica é bem insossa e sem
cor, em contraste com arte
pós-histórica, na qual a sensação
de liberação é tão viva. E, eu devo
dizer, não há nesse fim de século
nenhum consenso sobre o que a filosofia é. Eu penso que, em contraste, nós chegamos a um sentido
mínimo, condicional, sobre o que
arte é.
Folha - Como o sr. definiria esse
"sentido condicional"?
Danto - Em "A Transfiguração
do Lugar-Comum" são especificados dois componentes para uma
definição de arte: (a) o objeto tem
que ter conteúdo ou "aboutness"
(ser a respeito de algo); e (b) tem
que encarnar ou corporificar
aquele conteúdo. A definição é
condicional não porque esses sejam aspectos condicionais ou provisórios, mas porque mais é necessário. Ultimamente eu tenho trabalhado com uma terceira condição: conteúdo e incorporação devem ser conectados por uma crítica de arte satisfatória em relação
ao objeto. Ver algo como arte é estar em posição de relacionar-se
criticamente ao objeto. Se isso
completaria a definição, eu não sei
dizer. Mas eu gosto da idéia de colocar construtivamente a crítica de
arte dentro da estrutura essencial
da arte.
Folha - O sr. data a realização "final" da autoconsciência da arte
com os "ready-mades" de Duchamp e as "Caixas de Brilho" de
Warhol. O trabalho de Warhol o
conduziu a uma investigação filosófica de dois problemas inter-relacionados: o primeiro, sobre a natureza ontológica dos objetos de
arte que não podem ser perceptualmente distinguidos de objetos
ordinários -um fato que localiza
a questão do caráter artístico desses objetos não nas suas qualidades físicas, mas em outra dimensão. O outro é o problema histórico de saber por que esses objetos
puderam ser vistos como arte em
um determinado período, mas não
em outro. Gostaria de lhe perguntar como o sr. vê essa questão agora.
Danto - Eu já não me recordo
de meu estado de espírito preciso
em 1964, na época em que eu estava entusiasmado com as "Caixas
de Brilho" de Warhol. Estou certo
de que o que eu viria a escrever sobre o trabalho não estava na minha
mente naquela ocasião, mas a experiência deu lugar a uma pergunta de ontologia e uma pergunta de
história.
Ontologicamente, a pergunta era
por que aquilo era uma obra de arte, quando algo que há pouco se
parecia exatamente com aquilo
não era. Isso queria dizer que o significado de "arte" não podia ser
clarificado simplesmente pelo exame das obras de arte, já que as diferenças pertinentes eram invisíveis.
O que implicava igualmente que
não se podia identificar ou discriminar por meio do olhar o que era
arte e o que não era. Assim, qualquer coisa pode ser uma obra de
arte, na medida em que nós soubermos o que faz com que tal coisa
ou outra seja uma obra de arte.
Mas isso deixava claro que o fim
da arte tinha sido alcançado -já
não poderia haver nenhuma direção histórica. E terminou com o
despertar de um reconhecimento
de quão filosófica era a questão.
Tentei, em "Connections to the
World" (Conexões com o Mundo), mostrar como toda pergunta
filosófica tem a forma: "Dada
duas coisas exteriormente perfeitamente semelhantes, mas uma de
termo F e a outra não, como a diferença pode ser fundamentada, se F
não é uma propriedade observável?". Essa, em resumo, é minha
visão atual. Tudo que pensei em
1964 era que, para explicar uma diferença invisível, mas de enorme
importância, seriam necessários
uma teoria e o conhecimento da
história, que faltava para os que estavam fora do mundo da arte. Mas
eu não quis dizer que o mundo da
arte determina de um modo institucional o que é a arte, como George Dickey viria dizer.
Folha - De certo modo, seu empreendimento filosófico-crítico conecta o teórico e o prático -com
sua atividade na revista "The Nation" -,confrontando o problema
de como analisar criticamente as
obras de arte individuais no contexto de um mundo de arte "pluralista". Mas, se o trabalho da filosofia ocorre "depois que uma forma
de vida completou seu curso", como o crítico procede no amanhecer ou no crepúsculo do presente?
Danto - Pluralismo implica que
qualquer coisa pode ser arte. O que
também implica que nós não podemos descartar que algo não seja
arte com base na aparência. Uma
definição que, na medida em que
eu pude descobrir, não traz nenhum imperativo estilístico. Isso
significa uma liberação profunda
da crítica de arte da ideologia estética.
Quando Judy Chicago mostrou
"The Dinner Party", no Museu
do Brooklyn, uma reação comum
era de que aquilo não era arte, embora fosse muito claro que, sim,
era arte. O pluralismo invalida
aquele tipo de reação de desqualificação. Assim, o crítico tem que
tratar cada trabalho ou cada corpo
de trabalho em termos próprios e
tem que aprender a identificar
qualidade sem referência a imperativos externos. Isso seria tão verdadeiro para a arte do passado como para a arte contemporânea,
mas eu sinto como um dever para
com a minha cultura escrever sobre a arte mais recente, se estou
qualificado para tanto, principalmente porque isso ajuda a definir
quem somos, sem termos ainda
compreendido o que somos. Nossa arte somos nós. Mas muitas teorias desgastadas nos impedem de
reconhecer isso. Ou talvez a psicologia do problema seja mais profunda. Mas eu não sou psicólogo.
Folha - A arte moderna representou sua consciência de si mesma
muitas vezes como "tragédia". A
arte pop a representou como um
tipo de farsa. Como essa autoconsciência é representada nas artes
de hoje?
Danto - Uma grande parte da
arte contemporânea é material
bem pesado, como se poderia esperar, na medida em que foi penetrada pela política da identidade e,
consequentemente, pela exigência
de que devemos expor nossa condição de vítimas. E há um preconceito enraizado que vê a tragédia
como algo mais profundo do que a
comédia. Mas Sócrates indicou
uma identidade entre comédia e
tragédia, e eu não vejo nenhuma
razão pela qual a comédia não possa, como na "Divina Comédia",
ser profunda e nos mostrar nossos
limites e como encontrar a felicidade dentro deles.
A "Divina Comédia", é claro,
não é muito engraçada, mas o riso
é incitado pelo conhecimento de
nossos limites, nossa inabilidade
para permanecer eretos quando
escorregamos em uma casca de
banana. Ou reter uma ereção no
ato de amor -que é ao mesmo
tempo engraçado e trágico, mas
menos trágico do que engraçado,
se pudermos aprender a rir disso.
Mas uma boa parte da arte contemporânea é brilhante e sagaz, seja engraçada ou não.
Marcelo Guimarães Lima é artista plástico,
professor da Universidade de Illinois (EUA) e crítico de arte da revista "New Art Examiner".
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