São Paulo, Domingo, 04 de Abril de 1999
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ESTÉTICA
O filósofo e crítico Arthur Danto explica como a filosofia e a arte superaram suas sucessivas "mortes" neste século
A comédia divina

MARCELO GUIMARÃES LIMA
especial para a Folha

"Podemos viver dentro da história como se vivêssemos fora dela, tal como nos exige a filosofia?", pergunta o filósofo e crítico de arte norte-americano Arthur Danto, nascido em 1924. Dada uma tal exigência, podemos afirmar então que o "paradoxo" de sua teoria da arte é precisamente a tentativa de formular filosoficamente a condição das artes em nosso presente "pós-moderno", condição caracterizada, no dizer do filósofo, pela anomia, a entropia e o "pluralismo". Daí vem a atenção e o interesse que sua obra tem despertado em filósofos, críticos de arte e artistas, desde a publicação de seu artigo "The Artworld" (O Mundo da Arte), em 1964, e em livros como "The Transfiguration of the Commonplace" (A Transfiguração do Lugar-Comum, 1964) e "After the End of Art" (Após o Fim da Arte, 1997), entre outros.
Como crítico de arte, papel que assumiu numa segunda fase da sua carreira, Arthur Danto escreve regularmente para a revista "The Nation". Podemos dizer que o confronto com a arte do presente fornece o impulso e a ocasião para o desenvolvimento da sua teoria da arte. Dentro da tradição socrática, essa é, ou tende a ser, ao mesmo tempo, conhecimento do objeto e uma espécie de terapia da cultura, que, no caso, visa, ao retomar o tema hegeliano do fim da arte, a "libertação da arte de sua própria ideologia".
Como sempre, ao leitor cabe a decisão final do sucesso ou fracasso de um tal empreendimento. Sem dúvida, ele diz respeito à compreensão do presente, pois pensar a arte, conforme diz o filósofo em entrevista à Folha, feita por telefone, é pensar o que somos. Afirmação que por si só já merece nossa atenção.

Folha - A filosofia da ciência foi a disciplina com a qual o sr. se iniciou nos estudos filosóficos, não é certo?
Arthur Danto -
Fui estudar na Universidade de Columbia não porque o departamento me atraísse, mas porque ficava em Nova York, cidade onde eu queria morar. Minha meta era, na ocasião, ser artista. Como veterano do Exército, eu tinha direito a uma bolsa para frequentar a universidade e achei que a filosofia era uma boa disciplina, que me deixaria com bastante tempo para a arte.
Na realidade, o departamento era "bolorento", mesmo com o fato de enfatizar a história da filosofia e de ter alguns historiadores de primeira linha. Ernest Nagel era meu professor e minha dissertação foi sobre a representação histórica. Eu descobri a filosofia analítica em meu primeiro compromisso como professor, em Boulder, Colorado. E foi como o choque de uma revelação súbita, por ser tão clara e brilhante.
Eu voltei no ano seguinte para Columbia como uma espécie de missionário, determinado a atualizar o departamento. Devo dizer que os cursos de estética não me ofereciam nada. No entanto eu me aproximei muito de Suzanne Langer, que lecionava num deles. Eu fiz, como você imagina, filosofia da ciência, já que era o campo que mais desafios apresentava na época... Sidney Morgenbesser e eu publicamos uma primeira antologia de filosofia de ciência que definiu o campo, até o momento em que tudo mudou, sob influência de Thomas Kuhn. E eu escrevi o artigo sobre o tópico para a "Enciclopédia de Filosofia". Minhas primeiras publicações sobre filosofia da história foram também dessa perspectiva, ou seja, a estrutura lógica da explicação histórica. Não sou mais assim tão positivista, mas o modo de formular questões que eu aprendi como filósofo da ciência permanece comigo até hoje.
Folha - A noção hegeliana do fim de arte tem uma contrapartida no marxismo, na noção do fim da filosofia... O fim da filosofia foi proclamado também, de um modo diferente, pelos positivistas lógicos. Podemos pensar que, ao refletir hoje sobre o fim da arte, a filosofia reflete também suas próprias transformações, sua própria "mortalidade"?
Danto -
Não sei bem quando me ocorreu pela primeira vez que o corpo mais influente de trabalhos filosóficos no Ocidente é quase que totalmente construído ao redor de uma condenação -e, eu sentia, um temor- da arte mimética. Isso continua em Hegel, que atribui à arte uma posição menor na tríade que constitui o que ele chamou de Espírito Absoluto, porque a arte não pode se liberar da apresentação sensível.
Os positivistas, é claro, desconsideravam a poesia, que concebiam como cognitivamente vazia, embora alguns deles gostassem de ler poemas. Em todo caso, a filosofia parecia projetada para excluir a arte de qualquer maneira -para desqualificá-la, para condená-la ao banimento. E isso, eu pensei, explicaria a própria estrutura do pensamento filosófico, projetado como um tipo de labirinto no qual a arte deve ser confinada como um Minotauro, para evitar pôr em risco a sociedade.
Assim foram relacionadas, uma à outra, a arte e a filosofia, como negativo e positivo. Se correto, esse ponto de vista libera a arte imediatamente da filosofia e libera a filosofia de si mesma. A arte provavelmente não precisa realmente de liberação, embora os artistas tenham mostrado uma certa consciência intranquila em relação à viabilidade de seus esforços. Eu tentei remover todas as restrições filosóficas, o que coloca a arte em um estado pós-histórico. Pós-histórico, porque a história foi especificada pela desqualificação constante da arte.
É verdade que o marxismo fala, prematuramente, do fim da filosofia, mas a maioria dos sistemas do século 20 são essencialmente estratégias para nos livrar da filosofia de uma vez por todas. O positivismo, o pragmatismo, a fenomenologia, a filosofia analítica, em todas as suas fases, buscaram pôr qualquer outra coisa no lugar ocupado pela filosofia. Rorty busca substituir filosofia por conversação e trata as questões da filosofia no espírito de zombaria intelectual. Podemos fazer um paralelo entre o fim da arte e o fim da filosofia. A arte termina quando sua natureza filosófica é trazida à consciência, e talvez a filosofia termine quando fica claro, afinal, o que filosofia é.
A magnificência do sistema de Hegel é que todas as narrativas importantes terminam com o amanhecer de consciência e, consequentemente, da verdade reflexiva. E, da mesma maneira que arte continua sendo feita depois do fim, assim também a filosofia. A triste verdade é que a filosofia pós-histórica é bem insossa e sem cor, em contraste com arte pós-histórica, na qual a sensação de liberação é tão viva. E, eu devo dizer, não há nesse fim de século nenhum consenso sobre o que a filosofia é. Eu penso que, em contraste, nós chegamos a um sentido mínimo, condicional, sobre o que arte é.
Folha - Como o sr. definiria esse "sentido condicional"?
Danto -
Em "A Transfiguração do Lugar-Comum" são especificados dois componentes para uma definição de arte: (a) o objeto tem que ter conteúdo ou "aboutness" (ser a respeito de algo); e (b) tem que encarnar ou corporificar aquele conteúdo. A definição é condicional não porque esses sejam aspectos condicionais ou provisórios, mas porque mais é necessário. Ultimamente eu tenho trabalhado com uma terceira condição: conteúdo e incorporação devem ser conectados por uma crítica de arte satisfatória em relação ao objeto. Ver algo como arte é estar em posição de relacionar-se criticamente ao objeto. Se isso completaria a definição, eu não sei dizer. Mas eu gosto da idéia de colocar construtivamente a crítica de arte dentro da estrutura essencial da arte.
Folha - O sr. data a realização "final" da autoconsciência da arte com os "ready-mades" de Duchamp e as "Caixas de Brilho" de Warhol. O trabalho de Warhol o conduziu a uma investigação filosófica de dois problemas inter-relacionados: o primeiro, sobre a natureza ontológica dos objetos de arte que não podem ser perceptualmente distinguidos de objetos ordinários -um fato que localiza a questão do caráter artístico desses objetos não nas suas qualidades físicas, mas em outra dimensão. O outro é o problema histórico de saber por que esses objetos puderam ser vistos como arte em um determinado período, mas não em outro. Gostaria de lhe perguntar como o sr. vê essa questão agora.
Danto -
Eu já não me recordo de meu estado de espírito preciso em 1964, na época em que eu estava entusiasmado com as "Caixas de Brilho" de Warhol. Estou certo de que o que eu viria a escrever sobre o trabalho não estava na minha mente naquela ocasião, mas a experiência deu lugar a uma pergunta de ontologia e uma pergunta de história.
Ontologicamente, a pergunta era por que aquilo era uma obra de arte, quando algo que há pouco se parecia exatamente com aquilo não era. Isso queria dizer que o significado de "arte" não podia ser clarificado simplesmente pelo exame das obras de arte, já que as diferenças pertinentes eram invisíveis. O que implicava igualmente que não se podia identificar ou discriminar por meio do olhar o que era arte e o que não era. Assim, qualquer coisa pode ser uma obra de arte, na medida em que nós soubermos o que faz com que tal coisa ou outra seja uma obra de arte.
Mas isso deixava claro que o fim da arte tinha sido alcançado -já não poderia haver nenhuma direção histórica. E terminou com o despertar de um reconhecimento de quão filosófica era a questão. Tentei, em "Connections to the World" (Conexões com o Mundo), mostrar como toda pergunta filosófica tem a forma: "Dada duas coisas exteriormente perfeitamente semelhantes, mas uma de termo F e a outra não, como a diferença pode ser fundamentada, se F não é uma propriedade observável?". Essa, em resumo, é minha visão atual. Tudo que pensei em 1964 era que, para explicar uma diferença invisível, mas de enorme importância, seriam necessários uma teoria e o conhecimento da história, que faltava para os que estavam fora do mundo da arte. Mas eu não quis dizer que o mundo da arte determina de um modo institucional o que é a arte, como George Dickey viria dizer.
Folha - De certo modo, seu empreendimento filosófico-crítico conecta o teórico e o prático -com sua atividade na revista "The Nation" -,confrontando o problema de como analisar criticamente as obras de arte individuais no contexto de um mundo de arte "pluralista". Mas, se o trabalho da filosofia ocorre "depois que uma forma de vida completou seu curso", como o crítico procede no amanhecer ou no crepúsculo do presente?
Danto -
Pluralismo implica que qualquer coisa pode ser arte. O que também implica que nós não podemos descartar que algo não seja arte com base na aparência. Uma definição que, na medida em que eu pude descobrir, não traz nenhum imperativo estilístico. Isso significa uma liberação profunda da crítica de arte da ideologia estética.
Quando Judy Chicago mostrou "The Dinner Party", no Museu do Brooklyn, uma reação comum era de que aquilo não era arte, embora fosse muito claro que, sim, era arte. O pluralismo invalida aquele tipo de reação de desqualificação. Assim, o crítico tem que tratar cada trabalho ou cada corpo de trabalho em termos próprios e tem que aprender a identificar qualidade sem referência a imperativos externos. Isso seria tão verdadeiro para a arte do passado como para a arte contemporânea, mas eu sinto como um dever para com a minha cultura escrever sobre a arte mais recente, se estou qualificado para tanto, principalmente porque isso ajuda a definir quem somos, sem termos ainda compreendido o que somos. Nossa arte somos nós. Mas muitas teorias desgastadas nos impedem de reconhecer isso. Ou talvez a psicologia do problema seja mais profunda. Mas eu não sou psicólogo.
Folha - A arte moderna representou sua consciência de si mesma muitas vezes como "tragédia". A arte pop a representou como um tipo de farsa. Como essa autoconsciência é representada nas artes de hoje?
Danto -
Uma grande parte da arte contemporânea é material bem pesado, como se poderia esperar, na medida em que foi penetrada pela política da identidade e, consequentemente, pela exigência de que devemos expor nossa condição de vítimas. E há um preconceito enraizado que vê a tragédia como algo mais profundo do que a comédia. Mas Sócrates indicou uma identidade entre comédia e tragédia, e eu não vejo nenhuma razão pela qual a comédia não possa, como na "Divina Comédia", ser profunda e nos mostrar nossos limites e como encontrar a felicidade dentro deles.
A "Divina Comédia", é claro, não é muito engraçada, mas o riso é incitado pelo conhecimento de nossos limites, nossa inabilidade para permanecer eretos quando escorregamos em uma casca de banana. Ou reter uma ereção no ato de amor -que é ao mesmo tempo engraçado e trágico, mas menos trágico do que engraçado, se pudermos aprender a rir disso. Mas uma boa parte da arte contemporânea é brilhante e sagaz, seja engraçada ou não.


Marcelo Guimarães Lima é artista plástico, professor da Universidade de Illinois (EUA) e crítico de arte da revista "New Art Examiner".



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