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Lembranças de maio
O HISTORIADOR INGLÊS PETER BURKE RECORDA O IMPACTO DAS MOBILIZAÇÕES NA FRANÇA E NA
TCHECOSLOVÁQUIA E AS CONQUISTAS PARA O FEMINISMO, OS COSTUMES E OS DIREITOS CIVIS
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Uma das datas da
qual os membros
da minha geração
jamais vão se esquecer é 1968,
graças a dois acontecimentos,
um em Praga e o outro em
Paris.
O primeiro foi a chamada
Primavera de Praga -em outras palavras, o "socialismo
com face humana" incentivado por Alexander Dubcek,
que se tornou primeiro secretário do Partido Comunista
da Tchecoslováquia em janeiro daquele ano.
O segundo acontecimento
memorável ou, melhor dizendo, série de acontecimentos
-"os acontecimentos", como
os franceses os descreveram
na época- se deu em Paris,
dentro e em volta de duas
universidades: Sorbonne, no
centro da cidade, e Nanterre,
em sua periferia.
Os estudantes foram liderados por trotskistas (expulsos da União dos Estudantes
Comunistas Franceses em
1965), maoístas e anarquistas
(sobretudo o carismático Daniel Cohn-Bendit, que se tornaria um respeitável deputado no Parlamento Europeu).
Os estudantes se revoltaram, hastearam bandeiras
vermelhas, atiraram coquetéis Molotov, lutaram contra
a polícia ou fugiram dela, arrancaram paralelepípedos
das ruas, ergueram barricadas (pela primeira vez desde
a Segunda Guerra), atacaram
os escritórios da American
Express e do banco Chase
Manhattan em Paris e, no dia
10 de maio de 1968, ocuparam a Sorbonne, convertendo-a numa espécie de comuna estudantil.
De Gaulle queria enviar o
Exército para intervir, mas
foi persuadido a não fazê-lo,
já que os soldados, em sua
maioria rapazes que cumpriam o serviço militar obrigatório, poderiam querer se
confraternizar com os estudantes.
As principais armas empregadas contra eles foram
investidas com gás lacrimogêneo e cassetetes.
Slogans e pichações
As revoltas estudantis não
costumam conquistar a simpatia do público, mas esses fatos o fizeram. Mesmo as pichações nos muros foram fotografadas e reproduzidas na
imprensa, sendo imitadas em
outras cidades, como Oxford.
Algumas daquelas pichações são recordadas até hoje,
especialmente "A imaginação
ao poder!". Algumas delas seguiam a tradição das revoluções: "Abaixo o Estado", por
exemplo, ou "Abolição da sociedade de classes!".
Outras expressavam críticas à tradição revolucionária,
exortando ao sexo em vez do
trabalho e à espontaneidade
em lugar da disciplina ("Aqui
se "espontaneiza'").
Outras pichações, ainda,
defendiam posturas francamente hedonistas ("Viver o
presente" ou "Trabalhadores
do país, divirtam-se!"), expressando um pouco do espírito carnavalesco dos próprios acontecimentos.
Algumas pichações eram
citações, reconhecidas ou
não, de Bakunin, Nietzsche,
Unamuno, Heráclito etc. Outras ofereciam epigramas originais, como "As paredes têm
ouvidos. Seus ouvidos têm
paredes" ou "A barricada fecha a rua, mas abre a via".
Vistas em conjunto, essas
inscrições transmitem de
maneira vívida uma crítica
veemente à religião, ao Estado (especialmente a polícia),
ao sistema educacional e à sociedade de consumo ("A mercadoria é o ópio do povo").
A inspiração de muitas dessas pichações, assim como
dos acontecimentos como
um todo, veio do chamado
"situacionista" Guy Debord,
autor de "A Sociedade do Espetáculo" (1967), de intelectuais de esquerda como Henri Lefebvre, Louis Althusser, Cornelius Castoriadis e Claude Lefort, de Mao Tse-tung,
tão popular entre a esquerda
nos anos 1960, e, voltando
mais atrás, de Marx, Lênin e
Trótski.
Alguma revolução
Hoje, 40 anos depois, seria
interessante que alguém entrevistasse os autores das pichações -se soubéssemos
quem são!- para lhes perguntar o que pensam hoje das
idéias e dos sentimentos que,
na época, expressaram publicamente com tanta pungência.
O que essas pichações tornam muito claro é o desejo ou
a esperança de muitos de seus
autores por alguma espécie
de revolução política ou social, um novo 1789 ou, quem
sabe, um novo 1848 ou mesmo uma revolução cultural
como a que estava acontecendo na China, enquanto ocupavam a Sorbonne e eram
elogiados por alguns intelectuais franceses, incluindo
Jean-Luc Godard.
Até que ponto essa revolução teve êxito?
A pergunta era muito difícil
de responder na época, mas
hoje, passados 40 anos, algumas coisas já se tornaram
mais claras. Os acontecimentos ajudaram a derrubar o
presidente Charles de Gaulle,
que renunciou ao cargo em
abril de 1969.
Por outro lado, De Gaulle
foi sucedido por seu antigo
primeiro-ministro, Georges
Pompidou, que não era mais
aberto que seu antecessor às
idéias dos estudantes.
Ganhos indiretos
Os acontecimentos de 1968
instigaram o governo a empreender uma reforma das
universidades, multiplicando
o número de estudantes, mas
não conseguindo ampliar a
infra-estrutura acadêmica de
modo a satisfazer as suas necessidades.
É possível que as conseqüências mais duradouras do
Maio de 1968 tenham sido indiretas, de natureza cultural,
mais que estrutural.
O exemplo dos estudantes
parece ter encorajado o movimento feminista francês,
além de aumentar a consciência política de alguns intelectuais, como foi o caso de
Michel de Certeau [1925-86].
Num artigo publicado algumas semanas apenas após os
acontecimentos, ele -com um entusiasmo talvez inesperado, em se tratando de um
jesuíta de meia-idade- escreveu que "em maio de 1968,
tomou-se a palavra como tomou-se a Bastilha em 1789".
A interpretação que Certeau fez dos fatos do Maio de
1968 pode ser aplicada a ele
próprio. Antes de 1968, ele
era um historiador da espiritualidade que também se debruçava sobre a reforma da
igreja.
Depois de escrever esse célebre artigo sobre 1968, porém, Certeau foi projetado
para sua segunda carreira, a
de analista da sociedade contemporânea, discutindo e criticando as idéias de Michel
Foucault e Pierre Bourdieu,
tendo escrito "A Cultura no
Plural" (1974) e "A Invenção
do Cotidiano" (1980), além de
dar palestras nos EUA, no
Brasil e em outros países.
Em suma, como é o caso de
revoluções em escala maior,
os acontecimentos de 1968
incentivaram algumas pessoas a alimentar pensamentos novos, dando asas a sua
criatividade.
Para deixar a última palavra às pichações, "a revolução
é uma iniciativa". "Criemos
comitês de sonhos." "A ação
não deve ser reação, mas criação." "Criem!"
PETER BURKE , 70, é historiador inglês, autor
de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar).
Escreve na seção "Autores", do Mais! .
Tradução de Clara Allain .
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