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+ Literatura
FORA DE JOGO
TRANSFORMADO EM OPERÁRIO, ESCRITOR TROCOU "MILAGRE" POR
ESPECIALIZAÇÃO
A multidão de blogueiros
trocaria de bom grado sua liberdade no ciberespaço por um contrato numa editora
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ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A marcação temporal
em "Maio de 68" é
enganosa. É certo
que houve um mês
de maio no ano de
1968, mas não é dele que se fala
quando se fala dele: a dimensão
simbólica da data é muito
maior do que a sua dimensão
histórica.
"Maio de 68" é uma metáfora, como "Paris" é uma metáfora (dizia Cortázar) ao situar-se
junto à data, que a tudo contamina de símbolo. Como se dá
na Bíblia, quando os eventos
históricos da vida de Cristo são
também alegoria de todos os
eventos da história do homem,
do Gênese ao Apocalipse.
De resto, é sabido o que Maio
de 68 alegoriza: juventude, liberdade, comunidade, igualdade, utopia, revolução, direitos
de minorias, paz e amor livre:
um continuado êxtase.
Por isso mesmo, está claro
que também alegoriza, por negação, a ausência de contradição na vida real, pois, nesta, liberdade não rima com igualdade, como alertou Isaiah Berlin;
revolução e utopia acabam por
ser mutuamente excludentes,
como demonstraram os regimes revolucionários efetivamente implantados.
Ao alegorizar o fim da existência agônica, Maio de 68 é
também alegoria de um milagre. Tudo se concilia numa
grande prece para que nada
contradiga o desejo mais coletivo e o mais pessoal.
Como disse [o filósofo] Boris
Groys: "É absolutamente evidente que os anos 60 foram um
presente divino. O ano de 1968
foi um afluxo súbito de energia.
Por todo o mundo -em Moscou, em Praga, na América, na
China, em Paris, (...) na Alemanha-, muitas pessoas começaram a reivindicar: queremos fazer qualquer coisa sem ter de fazê-lo. Queremos transformar
os prazeres em trabalho e o trabalho em prazer. (...) É isso o
que disseram, o que sentiram, e
saíram em manifestação para
exigi-lo -e, afinal, para exigi-lo
de Deus, porque nenhum governo deste mundo pode dar
qualquer coisa desse gênero.
Era, por assim dizer, uma reivindicação dirigida ao céu".
E então, nessa prece, que
versículo toca à literatura?
Quando rezamos pelo milagre do fazer tudo sem o trabalho de fazer nada, a obra perfeita sem a mão que a efetue, a potência do pensamento que não
se reduz com o ato de pensar,
estamos imaginando que a vida
deva ser pautada pela literatura ou, por extensão, pela arte.
Pensamos nosso corpo como
escritura e nossa vida como
obra de arte.
Mas, se o Maio de 68 pode
ser entendido simbolicamente
como submissão da vida à arte,
que anula as contradições do
real no gozo, a segunda coisa a
dizer é que tal literatura é estranha à literatura.
Pois a questão decisiva da literatura não é liberar ou curar,
mas, ao contrário, articular um
nexo com o legado cultural,
produzir um ato de inteligência
capaz de estabelecer correspondência com o passado, em
busca de alguma forma de
transcendência. Nesse ato, a
menos que a obra se esgote em
seu consumo, o presente ocupa
apenas parte dele.
Só um ofício a mais
E a "literatura hoje", o que
pode ser? Para que a comparação se efetue, é preciso encontrar seu núcleo simbólico igualmente. Está claro que a literatura já não pensa em pautar a
vida: do milagre não resta nem
sequer memória (a não ser talvez instrumental).
Ele já não tem pretensão de
ser vetor da vida pessoal ou coletiva. Quer apenas pautar-se
pela vida, num modesto realismo. Quer estar na vida como
tudo que está nela: como um
ofício a mais, como um trabalho sério e miúdo de operário,
em que o melhor sonho é ser
"autor de tal empresa".
A multidão de blogueiros, no
fundo, trocaria de bom grado
sua liberdade no ciberespaço
por um contrato numa editora
tradicional.
Assim, a dimensão simbólica
da "literatura hoje" veste colarinho puído: orgulha-se de fazer bem feito o servicinho do
dia-a-dia, bagrinho da estiva
dos negócios. Também por isso, por ter sede na vida ordinária, "literatura hoje" está fora
da literatura pra valer.
Pois esta não pode estar no
esforço de vestir a camisa da
empresa, mas no de dialogar
com a vida intelectual, cujo horizonte constitui, afinal de contas, um campo de problemas
sem solução, não a oportunidade ou o êxito no mercado.
Isso posto, os "40 anos depois" significam basicamente
que saltamos do "Livro de Horas" para o Livro de Ponto, pulando a literatura.
De lá para cá, ela sempre esteve fora do jogo principal. No
Maio de 68, o escritor era inútil
porque todos tinham obrigação
de sê-lo, uma vez que a função
da vida era ser obra de arte.
Agora tampouco vale grande
coisa, porque, conquanto trabalhador especializado, como
todos os outros, o escritor é um
caso de RH, aspirante a funcionário. No Maio de 68 partilhamos o milagre; hoje, a banalidade. A literatura passa ao largo
de ambas as metáforas. Apenas
cuida de ouvir as vozes literais,
presença viva, dos mortos.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da
Universidade Estadual de Campinas (SP) e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).
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