São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008

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+ Filosofia

VAMOS INVADIR!

DE ALGOZ E SALVADOR DO CAPITALISMO, MOVIMENTO RENASCE HOJE CONTRA O SISTEMA

JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Liqüidar a herança do Maio de 68: essa foi uma das grandes palavras de ordem da campanha presidencial de Nicolas Sarkozy. Mas ele se enganou sobre a época: a liqüidação intelectual dessa herança havia começado com a chegada ao poder do Partido Socialista em 1981 e foi, basicamente, conduzida por intelectuais que se diziam de esquerda.
O que havia, portanto, de tão terrível para liqüidar? Qualquer que tenha sido a parte das ilusões e dos desprezos dessa época, uma coisa é certa: a paisagem de maio de 1968 foi a das manifestações e assembléias em pátios de fábricas em greve, enfeitados de bandeiras vermelhas ao som de palavras de ordem anticapitalistas e contra o Estado.
Na França, esse movimento foi o ponto culminante do grande "revival" do pensamento marxista e da esperança revolucionária que se alimentou, nos anos 1960, da energia das lutas de descolonização e dos movimentos de emancipação do Terceiro Mundo.
Ele acreditou encontrar seus modelos na Revolução Cubana [1959] ou na Revolução Cultural chinesa e nos princípios de um marxismo regenerado na teoria de Louis Althusser, nos chamados à ação de Frantz Fanon ou nas análises das novas formas de exploração capitalista e da resistência operária conduzidas pelos marxistas italianos.
Mas Maio de 68 foi sobretudo a revelação de um segredo perturbador: a ordem de nossas sociedades e de nossos Estados -uma ordem aparentemente garantida pela multiplicidade dos aparelhos estatais de gestão populacional e pelo intricamento das vias individuais na lógica global da economia capitalista- poderia desmoronar em poucas semanas.
Em maio de 1968, na França, quase em todos os setores, foram questionadas as estruturas hierárquicas que organizavam as atividades intelectual, econômica e social, como se subitamente se revelasse que a política não tinha outro fundamento além da ilegitimidade por trás de toda dominação.
Esse gênero de aturdimento não conduz por si só a um resultado determinado. É principalmente o questionamento de todos os esquemas de evolução histórica que atribuem a essa revolução um objetivo necessário.
Os militantes do Maio de 68 pensavam fazer a revolução marxista. Mas, ao contrário, sua ação a desfazia, ao mostrar que uma revolução é um processo autônomo de reconfiguração do visível, do pensável e do possível, e não a realização de um movimento histórico conduzido por um partido político até sua meta.
Essa lição não agrada aos sábios em revoluções e em ciências sociais. Quando a efervescência dos anos 68 terminou, com a chegada dos socialistas ao poder, o trabalho de desfiguração pôde começar.
Primeiramente, ele eliminou a dimensão internacional e, depois, a dimensão social e operária do movimento. Os 9 milhões de operários em greve e as bandeiras vermelhas em todas as fábricas desapareceram da memória.
Maio de 68 foi definitivamente consagrado como uma revolta da juventude. A juventude é tida como o tempo dos amores, e o movimento de 1968 foi assimilado a uma aspiração dos jovens a abolir o jugo paterno e os tabus sexuais. Mas por que uma reivindicação inerente à própria natureza da juventude teria esperado até então para provocar essa insurreição em massa?
A resposta estava pronta: o que motivou essa insurreição da juventude foi, disseram, o frenesi de consumo nascido da prosperidade dos anos 50, foi a incitação ao gozo desenvolvida, com suas vitrinas e sua publicidade, pela triunfante sociedade de consumo.
Na verdade, a crítica a essa sociedade havia sido uma das grandes palavras de ordem do movimento de 1968, mas pouco importa: Maio de 68 tornou-se retrospectivamente o movimento de uma juventude impaciente para gozar todas as promessas do livre consumo do sexo e das mercadorias.

Peso desastroso
Nos anos 60, sociólogos americanos já haviam reconvertido suas esperanças revolucionárias frustradas em crítica aos perigos do individualismo consumidor para o bem público. Os esquerdistas franceses reconvertidos dos anos 80 retomaram maciçamente o tema.
Assim, o movimento de 1968, depois de ser reduzido a transbordamentos de juventude sem conseqüência para a ordem social, viu-se carregado, ao inverso, de um peso histórico desastroso. Era, diziam eles, a insurreição do individualismo democrático destruindo todas as estruturas de autoridade que mantinham a vida social: família, religião ou escola.
Ao transformar a sociedade inteira em uma agregação de consumidores narcisistas, desligados de qualquer elo social, ele garantiu o triunfo definitivo do mercado capitalista.
Mas ainda não bastava. Era preciso provar que ele havia oferecido ao capitalismo não somente seus sonhados consumidores, mas os meios para sua reorganização.
Dois sociólogos -Luc Boltanski e Eve Chiapello- publicaram em 1999 "Le Nouvel Esprit du Capitalisme" [O Novo Espírito do Capitalismo], destinado a sustentar uma tese simples: se o capitalismo em dificuldades havia conseguido superar a crise dos anos 70, foi graças às idéias emprestadas da "crítica artista" realizada pelos estudantes -o privilégio dado à livre criatividade e à atividade em rede contra as estruturas de direção tradicionais.
A verborragia da filosofia gerencial servia como peça de convicção para apoiar a tese de um capitalismo à moda de 68, transformando o executivo em treinador, favorecendo o dinamismo individual de assalariados tolerantes e flexíveis, envolvidos com entusiasmo em estruturas leves e inovadoras.
Na verdade, esses temas de um capitalismo "new look" foram elaborados antes de 1968. E, principalmente em nome da globalização, o patronato soube encontrar meios de pressão sobre os salários e a produtividade de seus empregados mais diretos que esses idílios para seminários de gerentes.

Ressurgimento
Mas, assim, a grande inversão estava concluída. Maio de 68 estava consagrado como o providencial salvador do capitalismo decadente. Sarkozy podia chegar. Não havia mais nada para liqüidar.
Mas isso quer dizer justamente que a tendência podia começar a se inverter. Este aniversário deveria ser um enterro definitivo. Mas foi, ao contrário, a ocasião para ressurgir uma multiplicidade de testemunhos e documentos que reatualizam o teor político do movimento e seu caráter anticapitalista de massa.
A liqüidação da liqüidação talvez tenha começado.


JACQUES RANCIÈRE é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "A Partilha do Sensível" (ambos pela ed. 34). Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .


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