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+ Filosofia
VAMOS INVADIR!
DE ALGOZ E SALVADOR DO CAPITALISMO, MOVIMENTO RENASCE
HOJE CONTRA O SISTEMA
JACQUES RANCIÈRE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Liqüidar a herança do
Maio de 68: essa foi
uma das grandes palavras de ordem da campanha presidencial de
Nicolas Sarkozy. Mas ele se enganou sobre a época: a liqüidação intelectual dessa herança
havia começado com a chegada
ao poder do Partido Socialista
em 1981 e foi, basicamente,
conduzida por intelectuais que
se diziam de esquerda.
O que havia, portanto, de tão
terrível para liqüidar?
Qualquer que tenha sido a
parte das ilusões e dos desprezos dessa época, uma coisa é
certa: a paisagem de maio de
1968 foi a das manifestações e
assembléias em pátios de fábricas em greve, enfeitados de
bandeiras vermelhas ao som de
palavras de ordem anticapitalistas e contra o Estado.
Na França, esse movimento
foi o ponto culminante do
grande "revival" do pensamento marxista e da esperança revolucionária que se alimentou,
nos anos 1960, da energia das
lutas de descolonização e dos
movimentos de emancipação
do Terceiro Mundo.
Ele acreditou encontrar seus
modelos na Revolução Cubana
[1959] ou na Revolução Cultural chinesa e nos princípios de
um marxismo regenerado na
teoria de Louis Althusser, nos
chamados à ação de Frantz Fanon ou nas análises das novas
formas de exploração capitalista e da resistência operária
conduzidas pelos marxistas
italianos.
Mas Maio de 68 foi sobretudo a revelação de um segredo
perturbador: a ordem de nossas sociedades e de nossos Estados -uma ordem aparentemente garantida pela multiplicidade dos aparelhos estatais
de gestão populacional e pelo
intricamento das vias individuais na lógica global da economia capitalista- poderia desmoronar em poucas semanas.
Em maio de 1968, na França,
quase em todos os setores, foram questionadas as estruturas
hierárquicas que organizavam
as atividades intelectual, econômica e social, como se subitamente se revelasse que a política não tinha outro fundamento além da ilegitimidade
por trás de toda dominação.
Esse gênero de aturdimento
não conduz por si só a um resultado determinado.
É principalmente o questionamento de todos os esquemas
de evolução histórica que atribuem a essa revolução um objetivo necessário.
Os militantes do Maio de 68
pensavam fazer a revolução
marxista. Mas, ao contrário,
sua ação a desfazia, ao mostrar
que uma revolução é um processo autônomo de reconfiguração do visível, do pensável e
do possível, e não a realização
de um movimento histórico
conduzido por um partido político até sua meta.
Essa lição não agrada aos sábios em revoluções e em ciências sociais. Quando a efervescência dos anos 68 terminou, com a chegada dos socialistas
ao poder, o trabalho de desfiguração pôde começar.
Primeiramente, ele eliminou
a dimensão internacional e, depois, a dimensão social e operária do movimento. Os 9 milhões de operários em greve e as bandeiras vermelhas em todas as fábricas desapareceram
da memória.
Maio de 68 foi definitivamente consagrado como uma
revolta da juventude. A juventude é tida como o tempo dos
amores, e o movimento de
1968 foi assimilado a uma aspiração dos jovens a abolir o jugo
paterno e os tabus sexuais.
Mas por que uma reivindicação inerente à própria natureza da juventude teria esperado
até então para provocar essa
insurreição em massa?
A resposta estava pronta: o
que motivou essa insurreição
da juventude foi, disseram, o
frenesi de consumo nascido da
prosperidade dos anos 50, foi a
incitação ao gozo desenvolvida,
com suas vitrinas e sua publicidade, pela triunfante sociedade
de consumo.
Na verdade, a crítica a essa
sociedade havia sido uma das
grandes palavras de ordem do
movimento de 1968, mas pouco importa: Maio de 68 tornou-se retrospectivamente o movimento de uma juventude impaciente para gozar todas as
promessas do livre consumo do
sexo e das mercadorias.
Peso desastroso
Nos anos 60, sociólogos americanos já haviam reconvertido
suas esperanças revolucionárias frustradas em crítica aos
perigos do individualismo consumidor para o bem público. Os
esquerdistas franceses reconvertidos dos anos 80 retomaram maciçamente o tema.
Assim, o movimento de 1968,
depois de ser reduzido a transbordamentos de juventude
sem conseqüência para a ordem social, viu-se carregado, ao
inverso, de um peso histórico
desastroso.
Era, diziam eles, a insurreição do individualismo democrático destruindo todas as estruturas de autoridade que mantinham a vida social: família, religião ou escola.
Ao transformar a sociedade
inteira em uma agregação de
consumidores narcisistas, desligados de qualquer elo social,
ele garantiu o triunfo definitivo
do mercado capitalista.
Mas ainda não bastava. Era
preciso provar que ele havia
oferecido ao capitalismo não
somente seus sonhados consumidores, mas os meios para sua
reorganização.
Dois sociólogos -Luc Boltanski e Eve Chiapello- publicaram em 1999 "Le Nouvel Esprit du Capitalisme" [O Novo Espírito do Capitalismo], destinado a sustentar uma tese simples: se o capitalismo em dificuldades havia conseguido superar a crise dos anos 70, foi
graças às idéias emprestadas da
"crítica artista" realizada pelos
estudantes -o privilégio dado à
livre criatividade e à atividade
em rede contra as estruturas de
direção tradicionais.
A verborragia da filosofia gerencial servia como peça de
convicção para apoiar a tese de
um capitalismo à moda de 68,
transformando o executivo em
treinador, favorecendo o dinamismo individual de assalariados tolerantes e flexíveis, envolvidos com entusiasmo em estruturas leves e inovadoras.
Na verdade, esses temas de
um capitalismo "new look" foram elaborados antes de 1968.
E, principalmente em nome da
globalização, o patronato soube
encontrar meios de pressão sobre os salários e a produtividade de seus empregados mais diretos que esses idílios para seminários de gerentes.
Ressurgimento
Mas, assim, a grande inversão estava concluída. Maio de
68 estava consagrado como o
providencial salvador do capitalismo decadente.
Sarkozy podia chegar. Não
havia mais nada para liqüidar.
Mas isso quer dizer justamente que a tendência podia
começar a se inverter. Este aniversário deveria ser um enterro
definitivo. Mas foi, ao contrário, a ocasião para ressurgir
uma multiplicidade de testemunhos e documentos que reatualizam o teor político do movimento e seu caráter anticapitalista de massa.
A liqüidação da liqüidação
talvez tenha começado.
JACQUES RANCIÈRE é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" e "A Partilha do Sensível" (ambos pela ed. 34). Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
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