São Paulo, domingo, 04 de junho de 2000


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Marginais aqui e lá

por Luiz Costa Lima

Data de poucas décadas o hiato entre o trabalho universitário e a colaboração jornalística. Foi ele então justificado pela diferença de metas de um e outro. O trabalho universitário envolve pesquisa especializada, dirigida a uma minoria de especialistas, ao passo que o trabalho jornalístico visa à cobertura da atualidade, com ênfase na notícia, no fato e seu comentário. À divisão do trabalho correspondia uma diferença de linguagem: porque dirigido a um número sensivelmente menor de leitores, com interesses de antemão definidos, o texto universitário não sofre as mesmas restrições de expressão a que o jornalista, porque escreve para todos os públicos, está obrigado. A divisão, pois, entre pesquisa e informação é uma resultante da complexificação da sociedade industrial. À medida que, mais recentemente, a divisão se radicalizou, desapareceu, enquanto profissão, o jornalismo cultural. Por isso, no panorama internacional, figuras como Willi Haas, Edmund Wilson e Lionel Trilling não tiveram descendentes, o mesmo sucedendo, entre nós, com Otto Maria Carpeaux, Anatol Rosenfeld e Álvaro Lins. Em seu lugar, cresceu a hostilidade estéril entre o produtor universitário e o jornalista, um acusado de "escrever difícil", o outro, de leviandade. Razões econômicas e socioculturais provocaram a ruptura da colaboração regular entre intelectuais e jornalistas. Do ponto de vista do jornal, o desinteresse por temas culturais que não fossem notícias não representava uma perda considerável de vendas, significando ademais a ocupação de um espaço muito mais rentável com a publicidade. Do ponto de vista sociocultural, desde o fim da Segunda Grande Guerra, a literatura e as artes deixaram de ter o prestígio público que tinham tido no século passado e que então justificava as "Causeries du Lundi", publicadas por Sainte-Beuve, em jornais parisienses, entre 1849 e 1861 e os debates, que se lhes seguiram, em revistas e jornais, sobre o impressionismo. Se as razões para a ruptura eram incontornáveis, suas consequências não foram menos graves, para os autores e para o público. Do ponto de vista do autor, já no século 18, os produtores de cultura tinham compreendido que precisavam usar dois tipos diferentes de linguagem, uma adequada ao receptor especializado, a outra para o público geral. A formulação que um Kant empregaria em "Que É o Iluminismo?" não podia se comparar ao grau de complexidade de suas três "Críticas". Ao livro se reservava a produção mais cerrada ou a divulgação mais extensa; ao jornal e às revistas ilustradas, uma linguagem direta, de absorção mais rápida. Para o escritor em geral, a dualidade de formas havia sido uma ginástica salutar, uma maneira de aprender a usar a "mão esquerda". No caso das sociedades periféricas, como a nossa, o jornal era para o escritor uma escola indispensável -diga-o o nosso Machado. Os exemplos mostram que o divórcio entre o intelectual, que será basicamente aproveitado pela universidade, e o jornalista não foi exclusividade nossa. Mas o prejuízo maior veio a ser nosso. Nos países de forte tradição cultural, jornais de prestígio mantêm um espaço considerável para os debates intelectuais. Nos países em que a indústria do livro tem peso, criaram-se jornais apenas dedicados à cobertura de livros, como o hoje imprescindível "The New York Review of Books". Entre nós, só uns raros periódicos mantiveram seus suplementos literários ou só há poucos anos outros procuraram atrair produtores intelectuais, sem, obviamente, se concentrarem apenas na área literária. Meu propósito será aqui mostrar por que essa aliança precisa ser incentivada e não só mantida. Meu argumento acentuará dois pontos: A) o perfil das humanidades na universidade brasileira atual e B) a posição ocupada pelo Brasil, no estrangeiro, entre as áreas academicamente legitimadas. A) Por humanidades estarei entendendo o campo intelectual não incluído nas chamadas ciências "duras" (ou, mais impropriamente, exatas). Formulação direta: exceto pela ação de uma dezena de produtores, já maduros ou ainda jovens, é lamentável o estado das humanidades na universidade brasileira. Dentro das condições vigentes de trabalho, o espantoso seria o contrário. Até a geração imediatamente posterior a Antonio Candido, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque, a carreira universitária ainda era algo digno, ao menos para aqueles menos atraídos pela sede de riqueza e exercício de influência do que pelo propósito de crescer intelectualmente. Paradoxalmente, nossa última ditadura, ainda que tenha afastado parte dos quadros universitários, manteve essa possibilidade. E isso porque os que éramos então jovens acreditávamos que o trabalho universitário oferecia, embora sob riscos e restrições evidentes, meios de resistência para o tipo de modernização que a ditadura pretendia e porque a ditadura facultou a proliferação, e não só nas áreas técnicas, dos cursos de pós-graduação. Em troca, a redemocratização conservadora que tem estado em processo desde fins da década de 80 corrompeu e dissipou aquela esperança.


O ensino entre nós é uma forma de negócio; ensinar a pensar, ensinar a pesquisar são antiqualhas, o que importa é dispor de muitas máquinas -nós que apreciamos tanto o exemplo americano mostramos que dele só aprendemos o mais superficial


Burocracia sem fim
Os postos universitários são extremamente mal pagos, o apoio à pesquisa antes se caracteriza pelo acúmulo de obrigações burocráticas (informes, questionários, ênfase quantitativa em trabalhos que não serão lidos) do que por verbas para a conservação e atualização das bibliotecas, para a publicação de revistas de periodicidade constante, para o contato regular com colegas nacionais e estrangeiros.
Além disso, como a degradação do ensino vem do curso secundário, as aulas passam a ser dadas para turmas sem preparo e interesse, muitas vezes para alunos semi-alfabetizados. Assim o professor, a curto prazo, é obrigado a optar por cursos medíocres, a médio prazo, a se desinteressar progressivamente pelo que faz, a longo prazo, a internalizar e esquecer a mediocridade que dele se apropria (isso para não falar dos que já iniciam sua carreira com ela.) Em consequência, torna-se maior o sonho, muitas vezes mistificado, de frequentar uma universidade estrangeira. Maior até do que quando não dispúnhamos de universidades.
Para piorar a situação, concorrem dois fatores: 1) por reação aos modelos imitativos, o modernismo brasileiro desenvolveu uma visão "orgânica" do país. Por ela, o pesquisador nacional é pressionado a se dedicar apenas a temas nacionais, com um contato apenas superficial, desconhecimento ou mesmo desprezo pelo que se faz, em sua área ou áreas vizinhas, no estrangeiro. A visão comparada, há pouco tempo louvada por Evaldo Cabral de Mello como característica da historiografia de Oliveira Lima, seja em história, em política ou em literatura, se torna uma aberração. Além do mais, sua inexistência faz que o pesquisador sinta menos a carência de suas bibliotecas de apoio.
Em consequência, os raros estudos que desenvolvem temas ou autores não brasileiros, mesmo que sejam de qualidade, não são aproveitados, não recebem a divulgação adequada, se não são hostilizados.
A ideologia modernista favorece nosso isolacionismo cultural. Os poucos que dela escapam caem nas malhas das "agências de pesquisa" que os relegam a segundo plano; 2) a inexistência de uma tradição de universidades privadas. Fora umas raras exceções, o ensino entre nós é uma forma de negócio. Ensinar a pensar, ensinar a pesquisar são antiqualhas. O que importa é dispor de muitas máquinas. Nós que apreciamos tanto o exemplo norte-americano mostramos que dele só aprendemos o mais superficial. Desde logo quem nos disse que as universidades privadas nos Estados Unidos não contam com o forte apoio tanto de particulares como do próprio governo? Elas são privadas pela administração, não pelo capital que manipulam.

Praticamente ignorados
B) Se as humanidades são precárias pelas péssimas condições salariais e de trabalho nas universidades, provincianas e atrasadas pelo organicismo modernista, a situação ainda se agrava pela maneira como, de fora, se encara o Brasil. Somos uma ilha continental, cercada pelo oceano e por "hispano hablantes". Exceto pelo futebol, por alguma atriz de telenovela e pelo reconhecimento da música popular, somos tão ignorados por nossos vizinhos hispânicos como por europeus e norte-americanos. Esse desconhecimento se acentua e concretiza nas universidades estrangeiras. Sobretudo nos departamentos de espanhol e português das universidades norte-americanas, o que é escrito em português é relegado à quase inexistência. Os raros brasilianistas têm seu raio de ação extremamente limitado pelo inevitável comando dos hispanistas. Como, além do mais, entre estes grassa a luta entre os "continentais" e os hispano-americanistas, não só os estudos brasileiros são um zero à esquerda como tais departamentos são muito inferiores aos demais. Por conseguinte, o brasileiro que se interesse por literatura e consiga escapar da mediocridade dos cursos nacionais, ao terminar sua pós no estrangeiro deparar-se-á com o seguinte dilema: caso haja lá estudado literatura brasileira, ou aceitará a "honrosa" marginalidade que lhe reservam ou voltará tão ruim ou pior do que se houvesse ficado; caso haja se dedicado a outra literatura, ao voltar, enfrentará a marginalidade a que o relega a ideologia organicista. A ele restará a solução de se dedicar a uma área estrangeira e aí se radicar. Em suma, exportamos uma matéria refinada de que carecemos, enquanto acumulamos juros para pagar nossa dívida.

Humanidades em xeque
Em poucas palavras, a presença do intelectual brasileiro nos jornais brasileiros é fundamental para a tentativa de romper o círculo vicioso em que se encontram as nossas humanidades. Tal presença permite que se cogite na formação de um leitor que não se contente com a mediocrização que o cerca. Se isso se der, a universidade passará a contar com um dos apoios de que atualmente carece: o apoio do público. E a cultura brasileira, do estímulo para que saia da extrema marginalidade em que é mantida no estrangeiro. Isso por certo levará tempo.
De todo modo, a saída da indigência intelectual depende da existência de um leitor que já não se satisfaça com os clichês correntes e de um público que entenda que papel se reserva para a universidade que pretenda crescer. Pois só quando leitor e público deixarem de ser, respectivamente, uma minoria insignificante e uma massa amorfa, políticos e empresários da cultura escutarão sua demanda.
Como escreveu Marco Aurélio Nogueira: "Em última instância, será a sociedade a determinar o que deve ser feito com o ensino superior ou com a escola". Para empregar uma imagem de Maria da Conceição Tavares, só por meio da intervenção do leitor e do público, as humanidades, a exemplo do que começa a suceder com o "povão", poderão sair da "gaiola" em que a meteram. "Gaiola" em que tanto faltam "milho", como livros. Imagine-se o que dizer das idéias.


Luiz Costa Lima é professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de, entre outros, "Mímesis -Desafio ao Pensamento" (Editora Civilização Brasileira). Escreve na seção "Brasil 501 d.C." mensalmente.
O texto acima é uma versão de palestra proferida pelo autor no auditório da Folha, durante o ciclo de conferências "Brasil 501 d.C".


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