São Paulo, domingo, 04 de junho de 2000


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+ cinema
"Cronicamente Inviável", filme de Sérgio Bianchi, esquadrinha a ética duvidosa do Brasil de hoje
O pacto do cinismo

Maria Rita Kehl
especial para a Folha

A realidade não interessa às pessoas", lamenta-se o protagonista de "Cronicamente Inviável", quase no fim desse filme em que o público é submetido a um verdadeiro tratamento de choque diante de uma cruel seleção do que há de pior na realidade brasileira. A fala do personagem representado por Humberto Magnani -um sociólogo empenhado em coletar e comentar criticamente fatos que denunciem que o Brasil é inviável- é contestada pelo público do filme, que vem recebendo muito bem a má notícia. Ao contrário do que aconteceu com outros filmes igualmente críticos e indignados do cineasta Sérgio Bianchi, este "Cronicamente Inviável" não passou despercebido e vem fazendo sucesso, principalmente junto a um público mais jovem, habitualmente avesso ao cinema brasileiro.
Como comentar esse fenômeno? Poderíamos pensar, com otimismo, que as pessoas andam mais conscientes dos problemas do país, mais interessadas na "realidade". Ou simplesmente dizer, no jargão de um analista de mercado, o que Bianchi certamente abominaria: que, hoje, "a realidade vende". Como a primeira abordagem não exclui a segunda, e vice-versa, a recepção positiva de "Cronicamente Inviável" nos propõe um dilema moral, claramente enunciado em outra fala do mesmo personagem: "Este excesso de compreensão pode acabar virando cumplicidade". Da cumplicidade ao cinismo a passagem é quase imediata. A "realidade" interessa ao cínico, para quem vale a lógica do "quanto pior, melhor". O cínico não é aquele que quer se iludir; é justamente alguém que percebe com clareza a dura realidade e, cúmplice do que nos parece condenável, aprende a jogar com ela em benefício próprio.
Um dos recursos utilizados repetidamente por Bianchi para produzir mal-estar no espectador é o confronto de personagens de classe média, que se julgam politicamente corretos, com os miseráveis com quem eles se dizem solidários; o resultado do encontro é sempre desastroso e evidencia a nulidade de nossas boas intenções diante da desigualdade monstruosa que já se produziu no país. O engenho desse recurso consiste em manter, diante de algum fato abominável, enunciados que seriam "razoáveis" em outro contexto.
Os personagens, evidentemente, não levam a sério o que dizem. Por duas vezes, por exemplo, meninos de rua são atropelados por madames apressadas, diante de um (mesmo) restaurante elegante. Os fregueses saem à porta e assistem à cena, inertes, repugnados. Saindo do carro, a motorista contempla horrorizada o corpo da criança agonizante e se dirige, evidentemente, a seus pares: eu não tive culpa, eu estava dentro da lei, tenho um compromisso logo mais etc. E conclui: "Eu não vou me atrasar por um excesso de escrúpulos legalistas". Manobra o carro junto ao corpo do menino e vai embora. Não há limites para a nossa tolerância moral; não há fato "real" o suficiente que uma inversão no sentido do discurso não seja capaz de ressignificar, para livrar a cara dos responsáveis. Se o senso (crítico?) comum estabelece que "ninguém" se importa com a lei, não existe diferença entre o escrupuloso e o otário, entre o realista e o canalha. O único crime imperdoável é admitir a culpa. Em vez de "somos culpados", "Cronicamente Inviável" parece estar demonstrando a seu público: "Tornamo-nos cínicos". Mas até que ponto o filme, com seu realismo atordoante, não é mais uma manifestação dessa "má consciência ilustrada" que constitui o cinismo, no dizer do filósofo Peter Sloterdijk? Não é porque ninguém se salva (moralmente) entre os personagens dessas crônicas de um país inviável que o filme corre o risco de convocar o espectador ao cinismo. É porque ele não possibilita nenhuma brecha para imaginar -ou mesmo desejar- que as coisas possam ser diferentes.

Má consciência ilustrada
O espectador sente-se inteligente e crítico ao acompanhar, e compreender, as construções inteligentes e críticas do argumento de Sérgio Bianchi. Mas, se fosse convidado a escolher seu lugar no enunciado de Stanislaw Ponte Preta, "ou restaura-se a moralidade ou locupletamo-nos todos", só poderia se colocar entre os que se locupletam. Repetidamente, no filme, personagens sofisticados e bem informados reúnem-se para comer bem e falar mal do país, num ambiente em que qualquer indignação, qualquer apelo à moralidade, soa absurdamente ingênuo.
A má consciência ilustrada nacional produziu, há décadas, um fenômeno estranho: nenhum brasileiro se identifica com as mazelas do Brasil. Não se trata de falta de "nacionalismo", que bem deveria ser dispensado, aqui ou em qualquer nação, mas de falta de implicação. "No Brasil, todo mundo é trambiqueiro!", exclama outro personagem do filme, justificando seus próprios trambiques como parte do azar de ter nascido aqui. Como na letra da canção de Chico Buarque, foi um Deus gozador que, tendo o mundo inteiro para nos destinar, quis nos jogar aqui, "na barriga da miséria"...
Quem pode, goza dos privilégios de ser brasileiro -o que inclui os benefícios privados que cada um pode tirar da tão falada "tolerância ética" nacional. O acréscimo ao gozo está em que ninguém se sinta particularmente responsável pelas consequências.
Neste sentido, é didática a comparação de "Cronicamente Inviável" com a peça "Bonitinha mas Ordinária", de Nelson Rodrigues, em cartaz no teatro Eugênio Kusnet. Para o que me interessa nesta discussão, a montagem de Marco Antônio Braz tem o mérito de enfatizar o dilema moral do personagem Edgar e deixar em segundo plano o "escândalo sexual", muito mais evidente, por exemplo, no filme de Braz Chediak, com Lucélia Santos, de 1980.
A montagem de Marco Antônio Braz, radicalmente rodriguiana, é perfeitamente atual. Na peça, os efeitos tanto cômicos quanto dramáticos se produzem a partir da crise em que a frase de Otto Lara Resende "o mineiro só é solidário no câncer" precipita o incauto Edgar. A partir do momento em que é tocado pela "frase do Otto", Edgar é lançado num permanente conflito moral; depois da "frase do Otto", tudo é permitido; nenhuma renúncia faz sentido, nenhum ideal se mantém, depois da "frase do Otto". A frase força Edgar a se transformar num canalha. Pior: numa demonstração genial de Nelson Rodrigues de que o efeito de um discurso crítico fechado sobre si mesmo pode ser a sacralização do que ele pretende demolir, o diabo da "frase do Otto" desautoriza qualquer aposta em outra direção que não seja a da canalhice. Edgar, que pretendia escandalizar a burguesia com a frase fatídica, assiste horrorizado à sua apropriação como signo de distinção de classe; no clube, os milionários cumprimentam-se alegremente, cúmplices em sua baixeza: "Como é que vai, mineiro?...".
A peça é de 1962. Nela, a repugnância de Edgar funciona como ancoramento de um outro ponto de vista, fora do realismo cínico dos outros personagens. Hoje a "frase do Otto", perfeitamente assimilada, soa quase pueril. Nada desestabiliza o brasileiro do ano 2000 em sua triste resignação acanalhada, a não ser, talvez, a insistência de alguns poucos (otários? perdedores?) em se manter afastados da bandalheira geral.
"Cronicamente Inviável" termina com a fala de uma moradora de rua embalando o filho para dormir. Ela diz que o menino deve ser honesto e não precisa se envergonhar de sua pobreza. Diz que se orgulha do filho e do grande futuro que ele há de construir. É o trecho mais chocante do filme, porque o diretor faz dessa personagem, que nada tem a perder, a única que parece levar a sério o que diz.


Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de, entre outros, "Deslocamentos do Feminino" (Imago).


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