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+ arte
O regresso do ranheta
No original estudo
"O Rasga", o pesquisador
José Ramos Tinhorão reivindica a origem
afro-brasileira de um gênero musical tido até então como genuinamente português
MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA
Diz-se que a coerência é a única coisa
que os medíocres
têm a oferecer. Que
seja. Mas sempre
haverá aqueles que abraçam-na simplesmente por não poderem fazer diferente. Tal pode
ser o caso do jornalista e pesquisador José Ramos Tinhorão. Quem já dobrou a esquina
da vida por certo lembrará de
suas famosas colunas na "Veja"
e no "Jornal do Brasil", de onde
não manavam concessões
quando reduzia a bossa nova à
sua natureza urbana e de classe
média, caudatária, ademais, de
influências ianques.
Tratava-se de juízo parcial, é
óbvio, pois mesmo Antonio
Carlos Jobim bebia em estudos
que Villa-Lobos produziu na
década de 1920 -isto é, em sínteses profundas da alma da
música popular brasileira, como demonstrou [o violonista]
Turíbio Santos em entrevista
recente.
Pois o ranheta regressa. E
consoante a coerência da qual
não consegue se desvencilhar,
insiste na busca das raízes históricas do fenômeno musical.
O resultado -"O Rasga" [editora 34, 88 págs., R$ 27]- brinda o leitor com uma originalíssima interpretação acerca das
origens dessa música e dança,
portuguesa na feição, mas profundamente marcada pelas seculares trocas culturais que
modularam as relações entre a
África, o Brasil e Portugal.
Polêmica em Portugal
Tinhorão retoma trabalhos
seus do início dos anos 90, de
repercussão apenas razoável
no Brasil, mas focos de intensa
polêmica em Portugal. Não era
para menos: neles pugnava-se
pela origem afro-brasileira de
gêneros musicais tidos como
genuinamente lusitanos.
A amalgamar a transposição,
estaria a semelhança da composição étnica de setores empobrecidos de Lisboa, Salvador
e Rio de Janeiro, cujos escravos
domésticos cruzavam o Atlântico por meio de famílias que
regressavam para a terrinha.
Variação de fontes
Para além da transculturação
própria aos impérios ibéricos,
capturam-se aqui ecos de outros procedimentos igualmente caros a Gilberto Freyre.
No livro atual reverbera, sobretudo, o persuasivo manejo
de variados tipos de fontes, desde o óleo sobre madeira do pintor anônimo da Lisboa do Quinhentos até o cordelista que relata uma festa popular na Alfama do século 17, passando pelo
impagável Gregório de Matos,
para quem o irmão bailava
"com o pé e com mão/ e o cu
sempre no lugar".
Multiplicam-se ainda cronistas, moralistas e dicionaristas a
atestar a lenta penetração da
música afro-brasileira nos salões mais sofisticados de Lisboa. Figura de destaque em semelhante movimento parece
ter sido Domingos Caldas Barbosa, mulato carioca e tocador
de viola popular, que chegou a
Portugal em 1763, aos 23 anos,
e logo sacudiu os mofados saraus lisboetas com o sincopado
próprio do ritmo que animava
danças de "maus modos", como
a fofa, o fado e o lundu.
"Dança de negros" no Brasil,
o fado, por exemplo, despiu-se
de sua coreografia original em
prol da parte cantada, transformando-se em "fado das salas"
-em contraposição ao "fado
batido", dançado em pardieiros- e depois no canto urbano
hoje conhecido como fado português. Com a modinha não seria diferente: levada por Caldas
Barbosa, dela se puderam excluir as síncopas próprias da
música negro-brasileira, que
pouco a pouco perderam espaço para a parte melódica, esta,
sim, inegavelmente européia.
Ambigüidade étnica
As trocas entre Brasil e Portugal estariam também na origem da dança do rasga, em
meados do século 19. Sua característica distintiva era a sonoridade, "obtida pela simples raspadura de uma vareta sobre a
superfície de um cilindro de
madeira dentado, que o tocador
mantinha à sua frente, apoiando-lhe a extremidade superior
ao ombro".
Qualquer associação com o
nosso conhecido ganzá ou reco-reco, de origem africana,
não é mera coincidência.
A delicadeza do pesquisador
se desvela plenamente na arqueologia do instrumento. Estabelece o seu aparecimento na
iconografia em obra do soldado
alemão Zacharias Wegener, associado à dança ritual dos negros do Nordeste.
Detecta a sua presença em
Portugal, onde o "Folheto de
Ambas Lisboas" (1730) o menciona. E arremata com a fina
explicação de como, etimologicamente, aquilo que de início se
arranha ou raspa (o ato gerador
da sonoridade) vira rasgar
-quem quiser que se aprofunde, pois vale a pena.
A maneira como o já entranhado rasga explodiu no teatro
português, por meio da encenação da ópera cômica de Jaime
Venâncio, "Processo do Rasga"
(1878), revelaria toda a ambigüidade com que a boa sociedade lusitana tratava essa face etnicamente diferenciada de sua
cultura popular.
Pois na obra detecta-se a
apropriação da música e da
dança de pretos pela sociedade
branca "oficial", mas restando-lhe a origem indesejada para
melhor admissão e desfrute.
Como o machadiano Casmurro da velhice, o rasga acabaria regressando ao ponto de
partida -no caso, ao Brasil-
em fins do século 20. O teatro
de revista ajudaria a sua incorporação ao folclore infantil e ao
cancioneiro popular urbano.
Mesmo a nascente indústria do
disco se interessaria por suas
variantes, incorporadas ao que
mais tarde seria chamado "batuque de pretos".
O livro de Tinhorão se fecha
com um precioso mimo ao leitor: um CD onde se consolidam
os raros registros fonográficos
dessa mutação.
MANOLO FLORENTINO é professor no departamento de história da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve bimestralmente na seção "Autores", do Mais!.
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