São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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+ arte

O regresso do ranheta

No original estudo "O Rasga", o pesquisador José Ramos Tinhorão reivindica a origem afro-brasileira de um gênero musical tido até então como genuinamente português

MANOLO FLORENTINO
COLUNISTA DA FOLHA

Diz-se que a coerência é a única coisa que os medíocres têm a oferecer. Que seja. Mas sempre haverá aqueles que abraçam-na simplesmente por não poderem fazer diferente. Tal pode ser o caso do jornalista e pesquisador José Ramos Tinhorão. Quem já dobrou a esquina da vida por certo lembrará de suas famosas colunas na "Veja" e no "Jornal do Brasil", de onde não manavam concessões quando reduzia a bossa nova à sua natureza urbana e de classe média, caudatária, ademais, de influências ianques. Tratava-se de juízo parcial, é óbvio, pois mesmo Antonio Carlos Jobim bebia em estudos que Villa-Lobos produziu na década de 1920 -isto é, em sínteses profundas da alma da música popular brasileira, como demonstrou [o violonista] Turíbio Santos em entrevista recente. Pois o ranheta regressa. E consoante a coerência da qual não consegue se desvencilhar, insiste na busca das raízes históricas do fenômeno musical. O resultado -"O Rasga" [editora 34, 88 págs., R$ 27]- brinda o leitor com uma originalíssima interpretação acerca das origens dessa música e dança, portuguesa na feição, mas profundamente marcada pelas seculares trocas culturais que modularam as relações entre a África, o Brasil e Portugal.

Polêmica em Portugal
Tinhorão retoma trabalhos seus do início dos anos 90, de repercussão apenas razoável no Brasil, mas focos de intensa polêmica em Portugal. Não era para menos: neles pugnava-se pela origem afro-brasileira de gêneros musicais tidos como genuinamente lusitanos. A amalgamar a transposição, estaria a semelhança da composição étnica de setores empobrecidos de Lisboa, Salvador e Rio de Janeiro, cujos escravos domésticos cruzavam o Atlântico por meio de famílias que regressavam para a terrinha.

Variação de fontes
Para além da transculturação própria aos impérios ibéricos, capturam-se aqui ecos de outros procedimentos igualmente caros a Gilberto Freyre. No livro atual reverbera, sobretudo, o persuasivo manejo de variados tipos de fontes, desde o óleo sobre madeira do pintor anônimo da Lisboa do Quinhentos até o cordelista que relata uma festa popular na Alfama do século 17, passando pelo impagável Gregório de Matos, para quem o irmão bailava "com o pé e com mão/ e o cu sempre no lugar". Multiplicam-se ainda cronistas, moralistas e dicionaristas a atestar a lenta penetração da música afro-brasileira nos salões mais sofisticados de Lisboa. Figura de destaque em semelhante movimento parece ter sido Domingos Caldas Barbosa, mulato carioca e tocador de viola popular, que chegou a Portugal em 1763, aos 23 anos, e logo sacudiu os mofados saraus lisboetas com o sincopado próprio do ritmo que animava danças de "maus modos", como a fofa, o fado e o lundu. "Dança de negros" no Brasil, o fado, por exemplo, despiu-se de sua coreografia original em prol da parte cantada, transformando-se em "fado das salas" -em contraposição ao "fado batido", dançado em pardieiros- e depois no canto urbano hoje conhecido como fado português. Com a modinha não seria diferente: levada por Caldas Barbosa, dela se puderam excluir as síncopas próprias da música negro-brasileira, que pouco a pouco perderam espaço para a parte melódica, esta, sim, inegavelmente européia.
Ambigüidade étnica
As trocas entre Brasil e Portugal estariam também na origem da dança do rasga, em meados do século 19. Sua característica distintiva era a sonoridade, "obtida pela simples raspadura de uma vareta sobre a superfície de um cilindro de madeira dentado, que o tocador mantinha à sua frente, apoiando-lhe a extremidade superior ao ombro". Qualquer associação com o nosso conhecido ganzá ou reco-reco, de origem africana, não é mera coincidência. A delicadeza do pesquisador se desvela plenamente na arqueologia do instrumento. Estabelece o seu aparecimento na iconografia em obra do soldado alemão Zacharias Wegener, associado à dança ritual dos negros do Nordeste. Detecta a sua presença em Portugal, onde o "Folheto de Ambas Lisboas" (1730) o menciona. E arremata com a fina explicação de como, etimologicamente, aquilo que de início se arranha ou raspa (o ato gerador da sonoridade) vira rasgar -quem quiser que se aprofunde, pois vale a pena. A maneira como o já entranhado rasga explodiu no teatro português, por meio da encenação da ópera cômica de Jaime Venâncio, "Processo do Rasga" (1878), revelaria toda a ambigüidade com que a boa sociedade lusitana tratava essa face etnicamente diferenciada de sua cultura popular. Pois na obra detecta-se a apropriação da música e da dança de pretos pela sociedade branca "oficial", mas restando-lhe a origem indesejada para melhor admissão e desfrute. Como o machadiano Casmurro da velhice, o rasga acabaria regressando ao ponto de partida -no caso, ao Brasil- em fins do século 20. O teatro de revista ajudaria a sua incorporação ao folclore infantil e ao cancioneiro popular urbano. Mesmo a nascente indústria do disco se interessaria por suas variantes, incorporadas ao que mais tarde seria chamado "batuque de pretos". O livro de Tinhorão se fecha com um precioso mimo ao leitor: um CD onde se consolidam os raros registros fonográficos dessa mutação.


MANOLO FLORENTINO é professor no departamento de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira). Escreve bimestralmente na seção "Autores", do Mais!.


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