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A música das palavras
Figura mítica do piano, o austríaco Alfred Brendel fala de sua outra paixão: a poesia
FLORENCE NOIVILLE
Nascido em 1931, em
Wiesenberg, na
Morávia, parte da
então Tchecoslováquia, Alfred
Brendel gravou seu primeiro
disco, o "Quinto Concerto" de
Prokofiev, aos 24 anos.
Contrariando as lendas que o
retratam como cerebral e austero, esse monstro sagrado do
piano revela um substrato sutil
de humor e de zombaria, também presente em seus ensaios
sobre música.
Na entrevista abaixo, ele fala
de uma outra paixão que freqüenta: a poesia.
PERGUNTA - O que o conduziu à
poesia?
ALFRED BRENDEL - Comecei a escrever poesia de um modo imprevisível. Eu estava em um
avião, a caminho do Japão, não
conseguia dormir e, no limbo
do torpor sem sono, me ocorreu um poema. Surgiu de maneira quase automática. Mais
tarde, depois de ter escrito cerca de 15 poemas, comecei a estudá-los para ver se me lembravam a voz de outra pessoa ou se
eu podia supor que minha voz
literária era singular. A conclusão a que cheguei foi a de que eu
tinha voz própria.
PERGUNTA - Há outros artistas que
saíram de seu campo habitual de
criação: Picasso escreveu "O Desejo"
quando preso em uma fila, Kandinsky também escreveu poemas.
No seu caso, como o poeta se situa
em relação ao músico?
BRENDEL - No meu caso, não se
trata de um hobby. Para mim, a
escrita sempre foi uma segunda
natureza, como se um alter ego
estivesse se exprimindo.
Escuto e critico meus poemas como se estivesse lendo
textos alheios; textos estranhamente familiares, mas que me
conduzem a regiões desconhecidas de mim mesmo. Você conhece "Cosmicomics", de Italo
Calvino? É um dos meus livros
prediletos, uma encruzilhada
do fantástico e da semiótica.
Em meus poemas, creio que há
muito de "cosmicômico".
PERGUNTA - A literatura sempre
desempenhou papel importante em
sua compreensão do mundo?
BRENDEL - Estou convencido de
que é possível compreender
melhor o mundo por meio dos
grandes romances do que observando as pessoas. Em minha
juventude, fui muito influenciado por Thomas Mann, Herman Hesse e Elias Canetti. Mas
foi Robert Musil que ocupou a
posição de verdadeiro escritor
formativo em minha vida. O
que me fascinava era a experiência mística tal qual observada por um cientista. É preciso sempre nos perguntarmos
com que obras desejamos viver.
PERGUNTA - Suas fontes de inspiração parecem ecléticas, não exclusivamente literárias...
BRENDEL - Minhas idéias podem ser inspiradas por notinhas de jornal ou por um cartoon da revista "New Yorker",
ou por lembranças de poetas
que admiro. Há também o cinema -Chaplin, "Zelig", de
Woody Allen, e, sobretudo, Buñuel, cujos filmes libertam algo
em mim. Essa idéia inicial é que
orienta tudo que acontecerá a
seguir. Como na música, um tema nasce, desenvolve-se e dá
origem a variações.
Este texto saiu no " Le Monde".
Tradução de Paulo Migliacci.
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